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sábado, 25 de fevereiro de 2012

"Save the Greeks From Their Saviors"

excerto do manifesto por: Vicky Skoumbi, Editor-in-Chief of the journal, “Alètheia”, Athens, Michel Surya, director of the journal «Lignes», Paris, Dimitris Vergetis, director of the journal, “Alètheia”, Athens. And : Daniel Alvara, Alain Badiou, Jean-Christophe Bailly, Etienne Balibar, Fernanda Bernardo, Barbara Cassin, Bruno Clément, Danielle Cohen- Levinas, Yannick Courtel, Claire Denis, Georges Didi-Huberman, Roberto Esposito, Francesca Isidori, Pierre-Philippe Jandin, Jérôme Lèbre, Jean-Clet Martin, Jean- Luc Nancy, Jacques Rancière, Judith Revel, Elisabeth Rigal, Jacob Rogozinski, Hugo Santiago, Beppe Sebaste, Michèle Sinapi, Enzo Traverso.

que pode ser lido na íntegra em português aqui, tradução de Alexandra Balona de Sá Oliveira e Sofia Borges. 


"O objectivo não deve ser o "resgate" da Grécia: sobre este ponto, todos os economistas dignos desse nome estão de acordo. Trata-se de ganhar tempo para salvar os credores conduzindo o país a uma falência em diferido. Trata-se sobretudo de fazer da Grécia um laboratório de mudança social que, num segundo momento, se generalizará a toda a Europa. O modelo experimentado nos Gregos é o de uma sociedade sem serviços públicos, onde as escolas, hospitais e centros de saúde caem em ruína, onde a saúde passa a ser um privilégio dos ricos, onde as populações vulneráveis são condenadas a uma eliminação programada, enquanto que aqueles que ainda trabalham são condenados a formas extremas de empobrecimento e precariedade.;
(...) 
O agravamento artificial e coercivo do problema da dívida foi utilizado como uma arma para tomar de assalto uma sociedade inteira. É com sabedoria que usamos aqui termos relevantes do domínio militar: trata-se de facto de uma guerra conduzida pelos meios da finança, da política e do direito, uma guerra de classe contra a sociedade inteira. E o espólio que a classe financeira conta arrebatar ao “inimigo”, são os privilégios sociais e os direitos democráticos, mas em última análise, é a possibilidade mesma de uma vida humana. A vida daqueles que não produzem nem consomem o suficiente, ao olhar das estratégias de maximização de lucro, não devem ser conservadas. Assim, a fragilidade de um país apanhado entre a especulação sem limites e os planos de resgate devastadores, torna-se na porta de saída por onde irrompe um novo modelo de sociedade adequado às exigências do fundamentalismo neoliberal. Modelo destinado a toda a Europa, e talvez até mais. Esta é a verdadeira questão e é por isso que defender o povo grego não se reduz a um gesto de solidariedade ou de humanidade abstracta: o futuro da democracia e o destino dos povos europeus estão em questão. Por todo o lado a “necessidade imperiosa” de uma austeridade “dolorosa, mas salutar” vai nos ser apresentada como o meio de escapar ao destino grego, enquanto esta por aí avança sempre em frente."

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Detenção por tempo indeterminado





1) Explicitly authorize the federal government to indefinitely imprison without charge or trial American citizens and others picked up inside and outside theUnited States;
2) Mandate military detention of some civilians who would otherwise be outside of military control, including civilians picked up within the United States itself; and
3) Transfer to the Department of Defense core prosecutorial, investigative, law enforcement, penal, and custodial authority and responsibility now held by the Department of Justice.

Não devia surpreender que nos Estados Unidos o cidadão perca oficialmente o direito à defesa e assistência judicial, sendo que na Europa também já andamos a arrastar o cadáver de uma democracia que já nem representativa é, mas surpreende.


Laura Nadar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Justiça de classe

Seis meses de prisão para dois jovens envolvidos nos "distúrbios" da manifestação da Greve Geral. Sobre os polícias infiltrados, provocadores, e agindo à margem de qualquer enquadramento legal, que estiveram na origem de grande parte dos "distúrbios" que resultaram nestas condenações, a PSP e o ministro continuam a negar apesar de todas as provas, até em vídeo, os contrariarem, e a IGAI e a PGR assobiam para o lado. Registo também o carácter "não remissível em multa" das condenações, em contraste com tantos casos de criminalidade "comum" (querem uma comparação: eu mesmo fiz uma vez queixa de um segurança de discoteca, por agressão, um incidente bem mais grave que este, e apesar de ser o segundo caso que envolvia o dito segurança, a condenação foi remissível em multa). O senhor juiz terá claramente assumido o seu papel de "pilar do sistema", e esquecido o espírito da lei, esse simples instrumento. Mais um passo está dado no sentido da criminalização de qualquer tipo de contestação que escape ao inócuo enquadramento legalista dos sindicatos, e pretenda ser algo mais que a habitual válvula de escape do sistema.

As time goes by...

