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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010)



"Em meados do século passado desembarquei em Lisboa com uma bicicleta e uma caixa de tintas a óleo na bagagem. Eram prendas preciosas, uma de aniversário e outra por ter feito o 2º ano do liceu, de que tinha conseguido não me separar quando por decisão familiar fui nessa altura remetido de Moçâmedes para fazer em Santarém, num prazo de 5 anos, o curso de regente agrícola. Mas nem da bicicleta nem das tintas a óleo nunca mais voltei a fazer uso. Passei esses 5 anos na condição de aluno interno, a residir no próprio estabelecimento escolar, e tanto as tintas a óleo, que eram o reconhecimento dos meus mais evidentes talentos de infância, como a bicicleta, que era uma adjectivação de gloriosas adolescências coloniais, foram sacrificadas à disciplina e ao programa da minha estadia em Portugal. Fiz o que tinha a fazer dentro do prazo previsto, fui sendo bom aluno e isso me foi assegurando o direito de vir a Angola com passagens por conta do estado durante quase todas as férias grandes. E em 1960, com 19 anos, voltei definitivamente à jóia da coroa do império português para começar a fazer pela vida, até hoje e a partir daí, conforme as circunstâncias e segundo os meus próprios critérios...
Não estou, porém, evidentemente, a contar a estória pelo princípio. Quando de facto fui embarcado em Moçâmedes com destino a Santarém, eu estava também a ser remetido ao exacto local do meu nascimento biológico e de onde, mais cedo portanto, tinha vindo com a família, que entretanto emigrava arruinada mas servida ainda de criada branca e acompanhada de cães de caça, desembarcar em Moçâmedes. De qualquer maneira o que me calhou na vida foi estar de volta a Angola com um curso médio já feito quando a maioria dos sujeitos angolanos da minha classe etária e com recursos para estudar, com alguns dos quais eu tinha feito o 2º ano do liceu, estava a ser, por sua vez, expedida para a metrópole para estudar em faculdades. Não beneficiei, assim, nem de uma iniciação universitária comum nem da escola de cativação ideológica que também foi para a minha geração a casa dos estudantes do império, por exemplo, e pelo menos duas consequências maiores para o meu percurso biográfico terão resultado desta configuração das coisas : a primeira é que o lugar onde vim ao mundo, na Europa, sempre constituiu para mim, desde que me lembro a enfrentar a vida e a reflectir nas coisas, uma referência de exílio; a segunda é que tudo quanto pela vida fora se me foi revelando em termos de relação com o tempo histórico que foi o meu, e determinando o meu lugar cívico no mundo, acabou de uma maneira geral por me ocorrer a maior parte das vezes de maneira directa, física e existencialmente interpelativa, e não raro brutal, para só vir a impor-se de forma ainda assim mentalmente muito elaborada e muito ruminada, nalguns casos, teoria ajudando, quase sempre só depois.
*
Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos - lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíge quando, em março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola. Sobrevivi então aí absolutamente à justa e a tempo de me refazer de tanta perplexidade e de tanto horror, tanto insurreicional como repressivo, quando a seguir, numa memorável noite em Luanda, houve quem me sussurrasse, em passeio pelas ruas da baixa, versos nacionalistas de Aires de Almeida Santos e de Viriato da Cruz que me revelaram uma alma de Angola que se me vinha oferecer sob medida e pela via do arrepio para eu ajustar à razão de Angola que a sublevação tinha acabado de me dar a reconhecer in vivo, e de que a partir daí passei a socorre-me para ver se conseguia conferir algum sentido à condição de orfão do império a que a vida, apercebi-me logo, me tinha destinado. Quando logo a seguir, também, a idade e o desamparo me colocaram com um papel na mão para apresentar-me no Huambo ao serviço da tropa colonial, e depois fui transferido para Luanda, já tinha conseguido que alguns mais-velhos da luta clandestina nacionalista me atribuíssem mínimas tarefas menores, como dactilografar, para posterior distribuição pelos musseques, poemas de revolta de autoria anónima e esclarecedora má qualidade. Mas depois foi uma data de gente presa e a tropa só não me entregou também à pide porque o comandante da secção de justiça do quartel a que eu pertencia era casado com uma filha de Moçâmedes e decidiu arriscar, e os informou que preso já eu estava, por razões disciplinares. Passei ainda uns tempos fardado de soldado português a fazer desenhos no quartel-general, mas depois fui requisitado, como técnico agrário, pelo instituto do café, e mandado para a Gabela e mais tarde para Calulo. Ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista, nunca mais encontrei maneira de as restabelecer... e também nada ajudava... nem a cor da pele que é a minha nem o cargo de engenheiro que ocupava... e o máximo que consegui foi ser dado como persona non grata pela administração do Libolo, junto com um padre basco e um médico português, e afastado compulsivamente dali. Pouco para currículo político.
