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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Água (3)


Ilustração para Água na poesia. Edição da Câmara Municipal de Sintra


Ela sorve, enche e aspira


Agora é duma limpidez total. A lua inclina-se sobre a escuridão do mar,

atraindo a si caudais abundantes de água que as vagas do fundo

cobrem de uma placa de chumbo. À superfície do mar estende a lua

uma tela prateada brilhante que ela sorve e aspira. É disso que falo.

Amoz Oz, O mesmo mar, edições ASA


Ivone Ralha

domingo, 19 de outubro de 2008

Água (2)


Ilustração para Água na poesia. Edição da Câmara Municipal de Sintra



Depois dá umas voltas e volta à avenida Rothschild


Quando ele saiu a chuva tinha cessado. A avenida era uma moça despida

e espancada por um bando de malfeitores que a abandonaram ali,

de costas, rasgada e encharcada. Agora ouve o murmúrio das árvores

prometendo-lhe uma espécie de Segundo silêncio, o silêncio que vem

depois da vergonha e da degradação, um silêncio ténue,

uma espécie de nascimento: não erguerei mais os olhos para os montes

vou deixar-me ficar deitada num charco

de águas estagnadas e turvas. Eis o vento. Eis o rumor

das asas dos pássaros, a alinhavarem o ar húmido, descosendo,

para tornar a coser e voltar a descoser. Está tudo cinzento

e suave. Cada coisa no seu lugar. Em paz. Exalando um cheiro

bom a chuva e a terra. Tudo passou.



Amoz Oz, O mesmo mar, edições ASA

Ivone Ralha

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Água (1)


Ilustração para "Água na poesia". Edição da Câmara Municipal de Sintra



Nadia ouve


O pássaro acordou-a. Está deitada de costas de olhos fechados, a pensar

no que lhe resta para além da toalha que começou a bordar

e talvez termine.

Resta-lhe a vontade que a dor passe

e que tudo passe e deixe de a atormentar.

Jaz pr’ali como se, tendo deixado a rampa de lançamento, deslizasse

pela via lacteal e o planeta do qual descolou se tivesse afastado

e reduzido até se confundir com as miríades de outras estrelas.

Um pássaro pousado num ramo chama-a e Nadia está deitada

a apagar o bem e o mal, como uma mulher a acabar de lavar o chão,

a recuar com a esfregona de costas para a porta, só lhe resta limpar

as suas pegadas no chão molhado.

A dor ainda dorme: o corpo hostil, com os seus punhais,

não acordou com ela ao som do pássaro. Até a vergonha,

companheira de toda a sua vida, a largou. Deixou de a morder.

Tudo se desligou dela e Nadia desligou-se de tudo como uma pêra do ramo.

Não uma pêra que se colhe mas um fruto maduro que cai.

(…)


Amoz Oz, “O mesmo mar”, edições ASA


Ivone Ralha