Via Esquerda Republicana.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Assembleia Popular Barreirense


Convocatória:

Somos cidadãs e cidadãos em exercício da nossa soberania. Reconhecemos que o nosso campo de acção político está relegado a um papel passivo que não vai além do compromisso com o Estado por meio do imposto ou do voto. Intermediado por organismos e instituições burocratizadas, corporativas e hierarquizadas que controlam e condicionam o poder efectivo sobre a decisão das questões fundamentais da gestão do nosso quotidiano.
No momento em que a mensagem que nos chega dos nossos Governantes é a da união em torno de soluções apresentadas como inevitáveis, decidimos reunir-nos em Assembleia Popular livre, num exercício de cidadania pacífico, apartidário e laico, que pretende tomar a palavra no processo de resgate das nossas vidas. Conscientes da responsabilidade que este tempo histórico nos confia, em todo o mundo pessoas como nós estão a tomar as ruas na busca de soluções que nos levem a superar os problemas imediatos, mas também buscar novas formas de organização e gestão para a nossa vida social e comunitária. Convocamos todas e todos os que se sintam igualmente perplexos com o cenário actual e aspirem a assumir um papel activo, para que possamos juntos discutir livremente e em pleno direito as formas de resolver os problemas que o presente nos coloca.

Regulamento da Assembleia Popular:
Estrutura da Assembleia:
Leitura das normas de funcionamento da Assembleia por um membro da mesa.
1h Debate Aberto
1h Apresentação de propostas para Grupos de Trabalho e resumo das actividades em curso.
Fecho: Decisão da data para a próxima Assembleia / Reunião dos grupos de trabalho

Funcionamento da Assembleia:
- Todas as pessoas são livres de participar e tomar a palavra compreendendo a necessidade de eficiência deste órgão e respeitando todas e todos os intervenientes segundo os princípios de boa convivência. Para cada tomada de palavra deve ser cumprido um tempo máximo de 5 minutos.

- A Assembleia não tem um carácter legislativo ou executivo sobre as pessoas que a constituem. A vontade soberana desta Assembleia expressa-se no exercício prático dos desafios e propostas que são lançadas de e para cada participante.

- Antes de cada sessão é necessário que, de entre as pessoas reunidas, existam três voluntárias ou voluntários para cumprir a execução das tarefas que garantam o seu funcionamento, a saber:

- Uma pessoa responsável por recolher as inscrições para tomar a palavra e propostas de nova data para a assembleia.
- Uma pessoa responsável pela moderação do tempo de cada intervenção e pelo respeito pela ordem da inscrição.
- Uma pessoa responsável pela redação de um documento que possa resumir os temas abordados. Este documento deverá depois ser assinado pela redactora ou redactor e tornado público através da publicação no site e leitura no início da sessão seguinte. Qualquer tomada de posição presente neste documento será da responsabilidade da autora ou autor. Não há, por isso, prejuízo de que outras pessoas possam redigir documentos no mesmo sentido. 
Estes três voluntários ficam com a responsabilidade de tratar da logística necessária para a assembleia seguinte. 

- A decisão sobre a data de uma nova Assembleia é feita segundo o maior número de disponibilidades dos presentes. Junto da pessoa responsável devem ser feitas propostas no sentido de uma nova data para Assembleia que será escolhida após a consulta de quem participe na mesma.

Divulgação:

A divulgação está a ser feita por todos de acordo com os meios que querem ou podem dispensar. Basta ir ao  link http://wtrns.fr/ehAVHTqR1EdAd7a, fazer o download do cartaz e flyer, fotocopiar e colar/distribuir.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Preparação de uma Assembleia Popular do Barreiro

Realizou-se no Domingo ao fim da tarde a primeira reunião de preparação da Assembleia Popular do Barreiro. Uma das decisões que tomámos foi a de todos os participantes na mesma comunicarem as sua própria conclusões daquilo que por lá se passou, em vez de se delegar esta responsabilidade num só. Algo que julgamos ir ao encontro do espírito que propomos para esta iniciativa. Abaixo, o meu relato:

Da nossa reunião, penso terem ficado claras e serem motivo de consenso algumas coisas essenciais, que destaco: a primeira, que reconhecemos que esta iniciativa se insere nas movimentações que tem ocorrido um pouco por todo o mundo, e que configuram um novo modo de resistência. Parece-nos que a pedra de toque desta novidade é o seu carácter de base, horizontal e aberto, e que reconhece como o problema essencial a falta de democracia, querendo isto dizer que, apesar dos mecanismos de legitimação de poder da democracia representativa, a participação das pessoas nas decisões que afectam o rumo das suas vidas é escassa, quando não quase nula. Partindo deste pressuposto, entendemos que o alargamento da participação democrática é absolutamente essencial, e que se essa não é a vontade dos poderes, formais ou fácticos, cabe-nos a todos nós contribuir para tal.

Estas conclusões inserem necessariamente esta iniciativa nos movimentos ocorridos recentemente também em Portugal, como o 12 de Março, acampada do Rossio ou 15 de Outubro. Contudo, todos nós assumimos que no caso português tem existido algumas situações de que discordamos: uma excessiva "politização", no mau sentido, por parte de organizações já existentes, e a colonização do movimento por activistas com agenda definida; e um carácter excessivamente formal e que de algum modo mimetiza os mecanismos da democracia representativa. Por outro lado, este movimento mundial encontra-se, pela sua natureza, em permanente reconfiguração, o que origina, também, que o formato que adopta é variável. Sendo esta iniciativa destinada à criação de uma Assembleia Popular do Barreiro, as suas características terão de diferir de outras, já que tem em conta o seu carácter local. Isto, noto de novo, sabendo nós que a promoção da participação democrática, da auto-organização, da discussão de todos sobre os problemas de todos, é em si transformadora e desafiadora das relações de poder existentes.

