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domingo, 11 de março de 2012

Pesadelo Climatizado

 © Carlos Ferreiro*

"Um mundo novo não se constrói procurando esquecer o antigo. Um mundo novo alicerça-se num espírito novo, em novos valores. O nosso mundo poderia ter começado daquela maneira, mas hoje é sòmente uma caricatura. O nosso mundo é um mundo de coisas. É todo ele constituído por comodidades e luxos, ou então pelo desejo de os alcançar. O que mais tememos, ao alcançar o débâcle iminente, é sermos obrigados a abandonar as nossas futilidades, as nossas engenhocas, todos os pequenos objectos cómodos que nos tornaram tão desconsolados. Não há nada de admirável e de cavalheiresco, de heróico ou de magnânimo, nas nossas atitudes. Não somos almas tranquilas; somos presunçosos, tímidos, demasiado escrupulosos, enfastiados e instáveis."


"Há experiências feitas com acuidade e precisão, uma vez que os resultados são antecipadamente calculados. O cientista, por exemplo, põe sempre problemas solúveis a si mesmo. Todavia, a experiência do homem comum não é desta natureza. A solução da grande experiência está no coração; a busca, a inquirição, deve ser conduzida interiormente. Temos medo de confiar no coração. Habitamos os domínios do espírito, um labirinto em cujos sombrios recessos um monstro espreita para nos devorar. Temo-nos até hoje movido numa sequência mitológica de sonhos sem encontrarmos soluções, isto é, formulamos perguntas desacertadas. Só encontramos aquilo que procuramos, mas procuramos no lugar indevido. Temos de sair da obscuridade, de abandonar essas explorações que constituem apenas fugas originadas pelo medo. Temos de deixar de procurar às apalpadelas - de gatas. Temos de sair para os espaços abertos, erectos, completamente expostos."


Henry Miller, in PESADELO CLIMATIZADO (THE AIR-CONDITIONED NIGHTMARE), Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1971

* [In: Jornal das Letras, 16 a 29 de Janeiro de 2008, a ilustrar o artigo: Luiz Pacheco (1925-2008) O Guerrilheiro da Escrita ]

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010)