Arranjei então outro emprego e mudei para a Catumbela, onde fui responsável pela pecuária de uma grande empresa açucareira. E foi nessa condição que levei tal volta passados três anos - de mim para mim e a sós ou quase e a arriscar os meus primeiros poemas afundado no interior do imenso platô de Benguela, extremo norte do deserto do Namibe, onde, em plena fúria, tinha posto cinco mil ovelhas a pastar e a parir e doze furos artesianos a puxar água do fundo do deserto - , levei então tamanha volta que andei os três anos seguintes a derivar pelo mundo. Estive em Hamburgo, em Copenhaga e em Bruxelas, sempre na pista da insurgência nacionalista, mas quando finalmente consegui chegar a Argel, para contactar com as forças da luta, ninguém ali me levou a sério ou então voluntaristas como eu já tinham lá que chegasse e até nem sabiam muito bem o que é que lhes haviam de fazer. Foi depois disso e de outros precalços que acabei mais tarde por ver-me a exercer funções de chefe de fabricação de cerveja em Lourenço Marques - Maputo - e estive a seguir em Londres, com um dinheiro que pedi emprestado, a fazer um curso de realização de cinema e de televisão. Na sequência dessa volta toda é que acabei por voltar a Angola em 1974 e por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975 no município do Prenda, em Luanda, a filmar às zero horas, que foi uma hora zero, a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir no mastro.
*
Se a razão para estar agora aqui a contar estas passagens da minha vida é ter escrito até hoje meia dúzia de livros, então já nessa altura, quando foi da independência, tinha o primeiro livro de poesia publicado. Era o resultado da volta que tinha levado na Talamanjamba, no interior do platô de Benguela. E tinha muita escrita alinhavada e era a altura e a idade de anotar quase tudo. Quase tudo poesia. E disso dirão os próprios livros. Quanto à vida cívica, de cidadão angolano comum, de opção e de condição, de 75 até 81 fiz pela a vida e pela revolução realizando filmes para a televisão angolana e para o instituto angolano de cinema. E guardo a satisfação muito particular de ter visto a bandeira de Angola hasteada em muito lugar distante e mítico do mundo, em Samarkanda, por exemplo, precisamente por eu estar lá com trabalho meu. Mas entretanto foi deixando de dar para continuar a querer fazer cinema, e escrevi então um texto académico anti-cinema-etnográfico para juntar a um dos filmes que tinha feito – Nelisita – e obtive com isso o diploma da escola de altos estudos em ciências sociais, de Paris, o que me deu imediato acesso à condição de doutorando. Foi então o meu tempo de investigações de terreno, nas praias piscatórias de Luanda, e da minha modesta participação na reformulação de toda a teoria das identidades colectivas, em Paris. Durante essa meia dúzia de anos vivi entre pescadores, nas praias da Samba Grande e do Mussulo, e doutores, na Sorbonne e no Boulevard Raspail. A partir de 87, já doutorado, passei a dar aulas de antropologia social para arquitectos, na universidade de Luanda, e a aproveitar sabáticas para ir dar aulas também, e consumir bibliotecas, em Paris outra vez, Bordéus, São Paulo, Coimbra... Em 89 andei ainda por Cabo Verde a tentar filmar de novo, mas isso é mais é para esquecer. Depois, a partir de 92, fui arranjando maneira de ir passar cinco meses, todos os anos, misturado com os pastores do Namibe de quem, desde menino, andava a querer saber como conseguiam organizar a sua sobrevivência e a sua existência, tão diferenciada de tudo quanto os pressionava à volta. Foi para dar notícia disso sem ter de escrever naquele tom da escrita académica – de teses e artigos fui achando que já tinha tido a minha dose - que adoptei então essa maneira de escrever que depois me pôs na pista de uma meia-ficção-erudito-poético-viajeira em que venho insistindo.