O que acima foi escrito serve de base para aquilo que queremos concretizar. Assim, é nossa intenção que esta assembleia não exista com carácter legislativo. Ou seja, que não sirva para aprovar resoluções, para pretender representar "o povo", para marcar uma posição colectiva. Antes, que seja composta de três momentos essenciais: discussão, organização e acção. Discussão, porque entendemos que muitas pessoas sentem o alheamento dos processos de decisão, a necessidade de se exprimir e de ouvir o próximo, o isolamento e impotência face às decisões que afectam as suas vidas. Organização, porque achamos que mais importante que aprovar resoluções numa assembleia que mais não fazem que replicar a democracia representativa, com o risco quase inevitável de por esta via se criarem novos "representantes do povo", "vanguardas" a quem este delega a concretização do que é decidido, o importante é a criação de grupos de trabalho, em que cada um participe do modo que entenda adequado, e que respondam aos problemas que cada qual entende serem os principais e os seus. Acção, porque destes grupos se espera que tenham um carácter eminentemente prático. Quanto a este último e decisivo aspecto, pensamos ser importante apostar tanto na auto-organização propriamente dita, respondendo a problemas do próprio quotidiano das pessoas (por exemplo a dinamização de hortas colectivas, redes solidárias para suprir carências, etc.), como na organização ao nível da consciencialização política e cultural (debates, mesas-redondas, etc.), como, quando for caso disso, na acção de resistência a decisões que a todos nos afectam (por exemplo, as anunciadas intenções de quase aniquilamento da rede de transportes que nos serve). Sempre, ressalvando mais uma vez, que este será o papel de pessoas auto-organizadas em grupos e não da assembleia enquanto órgão legitimador e que delega o seu poder em representantes.

Também consideramos ser essencial que aqueles que agora se reúnem para arrancar com esta iniciativa adoptem o papel única e exclusivamente de dinamizadores, e não de organizadores, ou muito menos de "vanguarda" do que quer que seja, bem como a adopção de uma postura ética muito clara, de tipo não-autoritário. Concretizando, o que se pretende é que, a partir de regras mínimas muito simples (por exemplo: um limite de tempo nas intervenções, para que todos possam falar), a liberdade seja a regra (por exemplo: que todos digam o que entenderem, sem que haja uma "organização" que decida o que é relevante).

A esta primeira reunião sucederão outras em preparação. Dar-se-à conta aqui do que se achar pertinente. Mais uma vez reforço que, pelo exposto no primeiro parágrafo, o texto acima apenas me vincula a mim e a mais nenhum dos que participaram na reunião.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Um outro tipo de fraude eleitoral


Este é a já famosa recolha feita pelo Ricardo Santos Pinto, do Aventar. A questão que se coloca é: qual a legitimidade democrática que tem quem é eleito com base na despudorada mentira, e coloca em prática um programa que não é o que apresentou a sufrágio? Apesar disto tudo, há quem continue a achar que todo e qualquer fulano e partido quem ganhem eleições tem garantida essa tal de legitimidade democrática, mesmo que as vença de forma objectivamente fraudulenta, através da mentira e da dissimulação. Nos velhos tempos do bolchevismo uma das ideias era a da possibilidade de destituição dos detentores de cargos políticos a qualquer momento (ok, foram só ideias, sabemo-lo), para evitar este tipo de situações. Ideias ultrapassadas, como é evidente, na "democracia" do século XXI.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (3 e final)



Fragmentos do "Espólio Fernando Pessoa":


Aqui ha trez pontos a considerar: a aggressão a um fraco por um forte; a tentativa de occupação de um territorio que legitimamente pertence a outro, independentemente de forças e de fraquezas; e o caso particular da aggressão da Italia à Abyssinia, nas circunstancias presentes do mundo.
*
O conflicto entre a Italia e a Abyssinia, ou seja, em linguagem mais logica, o conflicto que a Abyssinia é obrigada a ter com a Italia, apresenta para nós portuguezes, como diversamente para todos os povos que não sejam aquelles dois, cinco aspectos distinctos.
O primeiro, não na ordem politica mas na humana, que necessariamente antecede a politica, é o aspecto moral. Trata-se da aggressão de um povo presumido fraco por um povo que se presume, a si mesmo, forte, quer porque de facto o seja, quer porque artificialmente/hypnoticamente se o supponha, quer porque funde em seus recursos e productos de sciencia applicada uma superioridade que organicamente não possue. Neste ponto a Italia está condemnada por todos os systemas moraes humanamente acceitaveis: em nenhum codigo moral, escripto ou intuitivo, se considera a força como fundamento, embora se possa considerar como garantia, do direito. Em nenhum se considera a força como direito.
*
Une-nos a elles, num mais largo e mais ironico conceito[,] uma vasta e larga fraternidade humana. Nós todos, homens, que neste mundo vive- mos oppressos pelas/pelos varias violencias/desprezos do[s] felizes e pelas diversas insolencias dos poderosos — que somos todos nós neste mundo, senão abexins?
Se com isto se pretende dizer que não ha relação entre o imperialismo aggressivo dos italianos e o fascismo, a resposta é que isso é falso, e, o que é mais, que é estupidamente falso.
*
É a fatalidade de todos os povos imperialistas que, ao fazer os outros escravos, a si mesmo se fazem escravos.
*
Não nos deixemos levar por esses argumentos. O problema italo-abexim é o que está diante de nós: é esse que temos que examinar.
Não se discute para antes de hontem.
Nem o ter a Inglaterra procedido mal com a Irlanda no passado serve de justificação à Italia para que proceda mal no presente. Dois males não fazem/ formam um bem, diz o proverbio inglez.
Quando se dá uma série de crimes, torna-se, a certa altura, necessario por-lhes cobro. Não se põe cobro aos que já foram feitos,
Conservemos o juizo, leitor, como homens simples que somos.
*
O mundo está já um pouco cansado dos que, por terem/porque teem as mãos frias, as mettem nas algibeiras... dos outros.
A grande natalidade —
E assim um phenomeno puramente animal, em que as femeas/senhoras dos coelhos facilmente superam, sem nacionalidade alguma, as dos homens, serve para explicar toda especie de offensas ao direito, à justiça e à humanidade.
Estão, selvagens ou não, socegados em suas casas, e desce/cahe/ desaba sobre elles civilização de crear bicho.
Ha horas para tudo, e a hora da oppressão, moralmente, passou.

