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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Carta ao Primeiro-Ministro da Cultura, de Fernando Mora Ramos


Dirijo-me a Vossa Excelência pois tutela a cultura e dedica-lhe, segundo o Senhor Secretário de Estado, duas horas semanais. O corte de 38% aplicado às estruturas de criação do teatro e da dança não é só uma diminuição da escala de apoio, como seriam 10% ou 15%. É uma liquidação, um acto de terror. 38% é uma amputação, o que, num corpo já frágil, gerará paralisia e por certo, pois muitos continuarão a teimar viver, condições desqualificadas de agir pelo acrescento de precariedade estrutural, técnica e artística, ao exercício pluridisciplinar. O que alterará radicalmente a eficácia da sua função social, remetendo as artes para a trincheira e a pura resistência – não há muito, o I.N.E referia a existência, num ano saudável de crescimento, de um milhão de espectadores de teatro.
Experimente Vossa Excelência cortar 38% ao orçamento doméstico, à gasolina, ao seu gabinete, ao serviço da sua segurança, à verba que tem para as despesas de representação, à limpeza do palácio, ao que quiser e logo verá que instaurará a entropia. O resultado deste corte será, a prazo, o regresso ao folclore servil de antes de Abril, aos viras e torna a virar de antigamente desaparecendo o que a dinâmica democrática consolidou e que, por consagração de facto no real português – o teatro e a dança existem no todo nacional, mesmo não sendo fruto de uma política - também a fundou, qualificou e expressou, à democracia.
O projecto de manter apenas os Teatros Nacionais para a Senhora Merkel ver é pequena política, forma de fingir um cosmopolitismo e um avanço civilizacional que se ignora como desígnio  – que país será europeu sem um sector de iniciativa estatal, teatros públicos, uma visão nacional da sua estruturação? Para nós trata-se só, daqui em diante, de simular pela parte a existência do todo, os nacionais como o próprio teatro, álibi de esperteza a fazer de conta que se respeitam os imperativos constitucionais do acesso à criação e fruição artísticos.
O país não é Lisboa e Porto e Lisboa e Porto não são o seu centro. As companhias de teatro, aos quase 38 anos de democracia – o número do corte -, já deveriam ter-se convertido num sector público ágil em consonância articulada – isso seria uma política realizável com os meios havidos - com as autarquias, as regiões plano e as estruturas de criação. É assim na Europa. Se falamos de integração não pratiquemos a periferia, a marginalização do que é europeu. E europeu não é cortar cegamente, isso é, ao invés, uma forma de resolver irracional e desarticuladora de um devir europeu que o teatro e a dança são. Não acredito que Vossa Excelência quando a frequenta, a Europa europeia, não a identifique justamente com os seus espaços culturais, em qualquer ponto da sua própria geografia, de Bilbao a Edimburgo. Nessa Europa europeia os Estados desenvolveram políticas artísticas nacionais, no território e respondendo aos desequilíbrios demográficos. Ninguém é excluído do acesso às criações artísticas que quotidianamente praticam tradição e modernidade, Shakespeare e Beckett, Strindberg, Ibsen, ou Ésquilo, Sófocles, um Rei Édipo ou a Flauta Mágica. Por cá, o desprezo por Camões, dramaturgo, Gil Vicente, o nosso Shakespeare e génio europeu, fazem com que o português tenha entrado numa espiral de desqualificação e expressão de pensamento trágicas. Mas o idêntico desprezo por Fernando Pessoa, Jorge de Sena ou Natália Correia, pela encenação de textos narrativos, de Carlos Oliveira a Lobo Antunes, por Luís Miguel Cintra - prémio Camões - entre outros criadores teatrais de valor reconhecido, impede-nos de aceder à modernidade tão propalada pelos decisores, assim como nos afasta de novo do convívio com a dramaturgia europeia actual, de Brecht a Barker ou Martin Crimp. O teatro e a dança são, com a investigação científica e sectores de produção de ponta, o que nos aproxima dessa Europa europeia.
