quinta-feira, 17 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (8 e final)
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (7)
domingo, 13 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (6)
terça-feira, 8 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (5)
(7) Para uma crítica em profundidade de Geffray, v. Dinerman (1994).
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (4)
terça-feira, 1 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (3)
Os assimilados que constituíam a facção radical da FRELIMO eram sobretudo oriundos do Sul, em particular da capital e da região interior vizinha (Minter, 1996). Embora os críticos do partido usassem este facto para afirmar que a FRELIMO sofria de um «domínio sulista», o problema talvez esteja mais relacionado com a economia política colonial, os antecedentes sociais e as oportunidades educacionais do que com laços étnicos ou regionais específicos. Devido à localização da capital no Sul e à proximidade desta região com os mercados da África do Sul, verificavam-se aqui mais oportunidades de envolvimento no comércio e na migração laboral e de acesso ao sector governamental, de base urbana (Pitcher, 2002). Além disso, os sulistas beneficiavam do acesso às escolas das missões protestantes, que tinham sido impedidas de trabalhar no Centro e no Norte do país. Estas escolas proporcionavam a melhor educação disponível aos negros (Cruz e Silva, 1998 e 2001; Pitcher, 2002). Os sulistas eram, pois, maioritariamente oriundos de contextos urbanos ou periurbanos e, embora muitos deles procedessem de famílias com origens nobres ou de alto estatuto no período pré-colonial, estavam já profundamente integrados na economia colonial e o seu estatuto assentava na posição que ocupavam dentro da hierarquia colonial. Contudo, tornou-se visível que a sua mobilidade social seria sempre limitada e o aumento da imigração portuguesa após a Segunda Guerra Mundial deixou-os numa situação precária. Muitos sentiam uma forte atracção pelos aspectos do progresso que o colonialismo afirmava representar; porém, devido às restrições do sistema, a modernidade à qual aspiravam parecia estar sempre para lá do seu alcance (Hall e Young, 1997). O descontentamento cresceu entre os assimilados, que se uniram na defesa de causas comuns a outros grupos igualmente insatisfeitos com o sistema colonial — brancos radicais, mulatos (miscigenados) e indianos. Durante a luta pela libertação, estes grupos, aliados aos comandantes das guerrilhas do Norte, formaram a facção radical da FRELIMO. Isto não significa que todos os assimilados tenham aderido à FRELIMO. De facto, muitos deles não o fizeram, e a liderança da FRELIMO olhava-os com profunda desconfiança, pois não tinham sido «purificados» pela sua participação na luta (Hall e Young, 1997; Pitcher, 2002). A própria pequenez deste grupo — uma minoria dentro de uma minoria — contribuía para a sua unidade e coesão, mas causou também muitos problemas no período após a independência. Como me foi dito por um professor universitário moçambicano: «O nosso problema era que tínhamos uma elite suficientemente grande para formar um movimento, mas não suficientemente grande para governar o país.» Porém, as origens comuns dos membros deste grupo, oriundos da classe assimilada sobretudo urbana ou não agrícola, ajudaram a criar uma visão específica sobre a criação de uma nova nação após a obtenção da independência, que ocorreria em 1975. Tratava-se de uma visão grandiosa de modernização construída com base nas raízes e preconceitos do grupo, que tendia a ver os camponeses, a grande maioria da nação, como tabula rasa, ou seja, algo que podia ser completamente remodelado de acordo com os seus planos para o futuro (Geffray, 1991; Hall e Young, 1997; O’Laughlin, 2000).
Como fez notar Fry, o período marxista-leninista de Moçambique (1977-1983) seguia, de facto, uma lógica assimilacionista:
"Apesar do discurso anticolonial do centro e da FRELIMO, em geral, é impossível deixar de observar que o projecto socialista em Moçambique era acima de tudo mais «assimilacionista» do que os portugueses jamais se atreveriam a imaginar e é tentador sugerir que esta é uma das razões pelas quais a elite moçambicana considerava tão atractivo o programa socialista. Em termos estruturais, havia pouca diferença entre um Estado autoritário capitalista governado por um pequeno grupo de portugueses e assimilados «esclarecidos» e um Estado autoritário socialista gerido por um igualmente reduzido e esclarecido grupo de vanguarda" [2000, p. 129].
