Não se escreve em definitivo sobre nada. E a experimentação na escrita não deixa de ser uma experimentação dos conceitos ou da matéria que para lá caminhe entre o informe e a forma – não há como a escrita para pensar e não há pensar que não seja ficção. Falou o José Gil, na última aula, que venho glosando numa espécie de vontade de ser eco, do risco como pensamento, isto é, de que pensamento e risco seriam sinónimos. Tenho andado a tentar perceber isso. Uma coisa acho que entendi: as teorias cheias de consistência – e nelas incluo as plenas de inconsistência, a medida contrária que afirma a irracionalidade mas não explica as cidades nem a romanização por exemplo, menos ainda o pão e circo, o canibalismo e outras façanhas humanas consistentes e constitutivas do ser, como também o extermínio selectivo – são formas de esquivar ao risco.
Quem teoriza no arame faz uma coisa que o teórico consistente não é capaz de fazer.Olhando-se não se reconhece na imagem sempre movente e aí talvez escape ao narcisismo, doença destes tempos de filhos únicos e protecções materno-paternais ansiosas.
A imprecisão do que se quer fixar é uma constante e o desejo de forma, outra. Quem, como se diz, tem os pés na terra, diante do bitoque de que fala o Gil, esquece o resto e converte-o em entretenimento. Começa polémica e risco o que começa e se foca em qualquer coisa discernível e termina culinário. Estes últimos, os dos pés na terra, são muito úteis como polícias. Os outros não têm finalidade. São mesmo inúteis. Talvez aí comece qualquer coisa.
FMR
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quarta-feira, 17 de março de 2010
anaCrónicas 9
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terça-feira, 16 de março de 2010
anaCrónicas 8
Glosando o José Gil que falou de cidades inteligentes numa entrevista a propósito da sua última aula.
Será uma cidade inteligente a que cria uma fronteira entre a cidade e o rio?
Será uma cidade inteligente a que produz a amálgama humana indiferenciada nas horas de ponta ao ponto do corpo automático, da mecânica desistente, do cérebro embotado de esforço resistente?
Será uma cidade inteligente a que tem milhares de casas desabitadas e milhares de cidadãos sem habitação condigna?
Será uma cidade inteligente a que está sempre em obras e que sem obras não vive porque certamente já não se revê nem conhece?
Será uma cidade inteligente a que vê cair casas antigas como cogumelos nascendo em período de humidades férteis?
Será uma cidade inteligente a que esvazia humanamente os centros históricos, deixando a pedra bela entregue à corrosão do vazio?
Será uma cidade inteligente a que não cria uma vida cultural integrada e exposta à escolha inteligente de cada um no trajecto de vida diária dos seus afazeres e pausas?
Será uma cidade inteligente a que vive mais do marketing que a promove do que da vida que cria e confunde vida com “animação”(insuflada ginástica autárquica de flores de plástico)?
Será uma cidade inteligente a que multiplica parques de estacionamento ao ponto de caminharmos para uma cidade dos automóveis mais do que para uma cidade das pessoas?
Será uma cidade inteligente a que necessita da multiplicação dos policiamentos na rua?
Será uma cidade inteligente a que a qualquer quantidade de água responde com a multiplicação dos lagos espontâneos a fazer de nós primatas anfíbios?
Será uma cidade inteligente a que multiplica os signos de uma tradição vazia para turista ver, mais logotípica que vida própria?
Será uma cidade inteligente a que não irradia o ruído interminável da primeira ponte, ruído dos rodados sobre a conhecida grelha metálica, a multiplicar a agressão sonora constante pela bacia fora do rio que o reflecte em toda a cidade ribeira?
E onde uma cidade dos afectos expansíveis? Do prazer da polémica em longos trajectos de silêncio feitos a pé? Dos passeios sem limite que não sejam os passeios determinados como passeios numa lógica mais de zoo humano que de liberdade cívica e de passos errantes? Uma cidade em que a vida se misture com a inteligência criativa e dela se não distinga como o próprio prazer que se cria numa nova arquitectura de relações surpreendentes.
Será uma cidade inteligente a que não permite a inteligência, mas produz a irritabilidade e, por assim dizer, legitima a cólera e o atropelo constantes?
E onde há cidades inteligentes? Elas existem. Já vimos grandes metrópoles em que o espaço para respirar é um espaço real e o fluxo da vida não produz constantemente o registo agressivo e xenófobo.
Valha-nos certamente o Bristish Bar, onde o tremoço ainda faz bandeira e a polémica vital é uma postura de todas as famílias que o frequentam.
FMR
Será uma cidade inteligente a que cria uma fronteira entre a cidade e o rio?
Será uma cidade inteligente a que produz a amálgama humana indiferenciada nas horas de ponta ao ponto do corpo automático, da mecânica desistente, do cérebro embotado de esforço resistente?
Será uma cidade inteligente a que tem milhares de casas desabitadas e milhares de cidadãos sem habitação condigna?
Será uma cidade inteligente a que está sempre em obras e que sem obras não vive porque certamente já não se revê nem conhece?
Será uma cidade inteligente a que vê cair casas antigas como cogumelos nascendo em período de humidades férteis?
Será uma cidade inteligente a que esvazia humanamente os centros históricos, deixando a pedra bela entregue à corrosão do vazio?
Será uma cidade inteligente a que não cria uma vida cultural integrada e exposta à escolha inteligente de cada um no trajecto de vida diária dos seus afazeres e pausas?
Será uma cidade inteligente a que vive mais do marketing que a promove do que da vida que cria e confunde vida com “animação”(insuflada ginástica autárquica de flores de plástico)?
Será uma cidade inteligente a que multiplica parques de estacionamento ao ponto de caminharmos para uma cidade dos automóveis mais do que para uma cidade das pessoas?
Será uma cidade inteligente a que necessita da multiplicação dos policiamentos na rua?
Será uma cidade inteligente a que a qualquer quantidade de água responde com a multiplicação dos lagos espontâneos a fazer de nós primatas anfíbios?
Será uma cidade inteligente a que multiplica os signos de uma tradição vazia para turista ver, mais logotípica que vida própria?
Será uma cidade inteligente a que não irradia o ruído interminável da primeira ponte, ruído dos rodados sobre a conhecida grelha metálica, a multiplicar a agressão sonora constante pela bacia fora do rio que o reflecte em toda a cidade ribeira?
E onde uma cidade dos afectos expansíveis? Do prazer da polémica em longos trajectos de silêncio feitos a pé? Dos passeios sem limite que não sejam os passeios determinados como passeios numa lógica mais de zoo humano que de liberdade cívica e de passos errantes? Uma cidade em que a vida se misture com a inteligência criativa e dela se não distinga como o próprio prazer que se cria numa nova arquitectura de relações surpreendentes.
Será uma cidade inteligente a que não permite a inteligência, mas produz a irritabilidade e, por assim dizer, legitima a cólera e o atropelo constantes?
E onde há cidades inteligentes? Elas existem. Já vimos grandes metrópoles em que o espaço para respirar é um espaço real e o fluxo da vida não produz constantemente o registo agressivo e xenófobo.
Valha-nos certamente o Bristish Bar, onde o tremoço ainda faz bandeira e a polémica vital é uma postura de todas as famílias que o frequentam.
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