São artes com um potencial educativo profundo, de dimensão cognitiva iniludível e de um fazer que pensa, em que emergem na representação formas de pensar – “teatro de ideias” chamou Antoine Vitez (Dir. da Comédie) a Electra. Mas a arte não é pedagógica por ser pedagogia mas por ser arte e isso respeita-se, nos lugares em que Europa e civilização avançada se casam. Um país que destrói o teatro e a dança faz o que os talibãs fizeram com os budas, uma barbaridade e coloca-se do lado do que as ditaduras fazem, destrói a possibilidade da prática da vivificação da memória, esse “perigo” que mostra que tudo muda e permite, no presente, convocar a tragédia reconhecida para que se evite. Censurar, por via financeira, o debate democrático que as artes possibilitam e estimulam, atacando assim o teatro, veículo essencial de prática da língua é um crime de lesa pátria.
Vossa Excelência sabe que os cortes ao teatro e à dança não têm expressão na dívida. Se o engano de trezentos milhões nas contas do orçamento nada significa, como afirmaram as Finanças, o que significará o pouco que se investe nestas artes? Sei que os demagogos e populistas dirão, “lá estão estes”,“querem privilégios” e outro tipo de ordinarice mental e verbal – ninguém enriqueceu com o teatro ou a dança e nenhum dos seus praticantes dedicados investe na bolsa ou pratica deslocalizações e fugas de capitais. A voz do vulgo não é a da razão e um país inculto não terá futuro e a cultura artística elaborada só pode fazê-la quem fizer dela profissão, o mesmo que para qualquer sector. Falo-lhe do que gerações de políticos não fizeram de criação de um dispositivo cultural, não apenas dos que praticam as artes e também da existência de mais de vinte escolas de formação teatral, nos ensinos secundário, politécnico e universitário, frequentadas por milhares de jovens que, deste modo, também não terão organizações que os acolham, pois as que existem já não respondem ao crescendo imparável das suas “clientelas”– é a dita procura. 
A Senhora Merkel, em Berlim, reforçou o orçamento da cultura em 5%, 50 milhões de euros agora anunciados, um vigésimo do bolo de um território específico, já que os orçamentos das regiões são outros dinheiros, cada região com os seus teatros públicos, como era o caso e é da companhia criada por Pina Bausch em Wuppertal.
Admitamos que, por imperativo de solidariedade nacional, o teatro e a dança sofressem cortes. Seriam certamente simbólicos pois o que fazem, com o pouco que têm, tem ocupado o espaço de um serviço público que o Estado não estruturou. As estruturas de criação substituem-se na realidade à inexistência de uma política cultural.
Sugiro que Vossa Excelência repense no que está a permitir e porventura implementar. Trata-se de um voltar para trás sem regresso a meio de uma viagem a um futuro melhor que tarda em chegar. O país da austeridade não é projecto, este só pode ser o da qualificação dos portugueses, do seu crescimento cultural, condição do económico. As artes são uma das vias da qualificação, na liberdade dos seus exercícios. E esta liberdade não se faz, em nenhum país europeu, fora de um quadro de estruturação pública.
Como Vossa Excelência sabe o discurso da subsidiodependência usado por gente que vive a expensas do orçamento, de modos duplos e triplos, não resolve um problema maior e que é o da estruturação democrática constitucionalizada das artes e da cultura no todo nacional, expressão da nossa identidade plural, tradição, inovação e suas práticas contemporâneas. Daqui lanço portanto o repto a Vossa Excelência que reflicta bem no que se está a fazer e evite o pior.       
Fernando Mora Ramos – Encenador na província

