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sábado, 10 de maio de 2008

Marx e a Poesia vistos por Jorge de Sena

" Quanto à leitura de O Capital, lembre-se você que eu sou engenheiro, trabalhei bastante na administração, tirei no meu curso Economia Política e Finanças, e sempre me interessei por Economia( a Política, e não a econometria que, aí, passa por sê-lo, e não é senão uma forma de alienação, ao serviço das grandes empresas).
O livro, portanto, é-me mais legível que o será para homens só com interesses filosóficos. Além de que o gosto que sempre tive pela História também favorece a aproximação de um pensamento que é, sob certos aspectos, historicista. Se digo isto é para mostrar-lhe que não há em mim, quanto ao Marx, méritos nenhuns especiais. O problema dos estalinismos, como você deve ter sentido, é angustioso para mim. E não porque eu condene o que ele fez, o " velho ",pois que o outro o teria feito do mesmo modo,contra tudo e contra todos.

" O terrível não é a violência: o terrível é a traição, a delação, a burocratização da turpitude para agradar ao patrão. E isto é que ainda não sabemos a que ponto não terá de ser uma correcção que a ciência terá de introduzir nessa coisa que não é natureza mas " história " humana. Eu, por mim, considero a humanidade vil, hipócrita, porca e canalha; mas guardo-me de a desprezar, porque já houve momentos em que ela, não tendo sido pior do que recentemente se mostrou, e não possuindo as possibilidades, que tem agora, de sua consciência social, soube elevar-se acima do que podemos supor modificável no mais amplo sentido( e não estrito) do económico-social.

" Por que razão Você se interroga sobre que momento era, de debilidade, em que algumas das minhas " " Metamorfoses "o apanharam? Será que Você não aceita que a poesia o "agarre"? Mas isso mesmo é que ela pretende; apenas, permita-me a vaidade, lendo os poemas dos nossos amigos todos, a gente acaba desabituado de que a poesia seja coisa para comover ou para, como diziam os antigos, elevar a alma…E a leitura dos poetas noutras línguas nunca é a mesma coisa, porque é uma emoção que tem de ser intelectualmente traduzida em termos nossos.

" Concordo consigo em que a arte se gera lá onde não há distinção entre profunda alegria e profunda amargura. Penso mesmo que a grandeza que ela tenha provém de que, lá nesse recôndito escarno, dá-se o reconhecimento mútuo da necessidade e da liberdade. "
In "Correspondência J. de Sena- Vergílio Ferreira ", introdução de Mécia de Sena e V. Ferreira
INCM. Lisboa 1987
FAR

sexta-feira, 9 de maio de 2008

CARTA A MEUS FILHOS

Sobre os fuzilamentos de Goya
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós.
Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) de ferro e de suor e sangue e algum sémen a caminho do mundo que vos sonho. ~

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - não hão-de ser em vão.
Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam «amanhã».

E. por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram.
JORGE DE SENA