" Quanto à leitura de O Capital, lembre-se você que eu sou engenheiro, trabalhei bastante na administração, tirei no meu curso Economia Política e Finanças, e sempre me interessei por Economia( a Política, e não a econometria que, aí, passa por sê-lo, e não é senão uma forma de alienação, ao serviço das grandes empresas).
O livro, portanto, é-me mais legível que o será para homens só com interesses filosóficos. Além de que o gosto que sempre tive pela História também favorece a aproximação de um pensamento que é, sob certos aspectos, historicista. Se digo isto é para mostrar-lhe que não há em mim, quanto ao Marx, méritos nenhuns especiais. O problema dos estalinismos, como você deve ter sentido, é angustioso para mim. E não porque eu condene o que ele fez, o " velho ",pois que o outro o teria feito do mesmo modo,contra tudo e contra todos.
" O terrível não é a violência: o terrível é a traição, a delação, a burocratização da turpitude para agradar ao patrão. E isto é que ainda não sabemos a que ponto não terá de ser uma correcção que a ciência terá de introduzir nessa coisa que não é natureza mas " história " humana. Eu, por mim, considero a humanidade vil, hipócrita, porca e canalha; mas guardo-me de a desprezar, porque já houve momentos em que ela, não tendo sido pior do que recentemente se mostrou, e não possuindo as possibilidades, que tem agora, de sua consciência social, soube elevar-se acima do que podemos supor modificável no mais amplo sentido( e não estrito) do económico-social.
" Por que razão Você se interroga sobre que momento era, de debilidade, em que algumas das minhas " " Metamorfoses "o apanharam? Será que Você não aceita que a poesia o "agarre"? Mas isso mesmo é que ela pretende; apenas, permita-me a vaidade, lendo os poemas dos nossos amigos todos, a gente acaba desabituado de que a poesia seja coisa para comover ou para, como diziam os antigos, elevar a alma…E a leitura dos poetas noutras línguas nunca é a mesma coisa, porque é uma emoção que tem de ser intelectualmente traduzida em termos nossos.
" Concordo consigo em que a arte se gera lá onde não há distinção entre profunda alegria e profunda amargura. Penso mesmo que a grandeza que ela tenha provém de que, lá nesse recôndito escarno, dá-se o reconhecimento mútuo da necessidade e da liberdade. "
In "Correspondência J. de Sena- Vergílio Ferreira ", introdução de Mécia de Sena e V. Ferreira
INCM. Lisboa 1987