(Publicado hoje, 12 de Dezembro, no Jornal Público)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Dez meses sem Biblioteca Nacional...


Petição Contra o Encerramento da BNP 

No passado dia 8 de Junho de 2010 a direcção da Biblioteca Nacional de Portugal [BNP] anunciou que os serviços de Leitura Geral da Biblioteca encerrarão durante dez meses (de 15-11-2010 a 01-09-2011) e os Reservados durante cinco meses (01-04-2011 a 01-09-2011). Como cidadãos e utilizadores da BNP, embora conscientes das inequívocas vantagens inerentes à ampliação do edifício de depósitos da biblioteca, consideramos o planeamento dos trabalhos estipulado inaceitável e solicitamos que seja repensado.
O encerramento durante quase um ano de uma instituição que detém colecções sem alternativas (Secção de Reservados, espólios do Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea, Secção de Periódicos por exemplo) é incompatível com o prosseguimento da actividade científica de largas dezenas de estudantes e investigadores que necessitam desse material.

A indisponibilização dos acervos da BNP comprometerá a viabilização de projectos em curso, muitos deles com financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ou de outras instituições, e porá em causa o cumprimento de calendários e compromissos académicos estabelecidos. O encerramento de uma instituição como a Biblioteca Nacional teria, no mínimo, que ser publicamente comunicado com um ano de antecedência para que as várias partes envolvidas (universidades, instituições de financiamento, estudantes, investigadores) pudessem planear o seu trabalho em função desses dados. É inadmissível que uma determinação deste género seja comunicada apenas com cinco meses de antecedência.

Por outro lado, acreditamos que seja possível levar a cabo os trabalhos de transferência dos fundos de forma faseada, de modo a evitar um encerramento integral tão longo. Independentemente de existirem outras bibliotecas com Depósito Legal, é do conhecimento geral que para uma parte substancial do acervo bibliográfico e documental da BNP não existem alternativas nem em Lisboa nem em nenhuma outra biblioteca ou arquivo do país. Pelo que é absolutamente incompreensível que se proponha que este acervo único permaneça inacessível durante 10 meses.

Solicitamos pois que se proceda a uma reconsideração do plano de transferência, no sentido de:
1) se atrasar o encerramento da BNP para depois de Junho de 2011, para dar um mínimo de um ano de antecedência ao anúncio
2) fasear os trabalhos de modo a reduzir o tempo de encerramento integral dos referidos núcleos da BNP.

Não deixe de assinar aqui. Via Entre as Brumas da Memória.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Mundo cão da cultura

Parece que o mundo da cultura reuniu há tempos com o Papa. Creio que, quem o nomeia assim, refere certamente aquele “mundo” que estará disponível para reunir com o Papa – os VIPES da corte instante - e fazer a parte de que está disponível para continuar a ilustrar os dogmas da Igreja com as suas pinceladas, os seus filmes monocromático/lentos e de plano fixo, colaborar nas diversas manhas do arrependimento espectacularizado, ajudar a ocultar o cortejo de atrocidades identificador da instituição – Inquisição, colaboracionismo com os nazis e pedofilia - num perdão redentor que abra portas a recomeços que pisarão os mesmos caminhos que, de novo, levem a outro perdão, num ciclo mesmo infernal – os ciclos da história são isso mesmo (e a Igreja não é imune à história, mesmo como máquina milagreira, Fátima sem os diabólicos bolcheviques seria um falhanço): regressos que nunca são idênticos mas que mantêm a humanidade aquém da promessa da igualdade, da fraternidade e da paz.

O funcionário de Deus não pode mais do que gerir as crises e como Estado que é, correr atrás dos fogos que se ateiam nos âmbitos recônditos das violências que eram seladas e que não cessarão, agora que é impossível esconder as verdades atrás dos muros de pedra ancestral que formam as paredes das Igrejas, dos Mosteiros, dos Conventos, das Casas Paroquiais – é isso que a viajem em cena há pouco realizou: um grande espectáculo capaz de preparar uma sondagem mais favorável ao magistério deste Papa, uma sondagem branqueadora face à dimensão do crime mais recente.

A era do vídeo e este reality show constante do espectáculo do mundo alimenta-se de drama permanente em clímax de histeria e apocalipse, e o drama, negativo, faz mais jeito porque preenche de modo mais intenso emocionalmente, ocupa mais eficazmente a totalidade do cérebro, gera sentimento de impotência e oculta o que se passa mesmo: uma regressão da democracia, da transparência, do poder do voto e uma acumulação da riqueza, por via especulada, branqueadora, tóxica e traficada, nos bolsos de meia dúzia de Estados Particulares e das suas Tropas – um mundo cada vez mais o mesmo.

