
Provavelmente já nem os implicados se lembram. Celebrava-se o 13 de Maio e o jornal era de extrema-esquerda. Bom, na altura de extrema já não teria muito mas a secção cultural do dito – da qual a humilde signatária deste post fazia parte, sim, que eu não sou como alguns que quando lhes lembram o passado se põem a assobiar para o alto dando-se ares de respeitáveis colunistas adeptos desde a mais tenra idade da «sociedade aberta» – adelante: a citada secção alimentava um saudável e semanal espírito anarquista que incluía socas lançadas à cabeça dos membros mais obtusos (que nós cultivávamos muito a inteligência e na altura usavam-se muito socas sendo portanto o que tínhamos à mão...), caralhadas e murros na mesa quando era preciso, tudo isto, julgo não mentir, regado apenas a café de saco que a malta nesses tempos vivia tesa embora feliz.
Celebrava-se, pois, o 13 de Maio e resolvemos fazermo-nos ao assunto. Publicaram-se vários textos – devidamente enquadrados por uma análise sociológica que pretenderia dar uma certa credibilidade à desbunda, a qual, análise, sairia assinada por conhecido arquitecto, na altura ilustre desconhecido, e cujo conteúdo retomaria apenas, penso não mentir, aqueles clichés da religião ser o ópio do povo, bla, bla, bla, que OVNIS não era assunto que um marxista se dignasse referir –, e é um desses textos que lembro sempre com particular clareza e distinção no 13 de Maio. Rezava assim (cito de cor):
Estavam três pastorinhos a pastorear muito sossegadinhos em Fátima quando, de súbito, avistam a Nossa Senhora em cima de uma azinheira (julgo que é uma azinheira mas se me estiver a enganar na árvore que isso fique por conta da minha ignorância dos meandros da coisa). Estupefactos, mantêm-se mudos e quedos até que um deles mais afoito (não recordo qual) avança e pergunta à aparecida, gargarejando a tirada do Frei Luís de Sousa:
– Quem és tu?
A senhora, sem se deixar intimidar pelos clássicos, responde:
– Sou a Nossa Senhora e venho trazer a verdade ao mundo.
É então que outro dos pastorinhos (e a este também não consigo nomea-lo), dá uma cotovelada para o lado (posso estar a inventar a cena da cotovelada) e comenta:
– Outra marxista!
Já não sei se o texto terminava assim mas sei que deu direito a carta de um leitor anónimo – que, por acaso, viemos mais tarde a identificar embora alguns anos antes dele se transformar num respeitável director dos nossos media (visto que também por lá andava mas era dos sérios, nada de socas...) – que se indignava com a falta de respeito demonstrada pela supracitada secção cultural pelos leitores católicos, carta a que respondemos, com coeso espírito de grupo, dizendo que o jornal não tinha leitores muito menos católicos. Depois separámo-nos todos e a maioria de nós fez-se à vida, com o anónimo a subir altíssimo na carreira.