Hoje continuo a não conseguir andar por fora muito tempo sem devolver-me ao murmúrio de Luanda, à noite, que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, onde a vizinhança me trata por brancurui, e sem continuar a meter-me sempre que posso por esses suis abaixo, a penetar desertos e a inventar pastores. Procurei sempre, sob qualquer situação ou regime, e fosse quem fosse que estivesse a mandar, viver a condição de cidadão comum. Lido mal com o privilégio, caiba ele a quem couber, até a mim mesmo, e nunca consegui deixar de sentir-me, tanto antes como depois da independência, tido como minoritário, quer dizer, subalterno ou intruso que incomoda sempre, desde que dê nas vistas. Acho que entretanto sosseguei bastante, na vida, quando, já faz algum tempo, dei conta que afinal não só jamais viria a ser o melhor do mundo, quanto mais cá na banda. E que também não tinha obrigação nenhuma de o ser. Mas uma das questões pessoais que se me anda agora, com a idade, a por com mais frequência, é a de saber se será possível continuar a envelhecer sem sucumbir de todo a uma senilidade insuportavelmente azeda ou sem incorrer também numa dessas beatitudes patetas e patéticas que pretendem fundamentar-se numa sabedoria qualquer que a idade acumulada por si só garantiria. É verdade que um percurso biográfico se faz de tempos, de lugares, modos, percepções, ocorrências, experiências, resultados, aquisições, perplexidades, digestões e ressacas. Mas também é verdade que eu não vou nunca deixar de permanecer muito irremediavelmente ingénuo, embora não de todo burro, e de lidar muito mal com toda a ordem de leviandade, de irresponsabilidade, de arbitrariedade, de mentira, de prepotência, chantagem, esperteza, insolência e soberba, e de achar que o que mais envenena as relações entre as pessoas, quaisquer relações, é o uso e o abuso da boa-fé dos outros. E é disso que o mundo está cheio e a bem dizer se faz. E há de fazer-se sempre, talvez, porque afinal, parece, é assim mesmo que ele é. Temo não chegar nunca a ser capaz, mesmo senil, de vir a conformar-me com isso. E o resto são umas ideias minhas que ando ainda cá com elas."

Biobliografia, retirada do Site da Cotovia.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Splish Splash

Faleceu tranquila e inesperadamente a senhora Laura Moreira de Braga, lá do lugar de Cachoeira do Itapemirim, Espírito Santo. Prénom, Lady.
Seu filho foi surpreendido pelo passamento em Nova Iorque, capital cultural dos USA. Os gringos, diz-se, sentem-se órfãos de seu próprio soberano, sim, alegadamente órfãos, uma vez que apenas está estabelecido: “Elvis left the building”, embarcou num Cadillac movido a anfetaminas e peanut butter... e desapareceu. Embora, aqui e ali, são mais que muitas as aparições em Santo impersonator ou em Graça e Espírito no Convento de Graceland.