Fry sugere que, a partir do fim da guerra civil, a elite da FRELIMO começou a reconceptualizar o seu lugar no tecido nacional e a defender uma perspectiva mais local e menos elitista. Esta evolução acompanha a mudança da lógica de poder em Moçambique, pois torna-se agora necessário à FRELIMO distanciar-se das suas raízes assimiladas e alargar a sua base de apoio. Assim, para Fry, é como se a FRELIMO, que desde sempre desprezara o quadro cultural da maioria da nação, tivesse, finalmente, de se submeter a ele, ou pelo menos de o respeitar (2000, p. 135).
Fry defende um ponto importante ao reconhecer algumas das continuidades ideológicas entre o sistema da assimilação e o projecto socialista pós-independência. Ao contrário do que se passava no período colonial, em que os benefícios da assimilação eram restritos a alguns poucos que serviam de exemplo aos seus irmãos mergulhados nas trevas da ignorância, a elite da FRELIMO pretendia recriar toda a nação à sua imagem. Não pretendo afirmar, porém, que o socialismo em Moçambique tenha sido apenas um projecto mais ambicioso de assimilação. Embora o sistema assimilacionista possa ter fornecido uma base ao socialismo da FRELIMO, as diferenças entre ambos são muito reais. Para alcançar o estatuto de assimilado, um indígena tinha necessariamente de satisfazer determinados critérios legais, e a verdade era que esse seu novo estatuto não era mais do que uma entrada parcial no projecto de modernização colonial. Pelo contrário, o objectivo da FRELIMO era subverter inteiramente este sistema e criar a sua própria forma de modernidade.
Durante a fase inicial do período socialista, o âmago do programa da FRELIMO para a construção de uma nação moderna era a criação de um homem novo. Na perspectiva dos líderes revolucionários, este processo tinha já começado nas zonas libertadas que a FRELIMO tivera sob o seu controlo durante o período de luta armada contra os portugueses. O homem novo seria algo completamente diferente. De acordo com um dos principais teóricos da FRELIMO neste domínio específico, Sérgio Vieira, o homem novo representava uma ruptura decisiva com as suas encarnações anteriores — homem feudal, homem colonial e homem burguês (1977, p. 3). O homem burguês era de importância relativamente menor na análise de Vieira, já que em Moçambique, durante o período colonial, não se tinham desenvolvido as condições necessárias à criação em ampla escala de uma burguesia independente. Após a partida dos portugueses existia apenas uma pequena burguesia (ibid., p. 9). De muito maior importância eram o homem feudal e o homem colonial. O primeiro estava ligado à cultura e às estruturas de poder «tradicionais», descritas como desiguais, patriarcais, gerontocráticas, supersticiosas e estáticas. Todavia, de acordo com Vieira, este sistema não existia por si só, mas enquanto subsidiário do colonialismo, já que até o mais poderoso chefe indígena devia obediência ao mais subalterno dos funcionários coloniais (ibid., p. 11). A última categoria, a do homem colonial, correspondia aos assimilados: «[o homem colonial] é um pequeno-burguês que procura recuperar e integrar modelos tradicionais, feudais, na sociedade burguesa» (ibid., p. 9).