FERNANDO PESSOA

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (2)



O CASO É MUITO SIMPLES


Quando foi posto em vigor, no xadrez das ruas de Lisboa, a presente regulamentação do transito de peões, as regras de marcha e contramarcha pareceram a principio, a muitos, de uma complicação extrema. O caso, porém, é muito simples: andar sempre pelo passeio a atravessar as ruas em linha recta. Nisto, que não é complicado, se resume toda a complicação.
A Sociedade das Nações, fundada louvavelmente para evitar quanto possivel as guerras e as desintelligencias entre povos, que possam levar à guerra, adoptou desde o inicio o mesmo criterio para os paizes que o Municipio lisbonense adoptou para os peões: devem os paizes andar sempre pelo passeio e atravessar as suas difficuldades em linha recta.
Vêm estas considerações a proposito do conflicto entre a Italia e a Abyssinia, ou seja, em linguagem mais justa, o conflicto que a Abyssinia é obrigada a ter com a Italia. Ora o problema suscitado por esse conflicto divide-se em trez problemas: a attitude da Italia, e se essa attitude é justificavel; a attitude da Sociedade das Nações, e, particularmente, da Inglaterra ante essa attitude da Italia; a attitude que cada nação deve tomar perante o conflicto e a situação em que está posto. Para nós, portuguezes, este terceiro problema vem a ser: qual a attitude que Portugal deve tomar.
Consideremos, pela ordem exposta, estes trez modos do problema. Mas, antes de mais nada, vejamos a que luz os temos de considerar. Tudo quanto involve a politica das nações entre si cahe necessariamente sob trez criterios distinctos. O primeiro é o internacional, isto é, o da entre-relação das nações e do resultado, em qualquer lance, d’essa entre-relação. Esse problema escapa às previsões e aos projectos: a sua solução não póde ser dada senão pelos factos, e não ha homem, a não ser que pretenda ser propheta ou deus, que possa contar o numero de forças que entram ou poderão entrar em jogo, calcular as maneiras como agirão essas forças, deduzir o que resultará d’esse entrechoque de coisas que não sabe quantas são nem o que são.
O segundo criterio é o criterio nacional, isto é, o de que cada nação tem de considerar os seus interesses e agir de accordo com elles. Como, porém, os interesses de uma nação são sempre, por um lado, obscuros a ella mesma, podendo ser prejudicados, involuntariamente, pelos seus proprios governantes, e como são frequentemente, por outro lado, oppostos aos interesses de outras nações, quando não ao conjuncto das outras nações todas, o criterio nacional resulta inutil e fóra de caso na consideração de um problema que, por sua natureza, tem de ser considerado extra-nacionalmente, pois que affecta outras nações além da de que se trate.
O terceiro criterio é o criterio moral, que necessariamente antecede, na ordem humana, todo criterio politico, seja nacional, seja internacional. Os progressos da nossa civilização, por estorvados que tenham sido e constantemente o estejam sendo, levaram-nos todavia a não acceitar por bons, na ordem nacional ou na internacional, criterios que antigamente seriam, quando não acceitaveis, pelo menos admissiveis. Se na ordem practica muitas vezes se faz o que se não admittiria em theoria, continúa a estar de pé a theoria, ainda que violada ou postergada. É na vida nacional como na individual: podemos achar comprehensivel, e por comprehensivel desculpavel, que um homem mate outro em certas circumstancias; não erigimos todavia em doutrina acceitavel o homicidio voluntario.
Somos forçados, pois, em ultimo mas natural recurso, a examinar estes problemas nacionaes e internacionaes à luz do criterio moral. A essa luz os vê instinctivamente qualquer homem que o interesse não cegue ou a paixão não turve; a esse criterio os vê, ou procura ver, a Sociedade das Nações.
Fixemos bem o resultado de tudo isto. Resulta que não temos que considerar os interesses de Italia, ou de qualquer outra nação, senão à luz de saber se elles estão ou não de accordo com a moral e com o direito, e isso vem a dar em se estão de accordo com os superiores interesses da humanidade.
Posto isto, podemos entrar na consideração dos trez problemas particulares em que o problema geral se divide. Começaremos, segundo a ordem exposta, que é a natural, pela attitude da Italia.
