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segunda-feira, 29 de março de 2010

O fóssil falante

Que a pedra fala ninguém duvide. É património, memória, estatuto museológico, coisa portanto digna. Na pedra: o ser colectivo, a gesta da pátria, mais ou menos ferrugem e actividade hortícola espontânea. Por onde andará o montante de D. Afonso? Que bateu na mãe não interessa nem vem ao perfil do fundador, o que interessa saber é que cortou a cabeça a uma chusma de mouros de uma só espadeirada e mesmo a uns reles cristãos que traçavam mal o sinal da cruz, metendo primeiro o dedo rabelaisiano na barriga e não na testa – não frequentaram uma boa escola, colégio com matinas e vésperas de boa prática, ralé pendurada na preguiça, na boa vida, tasca e petisco mais perdições do corpo, diabos comunitários.
Agora que novos cristãos e novos mouros traçaram uma “nova” linha divisória fictícia, fronteira cavada em ideologia de morticínios militantes, a recuperação da imagem do primeiro Rei de Portugal, o fundador, como matriz inspiradora da “nova” linha de um antagonismo sem trégua a eternizar em estratégias sucessivas de forças no terreno e contra-informação criativa, é uma necessidade instante. Levantemos o montante contra os suicidas disfarçados de pessoas e antes que expludam zás, montantes ao alto, cabeças a rolar. Teremos de o fazer obviamente on-line e através de uma profusão de software lúdico suficientemente violento para estimular nas criancinhas o ódio antagonista no meio do “todos iguais, todos diferentes” do politicamente correcto.
Mas estes são assuntos de política internacional e próprios desse filme pobre chamado incessantemente aos palcos globais que não interessam ao cantinho, de novo cantinho à beira-mar plantado e de novo perdido na dívida e seu tratamento – aqui os danos colaterais caminham para que a criança vá com a água do banho e que a banheira passe a pagar renda ao patrão de fora, ficando-nos a depressão e as mãos vazias.
O salazarismo voltou, se isso significa um fechamento do verdadeiro desígnio europeu e uma conformação da vida dos portugueses, seu imaginário e práticas diárias, ao valor da dívida, isto é, ao tamanho pequeno não propriamente do mercado, esse pode encontrar tamanhos de elasticidade vária, mas à negação de um desígnio nacional como verdadeira nova internacionalização (a da geografia da língua e a da economia real levadas a sério) que nos levasse desta tragédia de sermos vítimas eternas de uma deriva constante da unilateralidade financeira – o outro começou Ministro das Finanças e deu rapidamente em torcionário complacente antes de cair da cadeira. Não faltou a isso uma tacanhez provinciana – aliás esta coisa de “os portugueses são capazes”, esse tipo de paternalismo que andam para ai a vomitar enoja e revolta – que agora regressa em força no discurso dos governantes e dos opositores, todos de facto muito analfabetos, iletrados e incultos, ao contrário da tradição de uma certa política republicana e letrada.
Se pensarmos que nos andaram a vida toda a meter na cabeça o respeito por alguns símbolos arquitectónicos, cultivado em momentos de transfiguração exaltada de vida no meio dos dias de andar a dias - rituais leia-se -, logo percebemos que a pedra é mais que pedra e que a sua química degenerescência acrescenta patine à simbólica dando-lhe profundidade (agora diz-se densificar, talvez). Essa patine, justifica aliás, que muitas vezes o património seja mais pátria e pedra degradada que pedra refeita e futuro ali, na pedra pois, esclarecido como forma do porvir. Porque a pedra pode de facto, não sendo jangada, ajudar a viajar para um à frente que misture duas possibilidades: ser as coisas boas que outros até já foram – uma certa Europa para trás – e ser as coisas boas que nunca existiram mas que são humanamente possíveis, uma verdadeira Republica, uma comunidade. Mas nem este nível do discurso hoje passa. Nem à esquerda nem à direita, todos com o ferro no pé, escravos da dívida por fatalidade de destino e coexistência parlamentar, de joelhos perante o deus não da economia mas das finanças, o grande contabilista, o do caminho único. E não passa porque esse discurso, liberto de subalternizações à ditadura orçamental, pressupõe um plano, uma estratégia expansiva, o futuro, um futuro e ideias de futuro, pensamento emergente que organize os caminhos possíveis por dentro das inamovíveis decisões da inevitabilidade das medidas para combater a dívida, mas principalmente pela capacidade de gerar alternativas globais, socialmente globais.