"Em meados do século passado desembarquei em Lisboa com uma bicicleta e uma caixa de tintas a óleo na bagagem. Eram prendas preciosas, uma de aniversário e outra por ter feito o 2º ano do liceu, de que tinha conseguido não me separar quando por decisão familiar fui nessa altura remetido de Moçâmedes para fazer em Santarém, num prazo de 5 anos, o curso de regente agrícola. Mas nem da bicicleta nem das tintas a óleo nunca mais voltei a fazer uso. Passei esses 5 anos na condição de aluno interno, a residir no próprio estabelecimento escolar, e tanto as tintas a óleo, que eram o reconhecimento dos meus mais evidentes talentos de infância, como a bicicleta, que era uma adjectivação de gloriosas adolescências coloniais, foram sacrificadas à disciplina e ao programa da minha estadia em Portugal. Fiz o que tinha a fazer dentro do prazo previsto, fui sendo bom aluno e isso me foi assegurando o direito de vir a Angola com passagens por conta do estado durante quase todas as férias grandes. E em 1960, com 19 anos, voltei definitivamente à jóia da coroa do império português para começar a fazer pela vida, até hoje e a partir daí, conforme as circunstâncias e segundo os meus próprios critérios...
Não estou, porém, evidentemente, a contar a estória pelo princípio. Quando de facto fui embarcado em Moçâmedes com destino a Santarém, eu estava também a ser remetido ao exacto local do meu nascimento biológico e de onde, mais cedo portanto, tinha vindo com a família, que entretanto emigrava arruinada mas servida ainda de criada branca e acompanhada de cães de caça, desembarcar em Moçâmedes. De qualquer maneira o que me calhou na vida foi estar de volta a Angola com um curso médio já feito quando a maioria dos sujeitos angolanos da minha classe etária e com recursos para estudar, com alguns dos quais eu tinha feito o 2º ano do liceu, estava a ser, por sua vez, expedida para a metrópole para estudar em faculdades. Não beneficiei, assim, nem de uma iniciação universitária comum nem da escola de cativação ideológica que também foi para a minha geração a casa dos estudantes do império, por exemplo, e pelo menos duas consequências maiores para o meu percurso biográfico terão resultado desta configuração das coisas : a primeira é que o lugar onde vim ao mundo, na Europa, sempre constituiu para mim, desde que me lembro a enfrentar a vida e a reflectir nas coisas, uma referência de exílio; a segunda é que tudo quanto pela vida fora se me foi revelando em termos de relação com o tempo histórico que foi o meu, e determinando o meu lugar cívico no mundo, acabou de uma maneira geral por me ocorrer a maior parte das vezes de maneira directa, física e existencialmente interpelativa, e não raro brutal, para só vir a impor-se de forma ainda assim mentalmente muito elaborada e muito ruminada, nalguns casos, teoria ajudando, quase sempre só depois.
*
Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos - lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíge quando, em março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola. Sobrevivi então aí absolutamente à justa e a tempo de me refazer de tanta perplexidade e de tanto horror, tanto insurreicional como repressivo, quando a seguir, numa memorável noite em Luanda, houve quem me sussurrasse, em passeio pelas ruas da baixa, versos nacionalistas de Aires de Almeida Santos e de Viriato da Cruz que me revelaram uma alma de Angola que se me vinha oferecer sob medida e pela via do arrepio para eu ajustar à razão de Angola que a sublevação tinha acabado de me dar a reconhecer in vivo, e de que a partir daí passei a socorre-me para ver se conseguia conferir algum sentido à condição de orfão do império a que a vida, apercebi-me logo, me tinha destinado. Quando logo a seguir, também, a idade e o desamparo me colocaram com um papel na mão para apresentar-me no Huambo ao serviço da tropa colonial, e depois fui transferido para Luanda, já tinha conseguido que alguns mais-velhos da luta clandestina nacionalista me atribuíssem mínimas tarefas menores, como dactilografar, para posterior distribuição pelos musseques, poemas de revolta de autoria anónima e esclarecedora má qualidade. Mas depois foi uma data de gente presa e a tropa só não me entregou também à pide porque o comandante da secção de justiça do quartel a que eu pertencia era casado com uma filha de Moçâmedes e decidiu arriscar, e os informou que preso já eu estava, por razões disciplinares. Passei ainda uns tempos fardado de soldado português a fazer desenhos no quartel-general, mas depois fui requisitado, como técnico agrário, pelo instituto do café, e mandado para a Gabela e mais tarde para Calulo. Ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista, nunca mais encontrei maneira de as restabelecer... e também nada ajudava... nem a cor da pele que é a minha nem o cargo de engenheiro que ocupava... e o máximo que consegui foi ser dado como persona non grata pela administração do Libolo, junto com um padre basco e um médico português, e afastado compulsivamente dali. Pouco para currículo político.
Arranjei então outro emprego e mudei para a Catumbela, onde fui responsável pela pecuária de uma grande empresa açucareira. E foi nessa condição que levei tal volta passados três anos - de mim para mim e a sós ou quase e a arriscar os meus primeiros poemas afundado no interior do imenso platô de Benguela, extremo norte do deserto do Namibe, onde, em plena fúria, tinha posto cinco mil ovelhas a pastar e a parir e doze furos artesianos a puxar água do fundo do deserto - , levei então tamanha volta que andei os três anos seguintes a derivar pelo mundo. Estive em Hamburgo, em Copenhaga e em Bruxelas, sempre na pista da insurgência nacionalista, mas quando finalmente consegui chegar a Argel, para contactar com as forças da luta, ninguém ali me levou a sério ou então voluntaristas como eu já tinham lá que chegasse e até nem sabiam muito bem o que é que lhes haviam de fazer. Foi depois disso e de outros precalços que acabei mais tarde por ver-me a exercer funções de chefe de fabricação de cerveja em Lourenço Marques - Maputo - e estive a seguir em Londres, com um dinheiro que pedi emprestado, a fazer um curso de realização de cinema e de televisão. Na sequência dessa volta toda é que acabei por voltar a Angola em 1974 e por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975 no município do Prenda, em Luanda, a filmar às zero horas, que foi uma hora zero, a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir no mastro.
*
Se a razão para estar agora aqui a contar estas passagens da minha vida é ter escrito até hoje meia dúzia de livros, então já nessa altura, quando foi da independência, tinha o primeiro livro de poesia publicado. Era o resultado da volta que tinha levado na Talamanjamba, no interior do platô de Benguela. E tinha muita escrita alinhavada e era a altura e a idade de anotar quase tudo. Quase tudo poesia. E disso dirão os próprios livros. Quanto à vida cívica, de cidadão angolano comum, de opção e de condição, de 75 até 81 fiz pela a vida e pela revolução realizando filmes para a televisão angolana e para o instituto angolano de cinema. E guardo a satisfação muito particular de ter visto a bandeira de Angola hasteada em muito lugar distante e mítico do mundo, em Samarkanda, por exemplo, precisamente por eu estar lá com trabalho meu. Mas entretanto foi deixando de dar para continuar a querer fazer cinema, e escrevi então um texto académico anti-cinema-etnográfico para juntar a um dos filmes que tinha feito – Nelisita – e obtive com isso o diploma da escola de altos estudos em ciências sociais, de Paris, o que me deu imediato acesso à condição de doutorando. Foi então o meu tempo de investigações de terreno, nas praias piscatórias de Luanda, e da minha modesta participação na reformulação de toda a teoria das identidades colectivas, em Paris. Durante essa meia dúzia de anos vivi entre pescadores, nas praias da Samba Grande e do Mussulo, e doutores, na Sorbonne e no Boulevard Raspail. A partir de 87, já doutorado, passei a dar aulas de antropologia social para arquitectos, na universidade de Luanda, e a aproveitar sabáticas para ir dar aulas também, e consumir bibliotecas, em Paris outra vez, Bordéus, São Paulo, Coimbra... Em 89 andei ainda por Cabo Verde a tentar filmar de novo, mas isso é mais é para esquecer. Depois, a partir de 92, fui arranjando maneira de ir passar cinco meses, todos os anos, misturado com os pastores do Namibe de quem, desde menino, andava a querer saber como conseguiam organizar a sua sobrevivência e a sua existência, tão diferenciada de tudo quanto os pressionava à volta. Foi para dar notícia disso sem ter de escrever naquele tom da escrita académica – de teses e artigos fui achando que já tinha tido a minha dose - que adoptei então essa maneira de escrever que depois me pôs na pista de uma meia-ficção-erudito-poético-viajeira em que venho insistindo.


