O primeiro livro em prosa de Dias de Melo, Mar Rubro, foi editado precisamente há cinquenta anos. Inaugura o denominado ciclo da baleia, do qual faz parte a mais emblemática obra do autor, Pedras Negras, vinda a público no ano já distante de 1964. Seguir-se-ia, volvida mais de uma década, em 1976, Mar Pela Proa. Não resistimos, porém, a introduzir, neste mesmo ciclo, o volume Vida Vivida em Terras de Baleeiros, de 1983, uma extraordinária monografia historiando a saga da caça ao cachalote na ilha do Pico desde os tempos do lendário capitão Anselmo.
O universo das «crónicas romanceadas» de Mar Rubro, é o sul do Pico, mais concretamente a freguesia da Calheta de Nesquim, terra natal do autor. É por isso que descreve com alguns dos seus melhores textos essa pequena localidade, isolada, como tantas outras, na costa da «ilha negra», sem nada que a notabilizasse, sem especial recurso ou nenhuma glória que não fosse a bravura dos seus homens. «Todavia são belos os seus matos, que, lá no alto, no interior da ilha, se requebram em curvas gráceis de oiteiros e montes, e montanhas, revestidos de verduras, ou se alargam em extensos vales silenciosos, atapetados de amplos relvados, marchetados de compridos renques de cedros e azevinhos e, de onde em onde, purificados pela bênção das águas tranquilas e transparentes de charcos, paúis e lagoas».
As noites de temporal no pequeno povoado, onde em muitas casas as vidraças estavam iluminadas pelas candeias de azeite de baleia, quando o vento parecia rebentar portas e janelas e o mar, na costa, parecia tragar a terra.
E são as longas tardes na casa dos botes escutando as façanhas dos mais velhos: Mestre José Faidoca, a quem o nosso autor chama Mestre dos mestres, pela valentia e pela confiança que incutia aos homens da sua companha nos momentos decisivos; Capitão Medina, que regressara depois de muitos anos emigrado nos Estados Unidos, estabelecido em S. Diego da Califórnia, onde prosperou na pesca do atum, fôra voluntário na Segunda Guerra Mundial e alcançara o posto de Commander da Marinha de Guerra daquele país; João Caçolha, Mestre João Silveira, Mestre João Graxinha, entre muitos outros.
Mas seria sem qualquer dúvida a memória da infância, quando o povo da freguesia despertava subitamente e corria desde as terras mais elevadas, ou das casas térreas, corria pelos carreiros íngremes na pressa de arriar os botes com seus apetrechos, os remos, as celhas, os arpões, reunir os sete homens da cada embarcação, seis remadores, mais o esparrela que à popa segurava o leme, içar as velas, ou, nos tempos mais recentes, esperar que arrancassem os motores da gasolina, para então, apressadamente amarrados, zarparem primeiro que os seus mais directos competidores, os «ribeiras», e os «vilas» das Lajes. «Para que assim acontecesse, bastaria (...) ter ouvido, em dias repetidos, o estalar do foguete no céu azul da minha freguesia e aquele grito vibrante, estranhamente vibrante, repetido por dezenas e dezenas de vozes – baleia! baleia! (...) a imagem, cheia de movimento, dos baleeiros a correrem, a correrem como loucos, de saquinhas de chita e casacos de cotim, frocas de angrim, sueras de lã dependuradas dos braços, a caminho do porto, a caminho do mar.»
Depois de arpoada a baleia, quando havia casa de derreter na Calheta, o esforço brutal, em dias de sol, a rasgar o cetáceo, começando por separar do corpo a grande cabeça, retirar o toicinho, aproveitar o esparmacete, o óleo mais valioso, tudo isto suportando o indiscritível fedor da carne esfacelada desse animal gigantesco. «Jorrava o sangue, quando as baleias eram decepadas e esfoladas, espirravam gorduras, quando as cabeças eram abertas, vazadas, esquartejadas, desventravam-se vísceras, à medida que os escalhos inchavam e apodreciam». Então as águas tingidas de sangue tomavam uma cor avermelhada em redor do pequeno porto, a cor rubra.
Dias de Melo é hoje um autor com obra que se reparte por mais de vinte títulos que incluem a poesia, o conto, a crónica, narrativa de viagem, etnografia. Porém, no seu coração houve sempre um espaço predilecto para os baleeiros do Pico.
Mário Machado Fraião
1 comentário:
FAR, que me dizes da decadência que vai pelo teu blogue que até já se dedica aos "ciclos da baleia"?
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