Mas este assunto pátrio da pedra refinou: neste afã de patrimonialização generalizada para turista ver, somos metidos a papalvos no espectáculo possível de um simulacro de singularidade identitária, vendável a olhos estranhos – se para tal for necessário que façamos de atrasados simpáticos e que tudo o que façamos seja de uma espécie de incompetência ingénua e autêntica, então seremos papalvos, papalvos batendo continência interior nos sorrisos ao passante com pilim a falar inglês - talvez isso seja um emprego, e qualificado, para o perfil do português tipo, se existe. O procedimento é simples: tudo pode tornar-se espectáculo do que foi, a pesca, o moinho de mó, as rendas de bilros, as próprias criaturas de uma aldeia “típica” podem tornar-se as personagens de si-mesmas e encontrar nisso, na sua própria conversão a bonifrate em auto-retracto, um emprego.
Já há muito que Debord caracterizou a Sociedade actual como a Sociedade do Espectáculo, a sociedade em que todos se tornam figurantes do sistema sob a forma de consumidores passivos de mais-valias simbólicas erigidas em consciência possível, ou melhor, criaturas impossibilitadas de um olhar exterior, de um olhar que descontaminado daquilo para o que se dirige, possa de facto fixar-se nisso de um modo racional e crítico, lógico, liberto. Esse é aliás o único modo de ajuizar sem o pecado mortal do preconceito na vez da tentativa do conceito. Se há uma coisa que Estado Espectacular Integrado tenta forçar é que estejamos sempre dentro do espectáculo e que o exterior do espectáculo seja, para quem o tente, uma asfixia, resistência 24 sobre 24 horas. Na realidade o melhor do estalinismo soma-se ao melhor do capitalismo, o tal capitalismo cultural.
Mas para além da pedra há a pedra que de facto fala, que perora. São os fósseis falantes. São criaturas que servem o sistema justificando sempre de modo eficaz, nos seus palanques de poder constante, porque é que o mais interessante é ficar tudo na mesma para que tudo mude. São pessoas como o Marcelo Rebelo de Sousa e como o Pacheco Pereira. Nunca levam nada até à necessidade da fractura e mesmo perante o corpo fracturado do país propõem as mesmas receitas do poder instalado, resumindo tudo a estratégias de fulanização e grupo. São estes, com outros inimigos irmãos, os pais deste sistema partidário medíocre que prospera.
São doutores como o bolonhês – figura da Commedia Dell’arte que fala um latim incomestível de um modo parecido com o falar de uma turbina – e como o Dr. de Coimbra, que se poderiam classificar entre os antepassados dos activíssimos fósseis falantes da contemporaneidade pós moderna. Falam e não mudam. Falam e dizem sempre o mesmo. Falam e não abrem nenhum horizonte, nenhuma luz, nenhuma fenda no bloco cego dos dias, nenhum caminho que se possa iniciar. São maquilhadores da realidade pobre que temos, mesmo quando fazem avisos á navegação, aquela coisa de ter sempre razão antes dos males acontecerem, vaticinadores de dramas constantes. Também conhecidos por cadáveres adiados, são donos honoríficos de diversos cemitérios em actividade mesmo sem possuírem as chaves das lojas, partidos, instituições e aparelhos ideológicos de um modo geral. Para eles as portas estão sempre abertas. Têm negócio montado constante e não são apanhados em escutas.
A argumentação não é uma forma de pensar que descubra no real, que está podre, por onde parti-lo. O vício silogístico e o charme falante do fóssil fazem dele de facto uma criatura que também se dedica com muita fé e carinho a explicar-nos que teremos de ser mais pequeninos perante o tamanho da dívida, mas que antes portugueses do que apenas pedintes. Mas que seremos nós senão pedintes, a necessitar de ser mais que portugueses europeus e criaturas do mundo? Do que necessitamos é de uma grande fractura e não de ajustes, ou de pequenas melhoras. E essa fractura, não a pregam, os fósseis falantes, porque estão em posição de renda desde há muito. Os seus feudos mantêm-se intocados há décadas e obviamente para eles tudo está certo menos o Sócrates. A única coisa em que acertam é na falta de qualidade do Sócrates, se pensarmos nas casotas em que colaborou para desfear a serra, lá para a Covilhã e se pensarmos que quando fala não diz nada que não seja óbvio e da ordem da tautologia. Mas o argumentativismo de uns e as tautologias de outros, o que ajudam a formar é um colosso inamovível, uma ficção de país cimentada em atavismo e arcaísmo que alimentam de modo moderníssimo. São obviamente menos capazes de fazer mudar que o peixe de prata ou o bicho da madeira. Esses são lentos mas destroem por dentro o que é mofo e estrutura do mofo.
Ora os nossos fósseis falantes são como a pedra famosa. Falam do alto dos seus feitos e por certamente terem estado em espírito com o Gama quando por lá andou, pelos tais mundo que demos ao mundo, a globalizar. Estes não ajudam a uma nova matriz, rende-lhes a de sempre. São na realidade criaturas do antigo regime.
Encantam entretendo entretanto e para tantos. Entre eles e a pedra pátria há um pacto profundo. A pedra anda de história às costas somando reabilitações paredes meias com as construtoras. Eles andam entretendo as gentinhas com a política de bolso – têm respostas prontas para tudo – paredes meias com as grandes empresas mediáticas, públicas e privadas, todas elas de costas viradas para o tal serviço público, apenas simulado.