Trata-se de um conflicto armado entre um povo presumido fraco, e com certeza materialmente quasi desapetrechado, e um povo que se presume forte, quer porque de facto o seja, quer porque hypnoticamente se o supponha, quer porque funde em seus recursos e productos de sciencia applicada uma superioridade que talvez organicamente não possua.
Tal conflicto viola desde logo o mais rudimentar instincto moral humano — o que impelle cada homem, independentemente de saber de causas ou razões, [a] estar pelo fraco contra o forte num conflicto que entre os dois se dê.
Passado, porém, este movimento primitivo do coração, ha que examinar as causas que motivaram o conflicto; pois, se o forte não tem direito de abusar da sua força, tampouco tem o fraco o direito de abusar da sua fraqueza — isto é, das sympathias que como tal cria, e os appoios practicos que d’ella se derivem — para vexar ou provocar o forte. Temos pois de saber se neste caso italo-abexim, se deu tal vexame ou tal provocação; e a resposta, como todos sabemos, é negativa. Todos vimos, desde o principio, que a Italia era a aggressora; e a investigação da Sociedade das Nações confirmou o que desde o principio todos vimos.
Condemnada assim a Italia, desde o principio e a essencia do problema, por todos os systemas moraes humanamente acceitaveis, resta saber se essa nação apresenta qualquer argumento, moralmente acceitavel, para justificar a innegavel aggressão que a privou do argumento fundamental. Até agora appareceram dois d’esses argumentos, e o chamar-lhes argumento é favor que lhes fazemos. O primeiro é de que a Italia, sobre-populada, tem de expandir-se. O segundo é que a Italia, paiz civilizado, tem todo o direito a tomar conta de um paiz como a Ethiopia, que é selvagem ou semi- -selvagem. Melhor do que isto não se pôde arranjar. Infelizmente, o melhor é do peor que ha.
Quanto ao primeiro argumento, a todos será evidente que os outros paizes, selvagens ou não, não teem culpa da sobre-população da Italia — e ha que notar que a sobre-população é um indicio de baixo nivel civilizacional, poisque os povos altamente civilizados tendem para a baixa da natalidade, quer por motivos organicos, quer por motivos moraes e intellectuaes, que se reflectem em practicas artificiaes. O que um paiz sobre-populado tem que fazer, na ordem moral, isto é, para resolver a dentro da moral esse problema, é tratar de baixar a sua natalidade. A Italia está mais precisada de que lhe preguem doutrinas neo-malthusianas do que lhe preguem fascismo.
Se, porém, a situação presente exige de facto essa “expansão” — o que não sei se será rigorosamente exacto, poi não tenho sobre o assunto outra informação que não seja a de Mussolini e dos fascistas, de cuja veracidade e imparcialidade não é illicito duvidar —, ponha a Italia o problema, devidamente fundamentado, perante a Sociedade das Nações. Ou essa encontra uma solução satisfactoria, ou não a encontra. Se a encontra, está o caso arrumado, e, ainda que a solução desagrade a este ou àquelle paiz, não póde a Italia ser culpada de tal situação. Se a não encontra80, ou procede justa ou injustamente. Se procede justamente, é que o problema é insoluvel: a Italia que o não arranjasse. Se procede injustamente, tem a Italia o direito de proceder, bem ou mal, como entender, pois, do ponto de vista moral e da salvaguarda da paz, começou por proceder como devia.
Quanto ao segundo argumento, succede-lhe o [que] os inglezes chamam cahir entre dois bancos, como alguem que se sentasse no ar, entre os dois. Em primeiro logar, não ha argumento inteiramente plausivel em favor de qualquer nação dever civilizar outra. Em segundo logar, ninguem entregou à Italia o encargo de civilizar a Ethiopia. Accresce que ninguem sabe ao certo o que quere dizer a palavra “civilização”, que, como a maioria dos termos correntes, significa para cada qual o que elle quere ou lhe convém. Os etiopes são incivilizados, ao que parece, porque teem lá a escravatura e porque não teem um alto nivel de hygiene e de cultura. Ora a escravatura é immoral, para nós hoje, porque considera o homem como uma coisa, porque considera a alma humana como subordinavel a uma potencia material — o dinheiro com que compre esse corpo —, ou seja, em ultima analyse, porque despreza a dignidade e a liberdade humanas. Ora a Italia fascista considera o homem como uma coisa, pois o considera subordinado ao Estado, a Italia fascista despreza todas as liberdades individuaes
FERNANDO PESSOA