À excepção dos antigos assimilados, ninguém sabia ao certo o que seria este homem novo. Teria de se basear na ciência, na «racionalidade» e no trabalho colectivo, mas estava ainda em processo, era algo que não nascera ainda por completo (ibid., p. 25). Os assimilados tomavam como modelo a identidade nacional portuguesa; pelo contrário, o homem novo seria um ser universal, bem como a encarnação da emergente personalidade e cidadania moçambicana. De acordo com Cahen, este processo era uma criação de uma elite que não concebia a existência de um Estado sem uma nação e procurava, assim, criar uma nação à sua imagem (1992 e 1993). Ainda que esta ideia de uma recriação dramática da personalidade moçambicana pudesse ter interessado relativamente pouco à vasta maioria da população, o seu poder de atracção para os militantes da FRELIMO era bastante real. Como me foi dito por um antigo membro do partido: «Ser chamado um homem novo por Samora Machel era verdadeiramente emocionante. Nós íamos construir uma nova nação, parte de um novo mundo, era tudo urgente [...] vivíamos num estado permanente de exultação.» O homem novo seria a expressão concreta — ou, para usar a terminologia da época, a vanguarda — do grande projecto de modernização. Seria um novo tipo de cidadão, a verdadeira encarnação da ideologia de modernidade da FRELIMO.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (2)
AS ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS DA ELITE MOÇAMBICANA DOMINANTE
Existem em Moçambique diversos grupos que podem reivindicar o título de elite — os régulos (autoridades «tradicionais»), os líderes religiosos, os estrangeiros associados a organizações internacionais poderosas, os membros mais importantes da classe mercantil indiana e os altos membros da RENAMO, antigos rebeldes que constituem hoje o partido de oposição oficial. Neste artigo concentrar-me-ei num grupo específico que parece constituir a elite socialmente dominante, ainda que não incontestada, de Moçambique e que é essencialmente composto pelos membros do partido governante da FRELIMO e pelos seus familiares e associados próximos. Não pretendo afirmar que este grupo é completamente homogéneo; de facto, existem diversas facções e clivagens sociais no seu seio. Tais clivagens estão relacionadas com os diversos antecedentes sociais dos membros da elite e incluem a etnia, a região, a religião e o nível de instrução. Existem também fissuras entre a velha guarda revolucionária, que participou na luta pela libertação, aqueles que aderiram ao partido pouco depois e a nova geração de «tecnocratas» que assumiram posições de destaque na fase final do período socialista ou já depois do mesmo. Algumas das actuais facções dentro da hierarquia da FRELIMO resultam destas diferenças, ainda que tendam geralmente a emergir em torno de tópicos como o papel da economia de mercado, a democratização e outras grandes questões. Embora muitos membros da elite tenham sérias divergências de opinião e, em privado, possam manifestar verdadeira animosidade uns pelos outros, há que não exagerar a importância destas clivagens. Para a liderança baseada em Maputo, pelo menos até ao momento, essas diferenças tendem a ser limitadas por um conjunto mais alargado de interesses comuns. É frequente a pertença simultânea a diversas facções, com pessoas a juntarem-se a uma ou outra em função do assunto em causa (Sumich e Honwana, 2007; Sumich, no prelo). Grande parte da liderança baseada na FRELIMO mantém-se unida através de laços de lealdade mútua, de amizade e por vezes de parentesco, bem como por meio de um sentido de identidade partilhada, resultante de experiências similares e reforçada por uma base ideológica. Embora as fissuras internas sejam muito reais, a elite de Maputo tem conseguido apresentar ao mundo exterior uma frente mais ou menos unida. Passarei de seguida a explicar as origens desta ideologia partilhada e as razões pelas quais constitui uma característica tão marcante dos estratos mais destacados da elite de Maputo.
A ideologia de modernidade defendida pelos membros da elite da FRELIMO está intimamente relacionada com os seus antecedentes sociais e a sua situação dentro do sistema colonial. A FRELIMO surgiu em 1962 como uma frente alargada que aliava três partidos de cariz mais regional (Mondlane, 1969; Newitt, 1995). Os primeiros anos do partido foram marcados pelo facciosismo e pela dissenção interna (Opello, 1975). Finalmente, entre 1968 e 1970, após uma série de lutas intestinas e do assassinato do primeiro líder, Eduardo Mondlane, as divisões internas atingiram o seu desfecho. A principal divisão do partido resultava da oposição entre as duas facções principais — uma radical e outra mais conservadora. A facção conservadora pretendia centrar os esforços na independência e, regra geral, seguia uma linha afro-nacionalista, enquanto a facção radical estava empenhada em universalizar a revolução social, vendo a independência apenas como um primeiro passo. O objectivo dos radicais era assumir o controlo do Estado e utilizar esse poder para remodelar completamente Moçambique e construir uma nova sociedade. Em 1970, a facção radical tinha triunfado sobre os seus adversários mais conservadores e unira o partido sob a sua liderança, ou, pelo menos, decidira adiar as divergências internas para depois da obtenção da independência (Vines, 1996). A facção radical assentava numa aliança entre uma pequena coligação de assimilados urbanos do Sul, mulatos, brancos e indianos, e uma elite emergente, mais rural, de moçambicanos do Norte educados em missões, excluindo frequentemente muitas elites do Centro do país que tinham antecedentes sociais diferentes (Hall e Young, 1997)(5). Embora os nortenhos, mais rurais, representassem uma secção importante da elite governante, concentrar-me-ei aqui nos assimilados do Sul, já que grande parte da ideologia da elite de Maputo é o resultado das experiências deste grupo, constituindo a base do «campo unificador» dentro do qual a elite tem operado. Os radicais do Sul eram não apenas comparativamente mais instruídos e mais empenhados na implementação da política geral da FRELIMO, como também desempenharam um papel central na formação da ideologia de modernidade, tendo deixado no partido e no Estado uma marca profunda que se manteve até ao período actual, mais tecnocrático.