Todos sabemos que a diversidade não são discursos, mas sim uma consequência das estruturas do real em movimento conformando a vida e as vidas – a Igreja e os imigrantes, o Estado e a Igreja, a Igreja e Berlusconi, a Igreja e a pedofilia, a Igreja e a Escola em que a Igreja continua a ineficácia das catequeses, impossível que é de a fazer coincidir – à escola - como qualidade ética, dinâmica de aprendizagem e qualificação profissional, com a esfera da produção e das profissões, dependente das deslocalizações assassinas e do negócio dos despedimentos apoiado nas leis que o executam – quem duvida que as indemnizações servem os donos e não os empregados, que uns mantêm fortunas e que outros ao fim de um tempo esgotam as reservas? Desemprego, horizonte produtivo?

Tudo isto, como admirador de Cristo e das liberdades, me enoja. Tanto lixo para debaixo do tapete revela uma disposição, mesmo quando se repete que o crime aconteceu já não dando para escondê-lo nenhuma sábia ocultação. Estratégia mais inteligente e dizem que este Papa o é. Será? Necessitará? Não basta sê-lo, papa, mito e santidade?

O mundo da cultura, desculpem-me, não é representado pelo velho Oliveira nem por nenhuma estrela do nosso pequeno firmamento, sempre disponível para a medalhinha, a comenda, a homenagem, consenso apaziguador e paroquial – rectangulozinho reconfirmado nas medidas, por muitas águas internacionais que o multipliquem. O mundo da cultura é mundos de culturas.

O que chocou nesta coisa foi o desejo de absoluto e a disponibilidade todo o terreno das tropas de choque da campanha mediática, agindo com cio de primas donas e o “dar a anca” dos culturais do costume e do sistema – o poema é do Mário Henrique Leiria.

Que seja claro que aqueles que cedem nestas circunstâncias ao espectáculo do “diálogo” mostrado – o exemplo pela imagem tem um fundo milenar -, não o continuam no resto do ano, nem todos os dias, a fazê-lo, e a maior parte daqueles que trabalham culturalmente com as populações raramente se encontram com a Igreja pois ela não está lá, está de guarda ao bafio das sacristias e ao vício militante da hierarquia burocratizada e estanque – os missionários é outra história. Aí estou de acordo com o Papa: metam-se na política, metam-se na economia, metam-se nas artes e sejam tão capazes disso como a mais rica tradição artística, a dos Leonardos e dos grandes pintores e escultores de temas mítico-religiosos. Nada mais comovente que a Pietá, tão diferente desta Igreja de bugigangas, plástico fluorescente e vídeo convertida. E tão longe dos sapatos Prada (é assim que se escreve?)