A ausência de ponto final, bem como a própria construção da frase, mostram que o texto não foi acabado. Pessoa também não cumpriu o plano elaborado no terceiro parágrafo do texto, tendo tratado apenas do primeiro dos “três problemas” que pretendia abordar.


BNP/E3, 92X”74r a 76r. Dactiloscrito de três páginas numeradas, sem indicação de título,

datável de 1935, com uma correcção do punho do autor.

Num projecto editorial de 1935 (48B”90r), Fernando Pessoa incluiu um artigo intitulado

“O caso é muito simples”, destinado ao R[epública] ou ao D[iário] de L[isboa]. Deve tratar-

se do presente artigo, em virtude da frase usada aqui. O projecto editorial em causa é citado

por Luís Prista em Pessoa (2000, p. 456).

terça-feira, 22 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (1)



PROFECIA ITALIANA

A existência do dom da profecia é afirmada por muitos e negada por muitos. Na maioria dos casos, ou a linguagem profética é tam obscura que dela se póde fazer aplicação a qualquer facto, ou a abundância é tam grande que dificilmente se encontrará um facto a que um ou outro dos pormenores se não possa ajustar. De sorte que o problema fundamental fica na mesma. Os que afirmam a existência do dom profético apontam o facto justificativo; os que lhe negam a existência apontam que qualquer facto, ainda que fôsse o contrário do que se deu, serviria igualmente, e portanto com igual inutilidade, de justificação.
Ha contudo profecias que são simples e claras, como a da célebre quadra das Centúrias de Nostradamo, em que, com mais de dois séculos de antecedência, o advento de Napoleão se indica e o seu carácter se define. É a quadra que começa: “Um Imperador nascerá ao pé de Italia” — Un Empereur naistra près d’Italie...
Estas poucas profecias que são claras versam em geral factos: são como pequenos artigos de pequena enciclopédia, resumindo a história às avessas, isto é, antes de ela existir.
Há, porém, um caso curioso de profecia clara, que contém, com vinte e dois anos de anticipação, não a indicação de factos futuros, mas o comentário justo e preciso dêles, como se os supuzesse conhecidos. E esse vaticinio tem ainda de mais curioso o não ser, suponho, de um profissional da profecia.
No jornal italiano Avanti, de 21 de Janeiro de 1913, vem inserto um artigo em que se lê o seguinte, que peço ao leitor que, palavra a palavra, acompanhe e medite:

“Estamos na presença de uma Italia nacionalista, conservadora, clerical, que se propõe fazer da espada a sua lei, e do exercito a escola da nação.
“Previmos esta perversão moral: não nos surpreende.
“Erram porém os que pensam que esta preponderância do militarismo é sinal de fôrça. As nações fortes não têm que descer à espécie de carnaval estúpido a que os italianos hoje estão entregues: as nações fortes têm o sentido das proporções. A Italia nacionalista e militarista mostra que não tem êsse sentido.
“E assim sucede que uma réles guerra de conquista é celebrada como se fôsse um triunfo romano.”

Ignoro a que propósito imediato se escreveram essas linhas. Ignoro e não importa. São elas o mais justo, o mais claro e o mais cruel comentario de quanto hoje, vinte e dois anos depois, se está passando na Italia, ou, melhor, com a Italia. Ao jornalista casual coube um lampejo de verdadeiro espírito profético.
Felizmente o artigo é assinado, de sorte que não falta o nome, nem portanto a honra, ao iluminado dessa súbita inspiração.
O autor do artigo do Avanti é o sr. Benito Mussolini. Não ter êle fixado residência em profeta!...

FERNANDO PESSOA
BNP/E3, 92X-78 a 79. Transcrição fiel do original dactilografado, mantendo a respectiva ortografia. Publicado pela primeira vez, com ligeiras diferenças, em Cunha e Sousa (1985, pp. 121-122).

sábado, 19 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (introdução)



Novamente por sugestão do leitor Paulo Ferreira, publicamos três textos de Fernando Pessoa, sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália, ocorrida em 1935, antecedidos por esta introdução contextualizadora, da autoria de José Barreto, professor do ICS. Estes textos são muito interessantes, em especial por desmentirem um dos mitos produzidos sobre Pessoa, o do seu suposto alinhamento, ou pelo menos indiferença, para com o fascismo.

A pouco mais de um mês da sua morte, ocorrida a 30 de Novembro de 1935, Fernando Pessoa escreveu dois textos sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália fascista, destinados à imprensa lisboeta, mas que não puderam ser publicados. Pode neles constatar-se o mesmo ânimo crítico com que o escritor vinha produzindo, desde Fevereiro desse ano, uma série de escritos em prosa e em verso contra Salazar e o Estado Novo. Nessa torrente de escrita política de 1935, em que se define claramente o perfil de um opositor não só do salazarismo, como também do fascismo, incluem-se,entre outros: o artigo “Associações secretas”, em defesa da Maçonaria, a que se podem juntar numerosos fragmentos deixados inéditos pelo autor, relacionados com a polémica que o seu artigo desencadeou na imprensa; uma dúzia de poemas satíricos contra Salazar e o Estado Novo; diversos textos e poemas anticatólicos, visando a crescente influência da Igreja na política portuguesa; um longo artigo crítico sobre Salazar, em francês; uma carta ao presidente da República, Óscar Carmona, de protesto contra o governo; uma crítica contundente a um discurso de tom totalitário do ministro da Justiça Manuel Rodrigues. Estes escritos, bem como os artigos sobre a invasão da Abissínia e ainda outros textos produzidos ao longo do ano de 1935 mostram o crescente empenhamento político de Pessoa, na fase final da sua vida, em defesa da liberdade e da dignidade do homem, que ele julga então ameaçadas tanto em Portugal como no mundo.
Embora nunca tivesse consagrado ao tema do fascismo, como doutrina ou regime político, uma análise mais elaborada, Pessoa deixou entre os escritos impublicados da famosa arca numerosos fragmentos e trechos alusivos a Mussolini e ao fascismo, que olhava com desdém e sarcasmo, embora a personalidade do Duce, pelo seu carisma (ou magnetismo, como então se dizia), lhe tivesse merecido uma referência vaga e indirectamente elogiosa, ainda que num contexto de rejeição das ideologias fascistas e nazis. O nacionalismo liberal do “conservador de estilo inglês” Fernando Pessoa não se confundia com o “nacionalismo animal” ou “nacionalismo mórbido” do fascismo italiano — assim o definiu em duas notas que deixou inéditas. Desde logo, o desprezo do fascismo pelas liberdades individuais e a condição de submissão do indivíduo ao Estado totalitário nunca permitiriam a identificação de Pessoa com o regime de Mussolini, tal como não permitiriam a sua identificação com o comunismo. O escritor sustentava, aliás,que havia uma “identidade fundamental” entre os regimes fascista e comunista, em virtude do “anti-liberalismo comum”. Num texto dos anos 20, Pessoa considera o fascismo e o comunismo como forças dissolventes da civilização europeia. Num texto inédito de 1933-1935, Pessoa acrescenta aos dois o nazismo: “Sovietes, comunismo, fascismo, nacional-socialismo — tudo isso é o mesmo facto, o predomínio da espécie, isto é, dos baixos instintos, que são de todos, contra a inteligência, que é do indivíduo só”. Os textos que em 1935 escreveu sobre a guerra ítalo-abissínia, de que adiante se tratará, exprimem a oposição do escritor não só à agressão imperialista da Itália contra a Etiópia, como também ao próprio regime fascista, em que Pessoa via a origem da política agressiva italiana. Não se pretende aqui decidir se estas inequívocas posições do escritor permitem ou não rotular Fernando Pessoa de “antifascista”, questão que já ocupou vários autores, mas viciada à partida por uma definição peculiar de “antifascismo”. As conotações específicas que essa expressão possa ter não invalidam o facto da oposição essencial de Pessoa ao fascismo, ainda que de um ponto de vista conservador liberal. O antifascismo, nacional e internacionalmente, nunca foi propriedade de nenhuma corrente política.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Das "polémicas", reais ou inventadas