Para compreendermos os tipos de posições ideológicas defendidas pela liderança da FRELIMO teremos de recuar à fase tardia do período colonial (1930-1975). Os assimilados constituíam uma elite africana emergente, em grande medida criada pelo Estado colonial com vista a limitar o poder das velhas elites crioulas (Cahen, 1992 e 1993). Este grupo tinha, geralmente, laços muito mais fracos com as formas de poder «tradicionais», constituindo, durante o período colonial, uma espécie de pequena burguesia africana, que era uma reduzidíssima minoria dentro da população indígena de Moçambique. Uma das estimativas mais comuns contabiliza-os em cerca de 5000 indivíduos numa população que rondaria os 8 200 000 antes da libertação (Sheldon, 2002). A estimativa talvez peque por defeito, já que inclui apenas as famílias mais importantes da classe dos assimilados (6). No entanto, independentemente do seu número total, os assimilados exerceram até à abolição oficial do sistema, em 1961, uma influência desproporcionada em relação à sua pequena dimensão numérica.
Para se obter o estatuto de assimilado era necessário satisfazer determinados critérios legais. Os candidatos tinham de jurar lealdade ao Estado colonial, falar apenas português nas suas casas, adoptar hábitos «europeus», abandonar crenças «bárbaras» e obter um atestado de um funcionário português que garantisse a sua probidade. Quem cumprisse estes requisitos recebia, teoricamente, os mesmos direitos legais que os portugueses. Embora assim não fosse na prática, os assimilados obtinham de facto uma ampla variedade de privilégios, como a isenção de trabalhos forçados, o acesso facilitado à residência urbana, à educação e ao emprego, e um pequeno conjunto de direitos civis, passando a estar sob a alçada da lei civil, ao contrário dos indígenas, que estavam sujeitos à lei «consuetudinária» (Mondlane, 1969; O’Laughlin, 2000; Penvenne, 1982 e 1989). Os assimilados tinham a possibilidade de obter um emprego nos mais altos bastiões da economia colonial a que um indivíduo de cor poderia aspirar, tornando-se assim enfermeiros, professores, ferroviários e pequenos funcionários públicos. O sistema colonial tendia a concentrar o capital mercantil nas mãos de interesses estrangeiros, pelo que a burocracia era a única via acessível a esta elite colonial emergente (Cahen, 1993, p. 49). Graças a estes privilégios, os assimilados eram geralmente vistos como um grupo à parte, distinto dos portugueses, bem como do resto da população africana (Penvenne, 1982).
(5) Durante o período colonial, os assimilados constituíam uma categoria privilegiada e detinham «tecnicamente» os mesmos direitos que os colonos portugueses. Se bem que muitos destes direitos não tivessem expressão prática, estes indivíduos gozavam de vantagens significativas em comparação com os chamados indígenas, que constituíam a vasta maioria da população africana de Moçambique.
(6) De acordo com uma comunicação pessoal de Paulo Granjo, fontes primárias (AHM 1961) contabilizam 1658 pessoas, incluindo as crianças, que obtiveram o estatuto de assimilado em Moçambique desde o início de 1950 até ao final de 1960, último ano em que este vigorou oficialmente. Tendo este estatuto sido instituído em 1917, é plausível que o número global de assimilados fosse superior à estimativa citada, mas não de uma forma muito marcante.