Bom, já se terá dito tudo sobre todos os aspectos do fenómeno Presley, como catalizador da revolução social de 60. Mas, mais a Sul, segue relativamente ignorado do egocentrismo anglo-saxónico o caso de Roberto Carlos Braga. Dinastia de um só Rei.
Embora Elvis anteceda Roberto, circunstância que suscita desentendimentos sobre precedências e originalidades, propomo-nos destacar uma semelhança e um contraste entre ambos os Reis. Tanto Elvis como Roberto jamais se pronunciaram fosse sobre o que fosse, nem nunca se deixaram aprisionar nas ordenações da crítica. Eis a minha música e submeto-a ao veredicto popular. E assim surgiram as massas e o consumo das massas, como supremo fiel da qualidade que é quantidade, explanando uma estética minimalista. Eu gosta de você; eu não gosta de você. Splish Splash.

Elvis, enquanto branco pobre do Delta, redneck de condição, protagonizou a síntese musical dos explorados brancos e negros, disseminou-a numa viagem individual que fez escala urbana, universal. Roberto, é ele próprio uma síntese. Braga lusitano, caboclo, mulato brasileiro.
O Rei do Sul, ao invés do congénere do Norte, irrompeu no mundo urbano, portanto, colectivamente identificado naquilo que designaram de Jovem Guarda. Postura pop light por oposição às erudições da Velha Guarda e ao pop(ular) pesado das autoridades militares e eclesiásticas. Um mundo dividido em escolas diversas e autorizadas, com direito a um momento plural no calendário da ditadura: o Carnaval e outras inconsequências ao longo do ano
O pop light, esvaziado, semanticamente ‘aberto’ de Roberto Carlos ajudou a desconstruir o edifício simbólico dos generais e dependentes. Sem nada dizer, o pop, o sentimental simples, o religioso das canções do Rei unificaram as massas, que é dizer, as pessoas. Deram-se contas que existiam, que eram muitas e que não eram diferentes. Splish Splash.

Involuntariamente anti-intelectualista, distraidamente anti-elistista, o repertório do Rei semeou de forma paulatina as sementes da modernidade. Inconformismo, desobediência civil- “Quero que vá tudo para o Inferno” e “É proibido Fumar”, consciência social e sindicalismo- “Caminhoneiro”-, urgência na ruptura da ordem estabelecida- “Quando”, “O Portão”-, liberdade individual-“O Calhambeque”-, liberalidade e prazer- “Namoradinha de um Amigo Meu”-, diversidade- “Mulher Pequena”, “Mulher de 40”, “Jesus Cristo”, “Nossa Senhora”, “Se diverte e Já não Pensa em Mim”- micromanagement “Detalhes”, Ambiente e Ecologia “As Baleias”, “Amazónia”. Pois é, e o Rei despachou 120 milhões de discos e mereceu dois Grammy.

Tudo isto sem falar, apresentando-se de fraca figura- ficou sem parte de uma perna num acidente ferroviário- e ostentando um sorriso tímido que muitos juram ser a marca do idiota. Num filme de Hector Babenco, creio, um bando de presidiários, ou jovens delinquentes, está prestes a evadir-se por um buraco no muro da prisão. Entre estes, um jovem deficiente, então dizia-se coxo, um Roberto Carlos impersonator de rigueur, hesita e não foge. E justifica para os companheiros de fuga: Lá fora não sou ninguém; cá dentro sou uma estrela”.

PS: Parabenizando Lula da Silva e recordando um grande português: José Henrique Barros ‘Barroca’. Foi ele quem nos franqueou, em meados de 70, as portas do Clube Roberto Carlos na Mafalala. Então, blacks only.
Por ironia do destino, o Barroca veio a morrer em Belo Horizonte, Minas Gerais, alegadamente assassinado.”Amigo”, É DURO SER ESTÁTUA.