Fernando Mora Ramos

sexta-feira, 30 de abril de 2010

anaCrónica 19

Gosto e política cultural

O estudo de Augusto Mateus pôs dedos na ferida: a indiferença do governo quanto às actividades culturais artísticas, por um lado e a explicitação da diversidade constitutiva de um sector económico feito de três partes, a criação artística e as suas tradições disciplinares patrimoniais, as indústrias culturais e a dimensão criativa própria das mercadorias, na esfera lata do mercado, o design de objectos de consumo.
Convém aliás aqui clarificar que a dimensão criativa de actividades industrializadas, que obedece à satisfação de lógicas massivas de gosto elas próprias induzidas pela estratégia quantificadora do marketing que promove os diversos produtos na relação de concorrência, nada tem a ver com a actividade artística, esta desligada de objectivos imediatos, destinada ao fruidor cidadão potencial, solitário ou em assembleia, a públicos mais iniciados e não ao consumidor perdido na massa – uma, virada para o humano, a outra, para o mercado. Uma coisa é a linguagem imprevisível da criação artística, cujos códigos de leitura têm de ser reinventados sucessivamente porque não se trata de dar a ler algo já lido, outra coisa é a aplicação de normas de gosto estandartizadas para satisfazer padrões de vida que encontram na sofisticação do design uma dada exibição de status, particularmente através da lógica das marcas que, no presente, estabelecem uma norma geral de comportamento e sinais exteriores de troca simbólica consumível e ideológica, a aparência como essência possível. Não é por acaso que a maioria dos chamados políticos anda de gravata e essa gravata tende a hipertrofiar o nó num claro assumir de um certo “mau gosto” papalvo contra um certo “bom gosto” - um nó mais discreto e menos berrante – dos usos de famílias mais antigas. Este exemplo parece ridículo mas merece ser referido, pois tem carácter normativo por via informal e é revelador das mentes: ninguém os obriga a andar assim, mas de facto o uso é praticado como exibição e geral, normativo por costume. Desde que a sociedade ganhou aliás este carácter de democracia massiva e falsamente igualitária que as classes médias chegadas de fresco – os “parvenus” de Marivaux -, têm imposto as suas referências de “mau gosto” como bandeira da própria ascensão vencedora como gosto dominante. A diversidade, neste aspecto, não passa de um simulacro e o”mau gosto”, enquanto expressão de um poder da quantidade, é de facto, esmagador.
Nestas coisas, o respeito das tais minorias revela-se no plano de uma clara inveja social, confundindo-se muitas vezes aquilo que é de ordem estética com aquilo que é de ordem elitista. Não há bronco nenhum que não apelide de elitista, não aquilo de que não gosta porque formatado pelo tal “mau gosto” que o impede de gostar - no plano do juízo funciona na mesma zona em que se pode pensar o estético, o gostar não gostar dependente da comunicação imediata – mas aquilo que ele entende que, não percebendo, não passa de algo elitista que a tal democracia igualitária tem de liquidar para que, nivelando tudo pela tal lei do tudo nivelado pelo mesmo, tenhamos uma ordem democrática do gosto, um gosto comandado pelas massas médias e remediadas. Este pratica-se contra as veleidades aristocráticas do estético, identificadas com as tais elites que são perniciosas e a que se associam os desgraçados dos artistas, na realidade, mais artesãos que criaturas mundanas – artesãos do corpo e cabeça, das linguagens do enigmático. A ideia de “uma arte elitista para todos” não lhes passa pela cabeça. Ora, esta, é a ideologia do poder actual em matéria de gosto, uma ideologia da incultura estética e dos consumos designer, fundos de vernissage e berardices pavlovianas com amplificação mediática súbita e mesmo reacções papalvlovianas deslumbradas com a riqueza dos ricos, as massas despertando alegremente como parte e percentagem orgulhosa da maior estatística cultural – como no guiness, esse cúmulo da estupidificação oscarizada.
E este é o problema. Do mesmo modo que descrimina numa política a importância da ciência como factor de desenvolvimento libertador – que não o é em si, pelo contrário, o que justamente implica a marca orientadora de uma política – é imprescindível discriminar, numa política, a cultura como forma de fomentar as actividades estéticas da criação artística, que não têm um quadro de rendibilidade imediato pois não são realizadas para nenhum mercado, mas são actividades humanas essenciais, aquelas que no fundo identificam no ser os seus objectivos humanos – ainda recentemente José Gil falou desta dimensão ontológica da criação artística.
Será que isto não entra pelos olhos dentro? Mesmo a actividade artística regular, como a dos teatros, está mais próxima daquilo que enquanto actividade estético-literária caracteriza Os Lusíadas do que daquilo que vai no design dos móveis da IKEA. Não há relação entre as actividades do gosto formatado e a invenção artística. D. Quixote, por muito que o formatem e concentrem e imitem e reduzam a sigla e sinopse, não dispensa a leitura, essa actividade sem rendibilidade imediata – exemplo radical é o romance de Joyce agora editado, Finnegans Wake (15 anos levou Joyce a escrever o romance inacabado e agora mais de trinta levou o estudioso que fixou o texto a fazê-lo para uma leitura possível). Nada compro nem vendo nas horas perdidas da leitura, perco tempo e dinheiro – a leitura é tão “inútil” quanto a criação e tem os mesmos vícios. Mas ganho algo, ganho até inteligência criativa – ela anda aí a tal artificial, mas não funciona sem mão - aplicável a lógicas de exercício laboral dedicadas à economia. Mas estas não são nem de consequência directa, nem de medida imediata, não são mensuráveis. Será que isto não se entende? Não se entende que é de outra esfera e que é com esta esfera que uma política cultural do artístico se tem de entender? Uma política cultural é uma política da estruturação da criação artística e é uma política da leitura, das capacidades de ler a complexidade actual das linguagens. E é também uma política da relação umbilical das duas coisas.
Em relação ao Ministério da Cultura: mais orçamento, mais do dobro, mais do triplo, e obviamente um programa e competências organizacionais e dinâmicas. E não vale a pena falar de cortes. Neste momento é promover o desemprego apenas. Só um grande aumento dos dinheiros para a cultura pode promover a ideia de “uma cultura elitista” para todos, a única ideia socialista possível.

