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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Carta ao Primeiro-Ministro da Cultura, de Fernando Mora Ramos


Dirijo-me a Vossa Excelência pois tutela a cultura e dedica-lhe, segundo o Senhor Secretário de Estado, duas horas semanais. O corte de 38% aplicado às estruturas de criação do teatro e da dança não é só uma diminuição da escala de apoio, como seriam 10% ou 15%. É uma liquidação, um acto de terror. 38% é uma amputação, o que, num corpo já frágil, gerará paralisia e por certo, pois muitos continuarão a teimar viver, condições desqualificadas de agir pelo acrescento de precariedade estrutural, técnica e artística, ao exercício pluridisciplinar. O que alterará radicalmente a eficácia da sua função social, remetendo as artes para a trincheira e a pura resistência – não há muito, o I.N.E referia a existência, num ano saudável de crescimento, de um milhão de espectadores de teatro.
Experimente Vossa Excelência cortar 38% ao orçamento doméstico, à gasolina, ao seu gabinete, ao serviço da sua segurança, à verba que tem para as despesas de representação, à limpeza do palácio, ao que quiser e logo verá que instaurará a entropia. O resultado deste corte será, a prazo, o regresso ao folclore servil de antes de Abril, aos viras e torna a virar de antigamente desaparecendo o que a dinâmica democrática consolidou e que, por consagração de facto no real português – o teatro e a dança existem no todo nacional, mesmo não sendo fruto de uma política - também a fundou, qualificou e expressou, à democracia.
O projecto de manter apenas os Teatros Nacionais para a Senhora Merkel ver é pequena política, forma de fingir um cosmopolitismo e um avanço civilizacional que se ignora como desígnio  – que país será europeu sem um sector de iniciativa estatal, teatros públicos, uma visão nacional da sua estruturação? Para nós trata-se só, daqui em diante, de simular pela parte a existência do todo, os nacionais como o próprio teatro, álibi de esperteza a fazer de conta que se respeitam os imperativos constitucionais do acesso à criação e fruição artísticos.
O país não é Lisboa e Porto e Lisboa e Porto não são o seu centro. As companhias de teatro, aos quase 38 anos de democracia – o número do corte -, já deveriam ter-se convertido num sector público ágil em consonância articulada – isso seria uma política realizável com os meios havidos - com as autarquias, as regiões plano e as estruturas de criação. É assim na Europa. Se falamos de integração não pratiquemos a periferia, a marginalização do que é europeu. E europeu não é cortar cegamente, isso é, ao invés, uma forma de resolver irracional e desarticuladora de um devir europeu que o teatro e a dança são. Não acredito que Vossa Excelência quando a frequenta, a Europa europeia, não a identifique justamente com os seus espaços culturais, em qualquer ponto da sua própria geografia, de Bilbao a Edimburgo. Nessa Europa europeia os Estados desenvolveram políticas artísticas nacionais, no território e respondendo aos desequilíbrios demográficos. Ninguém é excluído do acesso às criações artísticas que quotidianamente praticam tradição e modernidade, Shakespeare e Beckett, Strindberg, Ibsen, ou Ésquilo, Sófocles, um Rei Édipo ou a Flauta Mágica. Por cá, o desprezo por Camões, dramaturgo, Gil Vicente, o nosso Shakespeare e génio europeu, fazem com que o português tenha entrado numa espiral de desqualificação e expressão de pensamento trágicas. Mas o idêntico desprezo por Fernando Pessoa, Jorge de Sena ou Natália Correia, pela encenação de textos narrativos, de Carlos Oliveira a Lobo Antunes, por Luís Miguel Cintra - prémio Camões - entre outros criadores teatrais de valor reconhecido, impede-nos de aceder à modernidade tão propalada pelos decisores, assim como nos afasta de novo do convívio com a dramaturgia europeia actual, de Brecht a Barker ou Martin Crimp. O teatro e a dança são, com a investigação científica e sectores de produção de ponta, o que nos aproxima dessa Europa europeia.