JSP

(O pica-pau áparece aos 7:51)

terça-feira, 16 de março de 2010

quinta-feira, 11 de março de 2010

“Rouge”

In memoriam. José Maria Gomes aka Zeca Diabo

Memória bem guardada entre os que mais de perto privaram com o José Maria Gomes, durante a sua transitória frequência do enclave ‘português’ no Rio das Pécoras, merece jus divulgação nesta injusta inoportunidade obituária. Escrevemos memória com o intuito de desanimar os que habitualmente as treslêem como segredos mais ou menos ciosamente desguardados. Nada disso.
Memória do que deveria ser oportunamente dito sobre o Zeca Diabo. Como afectuosa e privadamente referiam os que oficinaram nos 80 meados os jornais a que deu alma e corpo. Primeiro o Correio, depois o Oriente.

Por respeito aos altos padrões de modéstia e inabalável confiança axiológica nos princípios da Igualdade e da Fraternidade a que o Zé Maria se obrigava, propomos, tão só, uma síntese e uma estória.
Por que nos falta o talento do aforismo na mesma medida em que desconhecemos o patois moderno apropriado, ficamo-nos por uma visitação nobre: gentil-homem.
Um homem bom, uma pessoa tranquila, um cidadão perenemente incomodado e inconformado com a exploração, a injustiça e todos os arbítrios. O Zé Maria era genuinamente assim, sem alardes, sem crispações. Quem se não lembra daquele jeito peculiar de discordar semisorrindo: “Nãããão”. Ou quando o disparate do interlocutor era confrangedor, um compreensivo: “Nããão sócio, não sócio”.
Jornalista escrupulosamente honesto, o Zeca Diabo sucedeu, no quadro desfavorável de responder por veículos escritos ditos pró-governamentais, em apresentar produtos tecnicamente limpos, rigorosos.
“Espírito de missão”, justificava, e por aí ficava a explicação da missão. O espírito, esse, revelava-se no sacrifício de suportar golpes baixos dos adversários, que os havia, e até se autodesignavam de oposição.
Pois a estória foi mais ou menos a seguinte. Soprado sobre uma vaga intenção governamental de ressuscitar o dossiê caminhos-de-ferro, nada mais nada menos do que o modus operandi adequado a quem quer encomendar estudos e consultorias várias- chamemos-lhe o método do raccord histórico ou do precedente auspicioso-, o Zé Maria verteu prosa investigada sobre comboios em Macau. Propósito nada fácil, uma vez que nunca houve comboios por estas bandas, pelo menos de natureza ferroviária.
O nosso Zeca não se deixou limitar por essa inconveniência e tratou de desencantar, sim, desencantar, um achado etimológico e um filão semântico, uma “Gazeta dos Caminhos de Ferro”, publicada em 1902, em Lisboa. A gazeta repescava uma ‘cacha’do Morning Leader de Londres, que anunciara a formação de um “syndicato” português para financiar e construir a linha de caminho de ferro entre Macau e Cantão.
A percepção desta possibilidade seria qb, mas o Zé Maria reforçou-a com a irrefutabilidade do material circulante: numa pequena pedreira da Ilha da Taipa era, fôra, possível observar o afã das pequenas vagonetas de cascalho, para cá e para lá, sobre carris.
Os tais adversários, acima introduzidos, não enjeitaram a oportunidade para ‘desancar’ o Zé Maria, o “Oriente”, associando o “delírio” dos comboios à deriva mental e financeira do governo. No mais duro estilo madeirense, chegaram ao ponto de insinuar que o Zé Maria teria sido visto, madrugada alta, junto à dita pedreira, com uma cavilha numa mão e uma garrafa de mao tai na outra.
Foi a gota de água. “Sócio, puta que os pariu, fechamos o jornal e vamos para o Skylight, para o Mermaid, para o Ritz, para o Kin Dô, para qualquer sítio”.