Fernando Mora Ramos

sexta-feira, 19 de março de 2010

anaCrónicas 10

Dizia o penúltimo Ministro da Cultura, o jurista Pinto Ribeiro, que Pessoa valia em dólares, e em bens transaccionáveis, mais que aquilo que as acções da PT no Brasil iam lucrando. E dizia isto a propósito de algo muito na moda na ficção de uma política dedicada à internacionalização da cultura, algo inexistente, como é inexistente uma visão política da utilidade social da literatura ou mesmo uma política do livro digna do nome – não que não existam pessoas dedicadas ao livro e à leitura.
Pessoa dizia abrindo novos mundos ao mundo e referindo-se o Ministro, creio, ao todo, à obra, mas provavelmente mais que à obra, à fama, isto é, ao resultado da conversão do mito em negócio possível, isto é, a pessoa, mais a obra, mais as frases célebres, mais o esoterismo e os heterónimos, mais o desassocego, corpus e personagem indefiníveis mas certamente mito transformável, na versão simplificada e à mão de abrir a boca e dizer, num qualquer marketing de campanha necessária afirmado numa paisagem qualquer, sendo que ele, o Ministro, seria o inteligente que ia pôr isso tudo a mexer, pioneiro da exportação de Pessoa numa escala intercontinental e a caminho de global, já que no Brasil há um gosto de Pessoa reconhecível e Pessoa seria um garante do nível subido da transacção e da internacionalização – diria Pessoa e ao pronunciar da palavra mágica, diante dos olhos surgiria um abre-te sésamo de possibilidades tendo como consequência a subida das acções portugalo-linguísticas na Bolsa de Nova Iorque.
Estávamos a entrar no Brasil das grandes empresas e no mundo dos grandes negócios – muitos anos depois do Caminha ter visto as partes vergonhosas das Índias de um modo tão natural que deu início a uma literatura erótico na carta crónica escrita – financeiros e portanto vá lá um bocadinho de Pessoa para dar substância espiritual, qual folha de rosto das relações que se esboroa com as primeiras brisas de desentendimento, ao terreno árido do investimento inteligente dos nossos capitalistas do sector público e privado no país do maior número de falantes da nossa língua – ou será a língua deles? Ou mesmo a mesma e outras?
Acentuando as Lágrimas de Portugal mais de que Chuva Oblíqua, O Marinheiro mais que A Tabacaria, ou numa outra vertente, mais eficaz, vendendo melhor as fotos do atravessamento distraído da Rua dos Douradores, ou da Rua Augusta, ou da Prata, teremos sempre um Pessoa qualquer mais manipulável e consumível. Poderemos mesmo dar a conhecer apenas as cartas a Ofélia. O outro não é comercializável porque não é possível de sujeitar seja a que marketing for. É irredutível a qualquer classificação e não pode ser dado a conhecer a não ser na impossibilidade de uma definição. Só o fluir da vida e da obra se pode suster nas suas contradições e nunca como qualquer coisa que se reduza seja a que complexo signo for.
Veio isto a propósito de um Ministro que ia abrir os caminhos da modernidade na cultura ao lado dos caminhos da modernidade que o Primeiro já abrira na tecnologia. Eu também quero um moinho de vento a soprar-me energia renovável na vontade de progresso. Finalmente o Quixote deixou de ter visões, elas são reais. O que certamente se segue, como marketing ministerial, será a exportação de estátuas do Pessoa versão Chiado, curtidas em plexiglás, um Pessoa completamente transparente.


FMR