Hoje continuo a não conseguir andar por fora muito tempo sem devolver-me ao murmúrio de Luanda, à noite, que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, onde a vizinhança me trata por brancurui, e sem continuar a meter-me sempre que posso por esses suis abaixo, a penetar desertos e a inventar pastores. Procurei sempre, sob qualquer situação ou regime, e fosse quem fosse que estivesse a mandar, viver a condição de cidadão comum. Lido mal com o privilégio, caiba ele a quem couber, até a mim mesmo, e nunca consegui deixar de sentir-me, tanto antes como depois da independência, tido como minoritário, quer dizer, subalterno ou intruso que incomoda sempre, desde que dê nas vistas. Acho que entretanto sosseguei bastante, na vida, quando, já faz algum tempo, dei conta que afinal não só jamais viria a ser o melhor do mundo, quanto mais cá na banda. E que também não tinha obrigação nenhuma de o ser. Mas uma das questões pessoais que se me anda agora, com a idade, a por com mais frequência, é a de saber se será possível continuar a envelhecer sem sucumbir de todo a uma senilidade insuportavelmente azeda ou sem incorrer também numa dessas beatitudes patetas e patéticas que pretendem fundamentar-se numa sabedoria qualquer que a idade acumulada por si só garantiria. É verdade que um percurso biográfico se faz de tempos, de lugares, modos, percepções, ocorrências, experiências, resultados, aquisições, perplexidades, digestões e ressacas. Mas também é verdade que eu não vou nunca deixar de permanecer muito irremediavelmente ingénuo, embora não de todo burro, e de lidar muito mal com toda a ordem de leviandade, de irresponsabilidade, de arbitrariedade, de mentira, de prepotência, chantagem, esperteza, insolência e soberba, e de achar que o que mais envenena as relações entre as pessoas, quaisquer relações, é o uso e o abuso da boa-fé dos outros. E é disso que o mundo está cheio e a bem dizer se faz. E há de fazer-se sempre, talvez, porque afinal, parece, é assim mesmo que ele é. Temo não chegar nunca a ser capaz, mesmo senil, de vir a conformar-me com isso. E o resto são umas ideias minhas que ando ainda cá com elas."

