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quarta-feira, 12 de maio de 2010

O dia em que meu pai foi Ringo Starr


(Desenho João Neves)

Quando o JSP aqui homenageou o Roberto Carlos e o Barroca, fez referência ao Clube Roberto Carlos da Mafalala e lembrei-me de mais esta história. Por inabilidade minha, da qual não são culpados, para a entenderem ajudaria, para quem não viveu esses tempos, ler A Curva do Rio, do Naipaul, e qualquer dos Coetzee, que descreva a África do Sul.
O Barroca era um português de gema. Um Oliveira da Figueira na figura e na capacidade adaptativa. Era um bravo. Na adolescência tinha sido mandado, de castigo, para a metrópole, fazer o equivalente ao 9º ano, num internato de padres, no Norte de Portugal. Não o vergaram. Na tropa (só dois do grupo do meu pai lá foram parar) perdeu a arma durante a recruta. Foi mandado noutro castigo, agora não familiar, para a guerra no Norte de Moçambique. Debaixo de um ataque, ganzado e bêbado, foi o único a responder ao ataque inimigo. Apocalypse Now avant la lettre. Nestas andanças cafrealiza-se. Recusa a cultura do colonizador. Celebra a vida onde ainda ela faz sentido. Entra pelos compound e descobre que há uma grande festa moçambicana enquanto o caldeirão não rebenta. Arrasta os amigos e leva-os a essa enorme descoberta. Uma espécie de Os últimos dias de Saigão. Um dia desafia-os para irem a uma festa no Clube Roberto Carlos. Música do melhor. Dilon Djindji , rock e claro, música do patrono. Mal saíram do carro foram muitíssimo bem recebidos. Com tombazanas e tudo. Todos, eram seis, ficaram com os nomes de um dos Beatles, mesmo que repetido. Mesmo o meu pai, i.e. o Ringo, o Ninito, i.e. o George, e o Luís Filipe. Esse mesmo Luís que entrava, em 1978, sem camisa, nas tascas da Almirante Reis, em Lisboa, a berrar que era o Sandokan e a passar por cigano (e que na Mafalala era o Paul). Essa festa, com muito de tudo e do bom, acabou com uma carga da brigada da polícia montada que se desviou dos Beatles e varreu os outros à bastonada. Penso que terem vivido isso implicou escolhas fortes. Não terá sido o primeiro momento, também não foi o último, mas foi um dia decisivo na conversão deles à democracia e ao multiculturalismo em liberdade. O Barroca, como vos disse o JSP, morreu no Brasil. Os outros andam por aí no samba-rock. É do fado. Gilberto Freire tinha razão.

Josina MacAdam




(Fotos dos Beatles da Mafalala)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Splish Splash

Faleceu tranquila e inesperadamente a senhora Laura Moreira de Braga, lá do lugar de Cachoeira do Itapemirim, Espírito Santo. Prénom, Lady.
Seu filho foi surpreendido pelo passamento em Nova Iorque, capital cultural dos USA. Os gringos, diz-se, sentem-se órfãos de seu próprio soberano, sim, alegadamente órfãos, uma vez que apenas está estabelecido: “Elvis left the building”, embarcou num Cadillac movido a anfetaminas e peanut butter... e desapareceu. Embora, aqui e ali, são mais que muitas as aparições em Santo impersonator ou em Graça e Espírito no Convento de Graceland.

Bom, já se terá dito tudo sobre todos os aspectos do fenómeno Presley, como catalizador da revolução social de 60. Mas, mais a Sul, segue relativamente ignorado do egocentrismo anglo-saxónico o caso de Roberto Carlos Braga. Dinastia de um só Rei.
Embora Elvis anteceda Roberto, circunstância que suscita desentendimentos sobre precedências e originalidades, propomo-nos destacar uma semelhança e um contraste entre ambos os Reis. Tanto Elvis como Roberto jamais se pronunciaram fosse sobre o que fosse, nem nunca se deixaram aprisionar nas ordenações da crítica. Eis a minha música e submeto-a ao veredicto popular. E assim surgiram as massas e o consumo das massas, como supremo fiel da qualidade que é quantidade, explanando uma estética minimalista. Eu gosta de você; eu não gosta de você. Splish Splash.

Elvis, enquanto branco pobre do Delta, redneck de condição, protagonizou a síntese musical dos explorados brancos e negros, disseminou-a numa viagem individual que fez escala urbana, universal. Roberto, é ele próprio uma síntese. Braga lusitano, caboclo, mulato brasileiro.
O Rei do Sul, ao invés do congénere do Norte, irrompeu no mundo urbano, portanto, colectivamente identificado naquilo que designaram de Jovem Guarda. Postura pop light por oposição às erudições da Velha Guarda e ao pop(ular) pesado das autoridades militares e eclesiásticas. Um mundo dividido em escolas diversas e autorizadas, com direito a um momento plural no calendário da ditadura: o Carnaval e outras inconsequências ao longo do ano
O pop light, esvaziado, semanticamente ‘aberto’ de Roberto Carlos ajudou a desconstruir o edifício simbólico dos generais e dependentes. Sem nada dizer, o pop, o sentimental simples, o religioso das canções do Rei unificaram as massas, que é dizer, as pessoas. Deram-se contas que existiam, que eram muitas e que não eram diferentes. Splish Splash.

Involuntariamente anti-intelectualista, distraidamente anti-elistista, o repertório do Rei semeou de forma paulatina as sementes da modernidade. Inconformismo, desobediência civil- “Quero que vá tudo para o Inferno” e “É proibido Fumar”, consciência social e sindicalismo- “Caminhoneiro”-, urgência na ruptura da ordem estabelecida- “Quando”, “O Portão”-, liberdade individual-“O Calhambeque”-, liberalidade e prazer- “Namoradinha de um Amigo Meu”-, diversidade- “Mulher Pequena”, “Mulher de 40”, “Jesus Cristo”, “Nossa Senhora”, “Se diverte e Já não Pensa em Mim”- micromanagement “Detalhes”, Ambiente e Ecologia “As Baleias”, “Amazónia”. Pois é, e o Rei despachou 120 milhões de discos e mereceu dois Grammy.

Tudo isto sem falar, apresentando-se de fraca figura- ficou sem parte de uma perna num acidente ferroviário- e ostentando um sorriso tímido que muitos juram ser a marca do idiota. Num filme de Hector Babenco, creio, um bando de presidiários, ou jovens delinquentes, está prestes a evadir-se por um buraco no muro da prisão. Entre estes, um jovem deficiente, então dizia-se coxo, um Roberto Carlos impersonator de rigueur, hesita e não foge. E justifica para os companheiros de fuga: Lá fora não sou ninguém; cá dentro sou uma estrela”.

PS: Parabenizando Lula da Silva e recordando um grande português: José Henrique Barros ‘Barroca’. Foi ele quem nos franqueou, em meados de 70, as portas do Clube Roberto Carlos na Mafalala. Então, blacks only.
Por ironia do destino, o Barroca veio a morrer em Belo Horizonte, Minas Gerais, alegadamente assassinado.”Amigo”, É DURO SER ESTÁTUA.

JSP

(O pica-pau áparece aos 7:51)