São artes com um potencial educativo profundo, de dimensão cognitiva iniludível e de um fazer que pensa, em que emergem na representação formas de pensar – “teatro de ideias” chamou Antoine Vitez (Dir. da Comédie) a Electra. Mas a arte não é pedagógica por ser pedagogia mas por ser arte e isso respeita-se, nos lugares em que Europa e civilização avançada se casam. Um país que destrói o teatro e a dança faz o que os talibãs fizeram com os budas, uma barbaridade e coloca-se do lado do que as ditaduras fazem, destrói a possibilidade da prática da vivificação da memória, esse “perigo” que mostra que tudo muda e permite, no presente, convocar a tragédia reconhecida para que se evite. Censurar, por via financeira, o debate democrático que as artes possibilitam e estimulam, atacando assim o teatro, veículo essencial de prática da língua é um crime de lesa pátria.
Vossa Excelência sabe que os cortes ao teatro e à dança não têm expressão na dívida. Se o engano de trezentos milhões nas contas do orçamento nada significa, como afirmaram as Finanças, o que significará o pouco que se investe nestas artes? Sei que os demagogos e populistas dirão, “lá estão estes”,“querem privilégios” e outro tipo de ordinarice mental e verbal – ninguém enriqueceu com o teatro ou a dança e nenhum dos seus praticantes dedicados investe na bolsa ou pratica deslocalizações e fugas de capitais. A voz do vulgo não é a da razão e um país inculto não terá futuro e a cultura artística elaborada só pode fazê-la quem fizer dela profissão, o mesmo que para qualquer sector. Falo-lhe do que gerações de políticos não fizeram de criação de um dispositivo cultural, não apenas dos que praticam as artes e também da existência de mais de vinte escolas de formação teatral, nos ensinos secundário, politécnico e universitário, frequentadas por milhares de jovens que, deste modo, também não terão organizações que os acolham, pois as que existem já não respondem ao crescendo imparável das suas “clientelas”– é a dita procura. 
A Senhora Merkel, em Berlim, reforçou o orçamento da cultura em 5%, 50 milhões de euros agora anunciados, um vigésimo do bolo de um território específico, já que os orçamentos das regiões são outros dinheiros, cada região com os seus teatros públicos, como era o caso e é da companhia criada por Pina Bausch em Wuppertal.
Admitamos que, por imperativo de solidariedade nacional, o teatro e a dança sofressem cortes. Seriam certamente simbólicos pois o que fazem, com o pouco que têm, tem ocupado o espaço de um serviço público que o Estado não estruturou. As estruturas de criação substituem-se na realidade à inexistência de uma política cultural.
Sugiro que Vossa Excelência repense no que está a permitir e porventura implementar. Trata-se de um voltar para trás sem regresso a meio de uma viagem a um futuro melhor que tarda em chegar. O país da austeridade não é projecto, este só pode ser o da qualificação dos portugueses, do seu crescimento cultural, condição do económico. As artes são uma das vias da qualificação, na liberdade dos seus exercícios. E esta liberdade não se faz, em nenhum país europeu, fora de um quadro de estruturação pública.
Como Vossa Excelência sabe o discurso da subsidiodependência usado por gente que vive a expensas do orçamento, de modos duplos e triplos, não resolve um problema maior e que é o da estruturação democrática constitucionalizada das artes e da cultura no todo nacional, expressão da nossa identidade plural, tradição, inovação e suas práticas contemporâneas. Daqui lanço portanto o repto a Vossa Excelência que reflicta bem no que se está a fazer e evite o pior.       