Biobliografia, retirada do Site da Cotovia.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

MAR RUBRO


O primeiro livro em prosa de Dias de Melo, Mar Rubro, foi editado precisamente há cinquenta anos. Inaugura o denominado ciclo da baleia, do qual faz parte a mais emblemática obra do autor, Pedras Negras, vinda a público no ano já distante de 1964. Seguir-se-ia, volvida mais de uma década, em 1976, Mar Pela Proa. Não resistimos, porém, a introduzir, neste mesmo ciclo, o volume Vida Vivida em Terras de Baleeiros, de 1983, uma extraordinária monografia historiando a saga da caça ao cachalote na ilha do Pico desde os tempos do lendário capitão Anselmo.
O universo das «crónicas romanceadas» de Mar Rubro, é o sul do Pico, mais concretamente a freguesia da Calheta de Nesquim, terra natal do autor. É por isso que descreve com alguns dos seus melhores textos essa pequena localidade, isolada, como tantas outras, na costa da «ilha negra», sem nada que a notabilizasse, sem especial recurso ou nenhuma glória que não fosse a bravura dos seus homens. «Todavia são belos os seus matos, que, lá no alto, no interior da ilha, se requebram em curvas gráceis de oiteiros e montes, e montanhas, revestidos de verduras, ou se alargam em extensos vales silenciosos, atapetados de amplos relvados, marchetados de compridos renques de cedros e azevinhos e, de onde em onde, purificados pela bênção das águas tranquilas e transparentes de charcos, paúis e lagoas».
As noites de temporal no pequeno povoado, onde em muitas casas as vidraças estavam iluminadas pelas candeias de azeite de baleia, quando o vento parecia rebentar portas e janelas e o mar, na costa, parecia tragar a terra.
E são as longas tardes na casa dos botes escutando as façanhas dos mais velhos: Mestre José Faidoca, a quem o nosso autor chama Mestre dos mestres, pela valentia e pela confiança que incutia aos homens da sua companha nos momentos decisivos; Capitão Medina, que regressara depois de muitos anos emigrado nos Estados Unidos, estabelecido em S. Diego da Califórnia, onde prosperou na pesca do atum, fôra voluntário na Segunda Guerra Mundial e alcançara o posto de Commander da Marinha de Guerra daquele país; João Caçolha, Mestre João Silveira, Mestre João Graxinha, entre muitos outros.
Mas seria sem qualquer dúvida a memória da infância, quando o povo da freguesia despertava subitamente e corria desde as terras mais elevadas, ou das casas térreas, corria pelos carreiros íngremes na pressa de arriar os botes com seus apetrechos, os remos, as celhas, os arpões, reunir os sete homens da cada embarcação, seis remadores, mais o esparrela que à popa segurava o leme, içar as velas, ou, nos tempos mais recentes, esperar que arrancassem os motores da gasolina, para então, apressadamente amarrados, zarparem primeiro que os seus mais directos competidores, os «ribeiras», e os «vilas» das Lajes. «Para que assim acontecesse, bastaria (...) ter ouvido, em dias repetidos, o estalar do foguete no céu azul da minha freguesia e aquele grito vibrante, estranhamente vibrante, repetido por dezenas e dezenas de vozes – baleia! baleia! (...) a imagem, cheia de movimento, dos baleeiros a correrem, a correrem como loucos, de saquinhas de chita e casacos de cotim, frocas de angrim, sueras de lã dependuradas dos braços, a caminho do porto, a caminho do mar.»
Depois de arpoada a baleia, quando havia casa de derreter na Calheta, o esforço brutal, em dias de sol, a rasgar o cetáceo, começando por separar do corpo a grande cabeça, retirar o toicinho, aproveitar o esparmacete, o óleo mais valioso, tudo isto suportando o indiscritível fedor da carne esfacelada desse animal gigantesco. «Jorrava o sangue, quando as baleias eram decepadas e esfoladas, espirravam gorduras, quando as cabeças eram abertas, vazadas, esquartejadas, desventravam-se vísceras, à medida que os escalhos inchavam e apodreciam». Então as águas tingidas de sangue tomavam uma cor avermelhada em redor do pequeno porto, a cor rubra.
Dias de Melo é hoje um autor com obra que se reparte por mais de vinte títulos que incluem a poesia, o conto, a crónica, narrativa de viagem, etnografia. Porém, no seu coração houve sempre um espaço predilecto para os baleeiros do Pico.