(continua)

JSP

terça-feira, 2 de março de 2010

“Se for caso…”


Foto Sol de Carvalho

Prometi que mandava um texto para a segunda série do 2+2, e aqui vai. Não era para ser isto, mas o que tem que ser pode muito. Esta manhã, mal acordei, recebi um sms de Maputo. Era o José Manuel: “Morreu Leopoldo Fernandes, madrugada de hoje”. Parece que agora não faço outra coisa senão escrever obituários. De há uns tempos para cá, desataram todos a morrer. Lembro-me do meu pai, aos setenta e tal anos, desterrado num apartamento em Vila Nova de Gaia, com vista para o pátio: “O mais triste na velhice é que os amigos estão todos mortos”. Cito de memória, e a memória já me vai traindo. Já não me lembro como conheci o Leopoldo. Sei que foi em 1985, porque ele figura no programa de uma peça que encenei com o Tchova Xita Duma pelos dez anos da Independência. Fui desencantar o programa e lá está ele na foto de grupo, franzino e sorridente, ao lado da Joaninha Zambeze, mais o Bartolomeu, a Ana Magaia, eu sei lá… Já na altura era um sobrevivente. Em 1977, com 24 anos, tinha ido parar ao campo de reeducação de Sakuzo, acusado de ser surumático. Mas não o reeducaram. Ao fim de três meses revistaram-lhe a enxerga e encontraram-lhe passa. Aplicaram-lhe cinquenta chambocadas, mas nem assim o reeducaram. Acabou por fugir e andou dias a corta-mato, às escondidas dos leopardos. E dos frelos, que eram mais perigosos. Felizmente há gajos assim, não há nada que os reeduque. Continuou a gostar de suruma, e de cerveja, e de mulheres. Continuou a parar pela esplanada do Goa, com a malta da pesada. Continuou amigo do Che, da Dorinha e da Gina China, que morreu de Sida na berma da Julius Nyerere. E continuou a cantar. Cantava bem, até ganhou um concurso no Rádio Clube, com o nome artístico de Tony Fernandes. Dei-lhe um fado para interpretar na peça, com letra escrita pelo Patraquim. Era um actor a sério. Tinha estudado teatro em Lisboa, com o Gutkin, mas a escola não lhe domou a exuberância. Manteve-se um actor à africana, como eu gosto, tão liberto do texto como um jazzman da partitura. Nunca o convenci a empinar um papel; nunca o vi gaguejar num improviso. Encontrei-me com ele pela última vez faz agora um ano, na sede da editora Ndjira, em Maputo. Eu tinha ido entregar o manuscrito de um livro, ele trabalhava lá como revisor. Tinha a barba grisalha, filhos ainda pequenos. Disse-me que gostava de voltar ao palco, e eu deixei no ar uma vaga promessa. Despedimo-nos, combinando um encontro para dias depois. Para matar saudades, para beber uns copos, “se for caso”, como ele dizia. Mas não. Não voltaremos a trabalhar juntos. Não voltarei a exasperar-me por ele me chegar grosso a um ensaio. Na semana passada queixou-se que não se sentia bem. Ontem pediu para o levarem ao hospital. Em Maputo era Verão, máxima 33, mínima 18, mas não foi sentar-se no muro de casa a apanhar fresco, diante do charco perene na esquina da Sekou Touré, onde antes era o lar dos Velhos Colonos e agora é outra coisa qualquer. Agora é sempre outra coisa qualquer. Ontem pediu para o levarem ao hospital, e foi lá que se apagou, de madrugada, entre a imundície e o cheiro a mijo. Sozinho, como morremos todos.