Fernando Mora Ramos – Encenador na província

(Publicado hoje, 12 de Dezembro, no Jornal Público)

segunda-feira, 29 de março de 2010

O fóssil falante

Que a pedra fala ninguém duvide. É património, memória, estatuto museológico, coisa portanto digna. Na pedra: o ser colectivo, a gesta da pátria, mais ou menos ferrugem e actividade hortícola espontânea. Por onde andará o montante de D. Afonso? Que bateu na mãe não interessa nem vem ao perfil do fundador, o que interessa saber é que cortou a cabeça a uma chusma de mouros de uma só espadeirada e mesmo a uns reles cristãos que traçavam mal o sinal da cruz, metendo primeiro o dedo rabelaisiano na barriga e não na testa – não frequentaram uma boa escola, colégio com matinas e vésperas de boa prática, ralé pendurada na preguiça, na boa vida, tasca e petisco mais perdições do corpo, diabos comunitários.
Agora que novos cristãos e novos mouros traçaram uma “nova” linha divisória fictícia, fronteira cavada em ideologia de morticínios militantes, a recuperação da imagem do primeiro Rei de Portugal, o fundador, como matriz inspiradora da “nova” linha de um antagonismo sem trégua a eternizar em estratégias sucessivas de forças no terreno e contra-informação criativa, é uma necessidade instante. Levantemos o montante contra os suicidas disfarçados de pessoas e antes que expludam zás, montantes ao alto, cabeças a rolar. Teremos de o fazer obviamente on-line e através de uma profusão de software lúdico suficientemente violento para estimular nas criancinhas o ódio antagonista no meio do “todos iguais, todos diferentes” do politicamente correcto.
Mas estes são assuntos de política internacional e próprios desse filme pobre chamado incessantemente aos palcos globais que não interessam ao cantinho, de novo cantinho à beira-mar plantado e de novo perdido na dívida e seu tratamento – aqui os danos colaterais caminham para que a criança vá com a água do banho e que a banheira passe a pagar renda ao patrão de fora, ficando-nos a depressão e as mãos vazias.
O salazarismo voltou, se isso significa um fechamento do verdadeiro desígnio europeu e uma conformação da vida dos portugueses, seu imaginário e práticas diárias, ao valor da dívida, isto é, ao tamanho pequeno não propriamente do mercado, esse pode encontrar tamanhos de elasticidade vária, mas à negação de um desígnio nacional como verdadeira nova internacionalização (a da geografia da língua e a da economia real levadas a sério) que nos levasse desta tragédia de sermos vítimas eternas de uma deriva constante da unilateralidade financeira – o outro começou Ministro das Finanças e deu rapidamente em torcionário complacente antes de cair da cadeira. Não faltou a isso uma tacanhez provinciana – aliás esta coisa de “os portugueses são capazes”, esse tipo de paternalismo que andam para ai a vomitar enoja e revolta – que agora regressa em força no discurso dos governantes e dos opositores, todos de facto muito analfabetos, iletrados e incultos, ao contrário da tradição de uma certa política republicana e letrada.
Se pensarmos que nos andaram a vida toda a meter na cabeça o respeito por alguns símbolos arquitectónicos, cultivado em momentos de transfiguração exaltada de vida no meio dos dias de andar a dias - rituais leia-se -, logo percebemos que a pedra é mais que pedra e que a sua química degenerescência acrescenta patine à simbólica dando-lhe profundidade (agora diz-se densificar, talvez). Essa patine, justifica aliás, que muitas vezes o património seja mais pátria e pedra degradada que pedra refeita e futuro ali, na pedra pois, esclarecido como forma do porvir. Porque a pedra pode de facto, não sendo jangada, ajudar a viajar para um à frente que misture duas possibilidades: ser as coisas boas que outros até já foram – uma certa Europa para trás – e ser as coisas boas que nunca existiram mas que são humanamente possíveis, uma verdadeira Republica, uma comunidade. Mas nem este nível do discurso hoje passa. Nem à esquerda nem à direita, todos com o ferro no pé, escravos da dívida por fatalidade de destino e coexistência parlamentar, de joelhos perante o deus não da economia mas das finanças, o grande contabilista, o do caminho único. E não passa porque esse discurso, liberto de subalternizações à ditadura orçamental, pressupõe um plano, uma estratégia expansiva, o futuro, um futuro e ideias de futuro, pensamento emergente que organize os caminhos possíveis por dentro das inamovíveis decisões da inevitabilidade das medidas para combater a dívida, mas principalmente pela capacidade de gerar alternativas globais, socialmente globais.