Fernando Mora Ramos

segunda-feira, 8 de março de 2010

anaCrónicas 3

Diante do gordo do Preço Certo acontece-nos descobrir o que sempre intuíramos mas o que nunca pensáramos. Este tipo, se decide fazer uma dieta, vai para o desemprego. A obesidade, a tal que se combate licenciando os sistemas de engorda da comida rápida nas praças da alimentação e nas escolas públicas é a razão do êxito. Sim, porque um emprego de luxo é uma forma específica de sucesso, já que a outra é ser parte da tal corrupção que, segundo mais de sessenta por cento dos portugueses, não é assim uma coisa tão má, porque nalguns casos, é redistribuída, reinvestida dizem. Portanto o ladrão que rouba para reinvestir é amigo do povo e o branqueamento de capitais uma das actividades morais mais destacadas dos narcotraficantes – por cá também há, como havia a ETA, ali, no paraíso obidense, vila postal a dois passos da pirotecnia criativa.
Aquela história do Brecht quando falava de demitir o povo e não o ministro perdeu o sentido. A massa é massa e vem-lhe o faro da oportunidade com ávida coerência própria, mistura de inveja e forte desejo de ascensão clicável. E à criatura massiva cheira que não lhe calhando o totoloto lhe pode calhar em alternativa o que reste, em notas voadoras, do saque de um multibanco próximo. Até dará uma ajudinha.
É assim o pão e circo, a vida actual no circo globalizado do mundo, a realidade constantemente espectacularizada – dizem-na também virtualizada para a tornar mais neutra – necessita das suas aberrações (os índios talvez tivessem alma, Bartolomeu de Las Casas bateu-se pela alma deles e, em Woizeck, o cavalo fazia que sim com a cabeça e não era lusitano) para que o espectáculo prenda os sentidos dos espectadores planetários com eficácia imperial e faça salivar a mente quando o fetiche, muitas vezes um automóvel, brilha sob a luz dos projectores em consonância com o clímax sonoro num verdadeiro horizonte cantante.
Diz-se: o teatro é grego, o espectáculo é romano. O gordo do preço certo tem garantida a sua posição de renda, como acontece em qualquer loja dos trezentos a um gordo que ofereça fetiches de uso quotidiano cujo valor multiplique trezentos pela precariedade geral em que somos olhos e barriga ávidos de propriedade. Assim como têm emprego certo, por contraposição, as boazonas que ajudam a decorar as mercadorias com o esbelto par de pernas mais o sorriso obrigatório, outra razão de competência específica para emprego certo. O gordo que se acautele, porque o gigante de Manjacaze lá morreu de uma altura que não parava de disputar o cimo da copa das árvores, o que às árvores seculares não agrada, pois mais alto, de direito autenticado pela tradição, só os pássaros e os arranha-céus de betão imortal. Um dia o corpo não poderá suportar o tamanho em crescimento constante – oxalá isso acontecesse à economia, dirão os preocupados com a pátria. O gordo, com aquelas piadas estafadas, só engorda mais. É o preço certo da própria dignidade animal, o culto da banha alimentada e mantida como uma amante no tempo antigo das amantes mantidas – também está em extinção, não as amantes, mas esta forma especificamente económica, já que não é um investimento, nem sequer um roubo eticamente apoiado na visão vulgar, não rende, é puro défice.
E a ração do gordo não é, por certo, qualquer uma.