Não me parece que haja nenhuma polémica em especial neste blogue, de momento. No entanto, impõe-se um esclarecimento quanto ao tal de Agostinho Lopes e outros assuntos: primeiro, acho estranho que se identifique a "canalha totalitária", que a há, e foi até bem nomeada pelo Armando nos comentários ao post, com a prática política de um partido tão inócuo, parlamentar, e dentro do sistema como é hoje o PCP. Segundo, no meu caso pessoal faço questão de não ter vacas sagradas, detesto rebanhos e ainda mais pastores. O exercício de memória do Agostinho Lopes quanto à história das privatizações em Portugal é fundamental, por muito que isso doa a quem insiste em acreditar (esses sim) em cantigas de embalar sopradas com a palavra mágica, "esquerda", e assim dormem um sono sossegado enquanto se vai dando cabo daquilo que significa isso mesmo, a esquerda. Terceiro, que quem me conhece, ou quem lê este blogue, sabe muito bem onde me situo perante os valores democráticos, e a exigência, tanto na prática política como intelectual, como ainda (e isso é o mais importante) na forma como se vivem os valores que se apregoam, da democracia, da liberdade e da solidariedade; por isso mesmo me espanto, oh se me espanto, que perante os maiores ataques à democracia alguns fiquem calados, preferindo continuar a confundir a forma com o conteúdo, satisfazendo-se com o mínimo denominador comum, recusando a exigência em troca, lá está, de um bom travesseiro onde deitar a sua cabeça. Quarto, dizer que é pena que alguns anónimos-não-tão anónimos, que demonstram à exaustão desconhecer o que é a democracia e a liberdade, na prática da sua vida de todos os dias, aí onde é decisivo, pretendam lançar veneno, acusando à boa maneira do novo estalinismo pessoas que estão muito acima delas, que vivem de cabeça erguida recusando o anonimato, que assumem as suas opiniões, debatem ideias e não lançam lama para cima de outros, que parece ser a única maneira como esta gente opera no mundo, eles lá saberão porquê. Quinto, e por último, tenho a certeza absoluta que a amizade e o respeito intelectual que me unem a quase, quase todos os actuais e antigos colaboradores deste blogue se mantém intactos, e que, à nossa maneira e escala, o 2+2=5 continuará a ser um blogue à esquerda e um espaço de liberdade.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