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich* (1)
(Por sugestão do leitor Paulo Ferreira, publicamos este artigo de Antropologia Política sobre Moçambique, originalmente editado pelo Instituto de Ciências Sociais. Devido à sua extensão será dividido em partes)
INTRODUÇÃO
Um dia, durante o meu trabalho de campo em Maputo, a capital moçambicana, tive uma conversa com uma amiga, Josina. Na altura eu investigava a formação da elite governante de Moçambique e os seus modos de auto-reprodução social. Os pais de Josina tinham estado envolvidos na luta pela libertação, tornando-se membros destacados da FRELIMO após a independência(1). Embora alguns membros da sua família tenham militado num movimento revolucionário socialista, Josina autodefine-se como uma capitalista fervorosa e durante a nossa conversa defendeu reformas neoliberais puras e duras para Moçambique. Quando exprimi as minhas dúvidas de que semelhante modelo pudesse ajudar os mais pobres, ou seja, a esmagadora maioria da população, Josina respondeu que o meu problema era estar profundamente equivocado em relação à natureza da sociedade moçambicana. Na sua opinião, os pobres não tinham falta de oportunidades — simplesmente, não estavam interessados nelas:
"Há aqui uma enorme diferença que tu não compreendes, acho eu. Passas o tempo todo com pessoas como nós, instruídas e ocidentalizadas. Aqueles que são privilegiados, como nós, têm gostos e desejos que são muito diferentes dos das outras pessoas todas. É realmente uma questão de interesses. A maioria dos moçambicanos são camponeses, têm uma machamba [um pequeno lote de terra], vivem da agricultura, e é isso que lhes interessa e que os satisfaz. A sério que não precisam de instrução nem de mais nada, e a verdade é que nem sequer a desejam. Por exemplo, o meu pai tem raízes pobres, rurais. Gostava de ler, mas não estava assim tão interessado em continuar a estudar(2). Nunca se interessou por essas coisas até ao momento em que percebeu tudo o que os portugueses tinham, em comparação com o pouco que ele tinha. A maioria das pessoas deste país não está simplesmente interessada em nada disso. Só querem que as deixem cultivar as suas machambas em paz. Nós, os privilegiados, é que queremos e precisamos dessas coisas."
Aquilo que me interessou na resposta de Josina foi não apenas a sua semelhança com algumas das antigas justificações coloniais para a desigualdade, mas também o facto de ser um discurso bastante comum entre as pessoas ligadas à elite dominante, baseada no partido da FRELIMO(3). Ao longo da minha investigação notei que existia frequentemente entre os membros desta elite o pressuposto implícito de que, por serem instruídos e «modernos», eles eram fundamentalmente diferentes da vasta maioria da população do país. Este sentido de diferença interessou-me, já que era bastante comum entre pessoas que deviam a sua posição de privilégio a uma ligação pessoal ou familiar a um movimento político que, no seu período revolucionário, defendera um nacionalismo supostamente igualitário. Aparentemente, as noções de modernidade que outrora tinham estado na base de uma ideologia potencialmente emancipatória eram agora indicadores de diferença social.