José Pinto de Sá

sábado, 19 de janeiro de 2008

GM Bobby Fischer (1943 - 2008)

Robert James Fischer foi o melhor jogador de xadrez de todos os tempos. Mais que isso, foi verdadeiro ícone do xadrez ofensivo, criativo e temerário. Excêntrico, e talvez mesmo louco, a sua vida foi tudo menos o que se poderia esperar de um desportista de sucesso. Após fazer furor tornando-se campeão norte-americano com 14 anos, e Grande Mestre com apenas 15 (o mais jovem de sempre à época), e assombrar o mundo do xadrez com alguns dos mais belos momentos da arte combinatória, torna-se campeão do mundo em 1972, no famoso match de Rejkavik com o soviético Spassky. Num clima de tensão empolado pela guerra fria, e pela possibilidade de finalmente os americanos terem um jogador à altura dos russos (que fizeram do xadrez o jogo nacional, para provar a superioridade do comunismo), Fischer vence claramente (12,5- 8,5), por entre acusações de batota de parte a parte, ficando famosa a sua alegação de que Spassky receberia bilhetes em código nas garrafas de água que lhe serviam. Dois anos depois, Fischer exigiu condições impossíveis para defender o título contra Karpov. Recusou jogar. Perdeu o título na secretaria. A partir daí, afirmando-se perseguido pelos serviços secretos americanos, fugiu dos EUA, passando incógnito por países como as Filipinas, a Hungria ou o Japão. Em 1992, em plena guerra da Jugoslávia, aceitou jogar um remake do match com Spassky em Belgrado; julgado à revelia no seu país, por quebrar o bloqueio económico imposto a Milosevic, acabou condenado a 2 anos de prisão. Fugiu novamente, mas em 2005 foi preso no Japão. A senhora atrás dele nesta foto, Myoko Watai, presidente da federação japonesa de Xadrez, casou-se com Fischer para que ele pudesse obter a nacionalidade japonesa, e escapar à extradição. Consta que acabaram por se dar bem. Acabou por obter antes a nacionalidade islandesa, tendo vivido em Rejkavik desde então. Antes, em 2001, reapareceu para dar uma entrevista em que apoiava os terroristas do 11 de Setembro. Há, ainda, a famosa história de um jogador incógnito, que desafiou o GM Nigel Short, um dos melhores jogadores de rápidas do mundo, para jogar umas partidas numa plataforma online, e jogando de forma mirabolante, com lances aparentemente absurdos, ganhou todos os 13 jogos: só podia ser o Fischer, disse-se. Num certo sentido, o seu fantasma pairava sobre o mundo do Xadrez, que buscava a sua genialidade, o seu perfeito domínio sobre todas as fases do jogo. O jogador perfeito, que para mais, como se de uma estrela pop se tratasse, desapareceu no auge da carreira.

Com apenas 13 anos Fischer jogou aquela que é conhecida como "a partida do século", contra o seu compatriota Donald Byrne, e gravou o seu nome na galeria dos imortais da nobre arte. Para os que sabem ler xadrez, aqui fica, agora que o seu autor se juntou a ela.

D. BYRNE x R. FISCHER
Def. Grünfeld.
1. Cf3 Cf6 2. c4 g6 3. Cc3 Bg7 4. d4 0 - 0 5. Bf4 d5 6. Db3 d x c4 7. D x c4 c6 8. e5 Cbd7 9.Td1 Cb6 10. Dc5 ?! Bg4 11. Bg5 ?! Ca4 !? 12. Da3 ! C x c3 13. b x c3 C x e4 ! 14. B x e7 Db6 15. Bc4 C x c3 !! 16. Bc5 Tfe8 + 17. Rf1 Be6 !!!! 18. B x b6 B x c4 + 19. Rg1 Ce2 + 20. Rf1 C x d4 + 21. Rg1 Ce2 + 22. Rf1 Cc3 + 23. Rg1 a x b6 24. Db4 Ta4 25. D x b6 C x d1 26. h3 T x a2 27. Rh2 C x f2 28. Te1 T x e1 29. Dd8 + Bf8 30. C x e1 Bd5 31. Cf3 Ce4 32. Db8 b5 33. h4 h5 34. Ce5 Rg7 35. Rg1 Bc5 + 36. Rf1 Cg3 + 37. Re1 Bb4 + 38. Rd1 Bb3 + 39.Rc1 Ce2 + 40. Rb1 Cc3 + 41. Rc1 Tc2 #