FMR

sexta-feira, 5 de março de 2010

anaCrónicas 1

A propósito de touros, e bravos, veio-me à mona o bode do Mário Henrique Leiria. No conto do Leiria o bode é uma máquina devoradora de papel selado, requerimentos, dossiês, peixes de prata – lindo nome para iguaria (eles comem-no, os bárbaros, como as baratas) tão reles – lombadas amarelecidas de nostalgia cultivada, livros angustiados à espera do toque dos dedos que os folheiem, silêncios ocos sob a caliça que se desprende de paredes esquecidas do viço da cal virgem e outros elementos característicos dos paraísos esverdeados da burocracia. O bode foi aliás condecorado por serviços relevantes prestados à pátria. Eis que agora o touro bravo saiu, sob a forma de candidato a cadáver – esperam-no as bandarilhas e os bandarilheiros sob o olhar ávido dos vampiros consumidores encartados de pão e circo –, no Diário da República, como motivo protagonista de constituição de uma secção especializada do Conselho Nacional de Cultura, organismo tirado da cartola da sua letargia antiga de nobilitados membros do pedestal da República. É a pura da verdade: a República dispõe, a partir desta publicação em Diário da República, de uma secção cultural especializada em tauromaquia, com um elenco de fazer inveja à maior peça de Shakespeare, em número que não em diversidade humana caracterial, claro. Quando mais evoluímos mais nos enredamos no fado de uma suposta identidade moldada em atavismos e arcaísmos. E para mais espanto, tal decisão, foi tomada pela pianista Ministra que, ao que parece, se tornou aficionada lá para os Açores aquando de um Congresso, certamente mundial, de touros. Nada me move contra os touros, como não sou contra o bitoque, as guerras serão outras, mais complexas e a maior parte delas nem sequer escolhidas.
É claro que tudo isto integra a sociedade do espectáculo e que quem se mede na política diariamente, calculando a sua temperatura de popularidade, está sempre em condição de definição do seu estado estatístico, o que significa estatuto, sempre instável por certo naquilo que aproxima o Ministro do Primeiro-Ministro. Será isto a política hoje?
A mim só me choca ver o touro ribatejano no Diário da República misturado com a fila de licenciados a empoleirar-se no que der e vier. É que merecia mais a companhia dos chaparros, o ar livre do montado e o amargo doce da bolota, tal como ao javali agrada. Nada contra os licenciados, entenda-se, mais que proletários no país centro comercializado, e tudo pela liberdade.

FMR