O presente artigo traça as mudanças e continuidades de uma ideologia de modernidade entre uma elite baseada em Maputo desde as suas formulações iniciais sob o regime revolucionário de Samora Machel (1975-1986), passando pela queda do socialismo, até à introdução da democracia neoliberal sob a presidência de Joaquim Chissano (1986-2005). Após a independência, Moçambique conheceu um turbilhão de mudanças políticas e sociais. Em 1977, a FRELIMO apresentava-se como um partido marxista-leninista de vanguarda; em 1983, durante uma brutal guerra civil, foram introduzidos os primeiros esforços de uma perestroika moçambicana e, a partir de 1989, o partido começou a evoluir no sentido da democracia neoliberal. Contudo, subjacente a estas mudanças dramáticas, tem persistido, ainda que em mudança também, uma ideologia de modernidade que se tem revelado central nos esforços da elite para legitimar o seu papel e o seu estatuto em Moçambique, tanto dentro do próprio grupo como perante a nação em geral. Baseio-me aqui no trabalho de Ferguson, o qual defendeu que, em África, a «modernidade» deve ser entendida como uma categoria «local» utilizada pelos indivíduos como meio de explicarem o seu lugar no mundo e como poderosa afirmação de igualdade (1999, 2002 e 2006). Em Moçambique, as ideias são também categorias «locais» utilizadas pelos indivíduos para explicarem o mundo, mas é importante sublinhar que há frequentemente mais do que uma única e incontestada categoria local. Além disso, no caso de Moçambique, esta categoria «local» tem diversos significados; a ideologia de modernidade da elite baseia-se em ideias de igualdade com o mundo exterior, das quais retira legitimidade, mas constitui também um poderoso instrumento para a criação de desigualdade. A promoção da elite enquanto modelo ideal de modernidade e enquanto único sector social capaz de introduzir essa modernidade na nação constitui, por si só, uma reivindicação de poder. Fornece um plano para a estruturação e implementação de um conjunto de crenças partilhadas e uma justificação para a hierarquia; nesse sentido, serve de «campo unificador» que promove a coesão das elites (v. Gledhill, 2002)(4). Para compreendermos adequadamente esta ideologia de modernidade tere- mos de a analisar etnográfica e historicamente desde a independência do país até à actualidade. Nas páginas seguintes analisarei o modo como esta ideologia se converteu no projecto de uma elite nacionalista para a criação de uma nação independente. Como veremos, durante o período imediatamente posterior à independência a ideologia de modernidade da elite, na sua forma nacionalista revolucionária, exprimiu-se por meio de uma vasta tentativa de redefinição do lugar de Moçambique no palco mundial, já que o território passara de colónia dependente a nação soberana com base na mobilização massiva da população. Este primeiro esforço fracassou devido à crise económica e a uma devastadora guerra civil que estalou em 1977 e se prolongaria até 1992. O colapso da versão nacionalista revolucionária da modernidade não lançou o descrédito total sobre o ideal; pelo contrário, conduziu à reformulação conceptual do mesmo. No período pós-socialista, a ideologia de modernidade foi despojada de grande parte da sua antiga ênfase sobre a mobilização de massas. Em vez de redefinirem o lugar de Moçambique entre a comunidade global das nações, muitos membros da elite procuram agora integrar-se a si próprios em poderosas redes internacionais. Assim, esta ideologia funciona actualmente, cada vez mais, como um sinal de status e uma afirmação de poder social por parte da elite. Por um lado, continua a legitimar a posição das elites ao manter de pé a promessa de progresso e, por outro, permite a essas mesmas elites afirmarem-se como as únicas detentoras das competências e capacidades necessárias ao cumprimento dessa promessa. Na prática, a ideologia de modernidade funciona também como um símbolo de afirmações quotidianas de poder social, as quais, ainda que possam ser contestadas, são normalmente compreendidas pela população em geral — pelo menos em Maputo, a zona que me é mais familiar.
Para ilustrar a minha argumentação começarei por examinar as origens e as transformações sociais da elite em questão e o modo como esse processo permitiu o desenvolvimento da ideologia de modernidade. Passarei de seguida a analisar o modo como esta ideologia é inculcada nas gerações mais jovens através da educação e a forma como se exprime através da auto-apresentação e do consumo. Concluirei o artigo com uma breve análise do contributo do caso moçambicano para a literatura antropológica e, mais especificamente, para os temas de África e da modernidade.
* LSE, Crisis States Research Centre/Development Studies Institute.
(1) A FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) conduziu uma bem sucedida luta de libertação contra Portugal, o poder colonial, e tem-se mantido continuamente no governo desde a independência do país, em 1975.
(2) Durante o período colonial, a vasta maioria da população era analfabeta. O facto de o pai de Josina saber ler e ter acesso a livros pode significar que os seus antecedentes eram mais privilegiados do que ela supõe.
(3) Descrevo a formação desta elite na secção seguinte do presente artigo (Ideologias de modernidade da elite moçambicana).
(4) Não pretendo afirmar que esta ideologia é incontestada — os debates são frequentes e acalorados no seio da elite da FRELIMO. Defendo, sim, que esta ideologia fornece as bases do discurso utilizado pela elite, bem como muitas das premissas, mesmo para perspectivas rivais.