Mário Machado Fraião

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A importância dos filósofos

O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de acções insignificantes.
Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada.
in: O Senhor Brecht, Gonçalo M.Tavares, ed.Caminho, Lx, 2004


Talvez o mundo precise de um outro tipo de revolução e de um outro estado de realidade, a dos animais ditos irracionais...

terça-feira, 17 de junho de 2008

Dos Cafés..

Café Mozart com esplanada para Albertina. Viena, 2008
Foto:g.ludovice

"(...) O típico café vienense que é famoso em todo o mundo, sempre me produziu um sentimento de aversão, porque tudo nele é contra mim. Por outro lado, durante décadas senti-me no Braunerhof, que foi sempre inteiramente contra mim, (como o Hawelka) como se estivesse em minha casa, como no café Museum, como noutros cafés vienenses que frequentei nos meus anos de Viena.(...) Sempre detestei os cafés vienenses, porque neles fui sempre confrontado com os meus iguais, esta é que é a verdade, e eu não quero ser permanentemente confrontado comigo e muito menos no café, aonde vou para fugir de mim, mas precisamente aí acabo por ser confrontado comigo e com os meus iguais. Eu não me suporto a mim mesmo, quanto mais toda uma horda de meus iguais que cismam e escrevem. Eu fujo à literatura onde quer que seja, e por isso tenho de me proibir de frequentar o café de Viena ou pelo menos ter sempre presente, quando estou em Viena, que não devo entrar de maneira nenhuma e seja em que circunstância for num chamado café de literatos vienense. Mas sofro da doença da ida ao café, sou continuamente obrigado a entrar num café de literatos, embora tudo em mim contra isso se insurja. Quanto maior e mais profunda era a minha aversão aos cafés de literatos vienenses, mais vezes e mais entusiasticamente eu neles entrava. Esta é que é a verdade. Quem sabe como teria sido a minha evolução, se não tivesse conhecido o Paul Wittgenstein precisamente no auge dessa crise que, sem ele, me teria lançado provavelmente de cabeça para baixo no mundo dos literatos vienense e do seu pântano intelectual (...)"
In: O sobrinho de Wittgenstein - uma amizade, Thomas Bernhard, Assírio e Alvim, 2000

domingo, 15 de junho de 2008

Flor negra

"(...) um encontro fortuito com um transeunte que, após um choque forte, deixa nas nossas mãos, distraído, uma flor negra. E quando finalmente nos levantamos para a devolver já o transeunte, apressado, desapareceu. Começamos a correr com a flor negra na mão - não nos pertence, poderá fazer falta a quem a perdeu -, mas nada, nenhum rasto:o estranho transeunte desapareceu, evaporou-se. E nas nossas mãos está a flor negra. O movimento seguinte poderá até parecer um não movimento -a indecisão-, mas rapidamente o desconforto deixará de ser um pormenor e passará a ser o essencial: torna-se urgente desfazermo-nos daquela flor repelente. Pois bem, estamos a uns centímetros de um caixote de lixo público, levantamos a tampa e com a mão direita largamos a flor. Mas algo acontece: a flor preta não sai da mão, está colada, já não pode ser expulsa, só se deixares também cair o braço. Os dias seguintes deixarão entrar inúmeras tentativas de, primeiro, expulsar a flor preta, depois, de a esquecer. Porém, a certa altura, existirá, de uma ponta à outra, uma mudança no organismo, semelhante à mudança de moeda num país, que surge com outros valores, outras referências; e o homem resigna-se. Já não há flor preta; e os médicos chamam a esse conjunto de factos inverosímeis um nome lógico e antigo: doença. "
In: Aprender a rezar na Era da Técnica, Gonçalo M. Tavares

