sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Estado de Direita

Crónica presidencial despropositada

O Estado temo-lo em casa e não se dá por isso. É a palmatoada do pai em obediência ao Grande Costume, mas desaparece no sorriso do pai, é a sopa obrigatória marcando passo, torcendo a espinha, mas vai-se na bola de gelado, é a espada imaginário de Afonso e a pá da padeira, mas também o serviço de urgência em dia de cabeça partida quando a senha que nos calha é amarela e lá secamos como bacalhau de Janeiro à espera da consoada. Em casa senta-se à nossa frente e emite livremente uma vida alheia, de outros bibelotados e habitados, em que enredamos como mosca na teia e comemos preocupadamente como a nossa própria. O Estado vende modos de vida e comportamentos, mesmo quando diz que não. O Estado é o patrão por trás da televisão, porque o patrão é o Estado berlusconizado, o Estado dos interesses e da celebridade cultuada, neutro a favor deles e muito colorido a pintar protagonistas eternizados no instante. O Estado também é terrorista quando lhe dá jeito. E magnânimo nas datas simbólicas. Mais pau de bandeira menos pau de bandeira, obriga-nos a respirar os ventos patrióticos da história a plenos pulmões ou impondo-nos, sentimental, a nostalgia de uma amputação, em cada escalada alegre ao topo do mastro ou quando triste se queda na meia haste. Hasteia o que pode, por vezes muribundo e ainda dá coice, gemebundo, tiros atirados à toa em Largos do Mundo, casas de pombos desempregados. Ele é a aranha sempre pronta a cuidar dos nossos desvios. E quando estes estão para além da vontade de quebrar uns vidros por mera angústia ou desvario, ou além de vituperar um sentido proibido que nos desestaciona a existência, ele estica o seu longo braço e observa-nos a cabeça como quem faz uma cerebroscopia, à procura da raiz do mal, que já lá estava, na genética origem malformada. Diagnosticar um pendor anarquizante, um desconhecimento do princípio hierárquico, uma peste mental, é o que fazem os seus serventuários mais dedicados com sanha militante. O Estado pode ser um clube com direito reservado de admissão, mesmo uma seriíssima casa de alterne. O Estado é a Casa Branca, espalhando imaculada cirúrgica guerra entre civis. O Estado filma-nos e pede que a gente sorria, de frente ou de perfil, de trás ou no covil. E calça-nos a cabeça sempre que ela perde as baias. O Estado é também o princípio da competição, ele quer o maratonista mais maratonista, o Estado quer pernas musculadas e secas de carnes para espalhar horizontes de visão, o Estado é um imenso professor de ginástica sueca, um dois, um dois, braços estendidos, à frente, começar! O Estado é algures o banho esfregado até que o corpo perca a vontade de respirar pela pele, é o alicate puxando a língua, é o avião atirando opositores sobre uma mar pacífico. É invisível quando descemos as persianas e se faz um escuro definitivo, as horas que o sono durar, porque estando lá não está lá, mas vela pelos nossos sonhos, fabricando pesadelo quando girando à volta do sol, o não podemos, decreto havido. Tal como o anjo da guarda, protege-nos do mal, essa vida saturada de diabos dançando frenesins solsticiais nos cromeleques da imaginação. Não que eu alguma vez o tenha tido de guarda à cabeceira: de asas talhadas em prata e sorrindo, o que se pode pôr de dentes protectores, na dimensão de um medalhão? O resto de uma chiclete sim, colada no espaldar da cama, clandestina e duradoura, para mascar no silêncio do preto escuro, essa áfrica de todos os dias que anoitece connosco. O Estado é o satélite olho do grande irmão. E nós o pirilampo, luz precária saltitante, fugindo do apanha luzes. O Estado é o Cavaco, o cavaco inifogado que as televisões vendem como a qualidade. O Estado são as Silvas que por todo o lado infertilizam os baldios. O Estado com um E de continência, É o Estado de Direita.

f. arom

3 comentários:

Anónimo disse...

Contado por quem presenciou:
Numa acção de campanha relacionada com os vinhos portugueses, o anfitrião diz para o Silva:
“Acho que vai gostar de provar este tinto Barca Velha, do ano tal…” Atalhando, responde o Silva:
“Sabe… gostava mais de um branquinho…”

Anónimo disse...

Texto fabuloso. F. Aron, é um gosto lê-lo!

Anónimo disse...

Senão era despropositada quando escreveu muito menos o é agora!Com Cavaco na presidência e Socrates em primeiro ministro estaremos nas arenas romanas em pouco tempo. Salve-se quem puder!