sexta-feira, 12 de março de 2010

anaCrónicas 7

Um conhecido meu, dirigente do PS – conheci-o, boémio e marxista, nas tascas de Roma – contava-me aqui há uns anos que, no seu partido, os votos se compravam. E de duas maneiras: uma, era essa forma conhecida de pagar as quotas de militantes passivos, verdadeiramente não praticantes, ressuscitados para efeito votante em cada acto a preço de saldo votando no que fosse sinalizado pelos mandantes, a outra, complementar, era a de vender o próprio lugar na lista – ou melhor, comprar – dando-me como exemplo, se bem me lembro, os oito mil contos (na moeda antiga é mais nítido) que teria custado um lugar europeu. Não sei se era ficção, se era luta interna, se era um golpe baixo – creio que no interior dos partidos a Técnica política dos golpes baixos é mesmo única – ou se era mesmo verdade. O que é facto é que me disse isto e que me referiu que a coisa se passava lá numa terrinha longínqua, na serra. O que é facto é que os partidos, esse primeiro alicerce das democracias, são realidades opacas, escondidas, não escrutináveis e que dentro deles se passam coisas inomináveis e permanentemente escondidas, financeira e humanamente inadmissíveis – aliás os partidos são definidos por Umberto Cerroni, no seu magnífico livro, Teoria do partido Político, como partidos de interesses, partidos empresa, tendo desaparecido, corpo em agonia lenta, o partido de ideais.
Aquilo que deveria ser objectiva e publicamente observável como uma prática da transparência, por exemplo os processos eleitorais internos (já que são candidatos ao poder governativo, geral e são subvencionados por dinheiros públicos) não é senão um jogo escondido entre grupos de poder à procura da conquista desse primeiro poder, a caminho da conquista do poder político governativo e na sua sequência, do conjunto dos poderes. Ninguém duvida que é nos grupos partidários, muitos deles bem colocados nas grandes empresas e no sistema bancário, numa sequência organizativa transversal, que todas as trocas e baldrocas se combinam e conspiram, como ninguém duvida que são grupos, partidários e interpartidários, que dispõem do stock público de cargos apetecíveis como moeda de troca para todo o tipo de jogos de poder e benesses.
Nunca isso foi tão claro, como nunca foi tão clara a impotência das diversas justiças, dos tribunais às polícias de investigação, para repor a democracia nas suas verdadeiras regras de verdade e equilíbrio, que, mesmo nunca sendo uma realidade finalizada – a utopia democrática como perfeição igualitária e pureza transparente -, será tendencialmente uma realidade mais democrática numas conjunturas do que noutras – temos hoje saudades das chamadas social-democracias, reais certamente, por estranho que pareça. O que tem que se sentir é que prevalece a democracia no sistema e não o contrário, a corrupção e o abuso de poder como regra.
A chegada de Hitler ao poder relativizou, para sempre, o sistema do voto em democracia. Também – também, reparem - pelo voto, foi o caso, se caminhou para o campo de concentração e de extermínio. A questão do voto não está só em quem se vota, como sabemos hábil na arte do disfarce (Mussolini foi socialista), mas também no condicionamento ideológico do votante, e as ideologias são amálgamas incontroláveis, preconceito arreigado e estruturado sob a forma de potencial violência sectária e burocrática, de uniformidade de olhares, de prática social monstruosa tida como normal.
Se a justiça funcionasse a classe política seria outra, a virtude premiada e o mérito um bem reconhecido. Em Itália temos o exemplo caricatural, brutal no traço grosso, do que cá sucede. É falso que vivamos em democracia, vivemos num simulacro de democracia, numa amputação particularmente grave nesta conjuntura, porque na realidade as liberdades, culturalmente expressas numa espiritualidade difusa e laica, reguladora e vigilante qualificadamente como pressão de uma maioria esclarecida, não são poderes inscritos numa sociedade cada vez mais fechada a transformações que não conduzam ao mesmo e que, sob o paleio da igualdade de oportunidades, vem construindo o fosso, a discrepância, uma nova sociedade: a dos condomínios versus favelas, a das massas fast-fúdicas e absolutamente expostas na sua vida nua versus elites intocáveis e sempre protegidas pelos seguranças privados.
Na Índia chamam intocáveis aqueles que no fundo da escala não têm sequer direito a estar num mesmo espaço com outros, nem sequer a olhá-los e qualquer um que não seja intocável pode agredir um intocável. Por cá os Intocáveis vivem nas quintas das Marinhas, frequentam colégios privados de renda impossível para os demais e na altura devida são empregados nos grandes bancos em que os papás são grandes accionistas e administradores. E não importa que tenham subido a pulso ou que já lá estivessem – o mérito, nem a ética, são qualidades intrínsecas do chamado sucesso -, importa que servem, num caso e noutro, a regra da perpetuação do abismo fracturante.

Fernando Mora Ramos

quarta-feira, 3 de março de 2010

Homenagem


Porque não dei pela asfixia democrática no continente, mas acredito no peso da inquisição e do salazarismo, aqui deixo um abraço a O Jumento.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

sábado, 26 de abril de 2008

Toni Negri: A Democracia e a Guerra (1)

“As novas possibilidades da Democracia defrontam-se com o obstáculo que a Guerra constituiu. O mundo contemporâneo está mergulhado numa guerra civil global, generalizada, permanente; e, por outro lado, está constantemente ameaçado por uma violência que, de facto, suspende a democracia. Mas o estado de guerra permanente não acarreta tão-só a suspensão indefinida da democracia: os poderes soberanos respondem pela guerra às novas pressões em favor da democracia. A guerra funciona sob a forma de um mecanismo de contenção. No momento em que o povo (governados) recuperam os seus direitos face à soberania( Super-Imperialismo), a guerra e a violência tornam-se na fundamentação de todo o poder não-democrático.”

“A relação que a modernidade tinha estabelecido entre guerra e política inverteu-se. A guerra deixou de ser um instrumento à disposição, ao qual podia recorrer num número de casos limitados: passou pelo contrário a definir os fundamentos do sistema politico. A guerra tornou-se numa forma de governo.”

“A violência deixou de ser legitimada na base de estruturas jurídicas ou mesmo de princípios morais. Tornou-se legítima post factum, e essa legitimação é fundada pelos efeitos da violência, e pela capacidade de criar e manter uma ordem. Constata-se também que a ordem das prioridades que prevalecia no corrente da época moderna também se alterou totalmente: a violência é prioritária e serve de fundamento à negociação política e moral que se desenvolve a partir dos seus efeitos. As novas possibilidades da democracia forçaram a soberania(S-Imperialismo) a recorrer a formas puras de dominação e de violência.”

“As forças da democracia devem opor-se contra este tipo de violência, mas evitando ser o seu pólo oposto e simétrico. Há a tentação, logicamente, de fazer da democracia uma força absolutamente pacífica em oposição à guerra permanente que é realizada pela soberania(S-Imperialismo). As forças emergentes da democracia- como no êxodo dos Judeus- não devem opor à violência repressiva do poder soberano uma ausência absoluta de violência que seria como que o seu oposto lógico.”

In Antonio Negri e Michael Hardt, "Multitude", editions poche 10/18. Paris

FAR