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Da Arte.. como metáfora de uma vida imperfeita

Viena 2008
Foto:g.ludovice

"(..) Qualquer grande livro respira este espírito, que escolhe os destinos individuais porque eles não se adaptam às formas que o rebanho lhes quer impor. Isso leva a decisões impossíveis de pôr em prática; a única coisa que se pode fazer é reconstituir as suas vidas. Se extraíres de toda a literatura o seu sentido mais fundo encontrarás uma negação - não completa, mas assente em inúmeros exemplos individuais e derivada da experiência - de todas as regras, de todos os princípios e preceitos sobre os quais repousa a sociedade que venera essa literatura.
Um poema, com o seu mistério, corta ao meio o sentido do mundo suspenso de milhares de palavras comuns, transforma-o num balão que se eleva e se perde nos ares. Se, como é costume, chamarmos a isso beleza, então a beleza será uma rebelião indescritvelmente mais implacável e cruel do que qualquer revolução política. (...)"
Robert Musil, in: O homem sem qualidades V.I, Trad. J.Barrento

Num certo diálogo entre Clarisse e Ulrich, Musil põe ao de cima aquela já ideia aristotélica de que a Tragédia Grega é catártica e terá um pendor positivo na vida humana neste sentido, ao contrário de Platão que condena a poesia e a arte em geral como sendo a pálida cópia da já cópia do que entendia ser a verdadeira realidade, ou Freud da sua Viena, a trazer à arte legitimidade, enquanto sublimação daqueles actos que não seriam impunes socialmente.
Há a desconfiguração antecipada do ideal, a saudade de um outro estado que nunca houve, quando há arte?

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Milan Kundera: A reflexão romanesca de Musil e Broch


" A reflexão romanesca, tal como Broch e Musil a introduziram na estética do romance moderno, não tem nada a ver com a de um cientista ou a de um filósofo; diria mesmo que é intencionalmente a-filosófica, mesmo anti-filosófica, isto é, deliberadamente independente de qualquer sistema de ideias preconcebido; não julga, não proclama verdades; interroga-se, intriga-se, sonda; a sua forma é das mais diversas: metafórica, irónica, hipotéctica, hiperbólica, aforística, mordaz, provocadora, fantasista; e sobretudo: não arreda pé nunca do circulo mágico da vida das personagens; é a vida das personagens que a abastece e a justifica ".
Milan Kundera, " Le Rideau, Essai en sept parties ". NRF-Gallimard, 2005
FAR

terça-feira, 27 de maio de 2008

Uma outra visão para o que é o Homem

Foto:g.ludovice


"(...) Pode matar-se tudo menos a nostalgia do reino.
Levamo-la na cor dos olhos, em cada amor, em tudo o que nos atormenta profundamente, em tudo o que nos empurra, em tudo o que nos engana. Wishful thinking, talvez, mas essa podia ser outra definição do bípede implume.(...)"

O jogo do mundo, Julio Cortázar

domingo, 25 de maio de 2008

Da História..

Viena 2008
Foto:g.ludovice

“ (...) O caminho da história não é o de uma bola de bilhar que, uma vez jogada, percorre uma determinada trajectória; assemelha-se antes ao caminho das nuvens, ou ao de um vagabundo a deambular pelas vielas, que se distrai a observar aqui uma sombra, ali um magote de gente, mais adiante o recorte curioso das fachadas, até que por fim chega a um ponto que não conhece e por onde nem tencionava passar.
Há no decurso da história universal um certo erro de percurso.
O presente é sempre como a última casa de uma cidade, que de certo modo já não faz bem parte do casario dessa cidade. Cada geração pergunta com espanto: Quem sou eu e quem foram os meus antepassados? Devia antes perguntar: Onde estou?, e partir do princípio de que os seus antepassados não eram diferentes, apenas estavam num lugar diferente. Se assim fosse, já teríamos feito alguns progressos- pensava. (...)”

in: O homem sem qualidades, Robert Musil
Trad J.Barrento, D.Quixote

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Nobel da Literatura: a globalização derrotou controlo ideológico

O actual secretário da Academia sueca, Horace Engdahl, é um reputado tradutor de Derrida e Blanchot

A poucos dias da revelação do galardoado com o Nobel 2007 da Literatura, a revista Lire (Outubro) publicou um revelador dossier sobre o mecanismo da selecção e escolha definitiva do laureado. A Academia Sueca tem já mais de um século de actividade. Tudo começou em 1901 e Emilio Zola, o candidato favorito para a primeira edição do Nobel, foi seca e definitivamente afastado da derradeira prova selectiva por a sua prosa"ter falta de espiritualismo". No computo global os premiados de origem francesa e norte-americana totalizam, ombro a ombro, os mais numerosos. O que nos remete para as grandes influências ideológicas: membros proeminentes da família real escandinava, marechais do exército sueco e os famigerados jurados do Pen Clube International acabaram por ditar muitas vezes a sorte do vencedor. As vicissitudes dramáticas do período entre as duas Guerras Mundiais e a Guerra Fria subsequente amordaçaram muitas escolhas: Sartre recusou receber o prémio e Malraux nunca foi distinguido; enquanto Hemingway o recebeu tarde e às más horas e Dag Hammarskjöld, o futuro secretário geral da ONU, tudo fazia para os seus pares distinguirem o diplomata Saint.John Perse, a par de Boris Pasternak e Beckett, o que veio a acontecer...
A cena de Malraux é caricata e de mau presságio: mesmo Camus afirmou que o prémio devia ter-lhe sido atribuído a ele, um pouco como Saramago o disse sobre Aquilino Ribeiro...A dupla vida política do autor da Condição Humana como que o afastou do pódio mais célebre da distinção literária, pois, a Guerra de Espanha e mais tarde o "penchant" pela ideologia gaullista eram coisas sacrílegas para os jurados de Estocolmo. Agora, cinquenta anos após a distinção controversa de Albert Camus - que mesmo assim demorou a vencer quatro designações frustradas de 1952 a 56- a Academia Sueca revelou pela voz do seu secretário-geral alguns dos mecanismos de tão exotéricos processos de escolha. De acordo com Horace Engdahl, um francófilo dos quatro costados, a nova geração de jurados acabou por aceitar os diktats da globalização, do multiculturalismo e da diversidade ideológica. Com uma rede de instituições de cooperação de mais de 400 Universidades e Academias de todo o Mundo, os jurados suecos solicitam pareceres e listas de possíveis candidatos, tudo a partir de Janeiro do ano posterior à ultima selecção vencedora. Seguem-se dois a três meses de triagem para em Abril, realizarem uma lista de 20 nomes de onde saíram, 60 dias depois, um conjunto definitivo de cinco propostas de autores. Uma regra intangível de 1938 faz com que, para se ser seleccionado e vencer, o nome e obra do vencedor já devia ter sido mencionado pelo menos uma vez na short list...

Horace Engdahl afirma que os critérios da nova geração são hoje mais dilatados."Creio que hoje não se pode reduzir a Literatura à Poesia ou ficção. Existe o que apelido de literatura de testemunho muito importante. Que vai da narrativa de viagens aos testemunhos sobre a Shoa, os escritos de Lévi-Strauss e a certos ensaios literários, e uma certa forma, a via foi aberta por Churchill (laureado de 1953), Bertard Russell (1950) e Soljenitzyne (1970)". Está tudo dito. Nós lusitanos, perdemos a hipótese de ver eleitos Aquilino e Jorge de Sena, mas temos o trunfo grande de Lobo Antunes. Haverá algum professor de Yale ou Nova York que o tenha proposto? Terá ele feito parte das listas antigas dos cinco candidatos finais? Vamos esperar uns dias.

FAR

domingo, 12 de agosto de 2007