Mas este assunto pátrio da pedra refinou: neste afã de patrimonialização generalizada para turista ver, somos metidos a papalvos no espectáculo possível de um simulacro de singularidade identitária, vendável a olhos estranhos – se para tal for necessário que façamos de atrasados simpáticos e que tudo o que façamos seja de uma espécie de incompetência ingénua e autêntica, então seremos papalvos, papalvos batendo continência interior nos sorrisos ao passante com pilim a falar inglês - talvez isso seja um emprego, e qualificado, para o perfil do português tipo, se existe. O procedimento é simples: tudo pode tornar-se espectáculo do que foi, a pesca, o moinho de mó, as rendas de bilros, as próprias criaturas de uma aldeia “típica” podem tornar-se as personagens de si-mesmas e encontrar nisso, na sua própria conversão a bonifrate em auto-retracto, um emprego.
Já há muito que Debord caracterizou a Sociedade actual como a Sociedade do Espectáculo, a sociedade em que todos se tornam figurantes do sistema sob a forma de consumidores passivos de mais-valias simbólicas erigidas em consciência possível, ou melhor, criaturas impossibilitadas de um olhar exterior, de um olhar que descontaminado daquilo para o que se dirige, possa de facto fixar-se nisso de um modo racional e crítico, lógico, liberto. Esse é aliás o único modo de ajuizar sem o pecado mortal do preconceito na vez da tentativa do conceito. Se há uma coisa que Estado Espectacular Integrado tenta forçar é que estejamos sempre dentro do espectáculo e que o exterior do espectáculo seja, para quem o tente, uma asfixia, resistência 24 sobre 24 horas. Na realidade o melhor do estalinismo soma-se ao melhor do capitalismo, o tal capitalismo cultural.
Mas para além da pedra há a pedra que de facto fala, que perora. São os fósseis falantes. São criaturas que servem o sistema justificando sempre de modo eficaz, nos seus palanques de poder constante, porque é que o mais interessante é ficar tudo na mesma para que tudo mude. São pessoas como o Marcelo Rebelo de Sousa e como o Pacheco Pereira. Nunca levam nada até à necessidade da fractura e mesmo perante o corpo fracturado do país propõem as mesmas receitas do poder instalado, resumindo tudo a estratégias de fulanização e grupo. São estes, com outros inimigos irmãos, os pais deste sistema partidário medíocre que prospera.
São doutores como o bolonhês – figura da Commedia Dell’arte que fala um latim incomestível de um modo parecido com o falar de uma turbina – e como o Dr. de Coimbra, que se poderiam classificar entre os antepassados dos activíssimos fósseis falantes da contemporaneidade pós moderna. Falam e não mudam. Falam e dizem sempre o mesmo. Falam e não abrem nenhum horizonte, nenhuma luz, nenhuma fenda no bloco cego dos dias, nenhum caminho que se possa iniciar. São maquilhadores da realidade pobre que temos, mesmo quando fazem avisos á navegação, aquela coisa de ter sempre razão antes dos males acontecerem, vaticinadores de dramas constantes. Também conhecidos por cadáveres adiados, são donos honoríficos de diversos cemitérios em actividade mesmo sem possuírem as chaves das lojas, partidos, instituições e aparelhos ideológicos de um modo geral. Para eles as portas estão sempre abertas. Têm negócio montado constante e não são apanhados em escutas.
A argumentação não é uma forma de pensar que descubra no real, que está podre, por onde parti-lo. O vício silogístico e o charme falante do fóssil fazem dele de facto uma criatura que também se dedica com muita fé e carinho a explicar-nos que teremos de ser mais pequeninos perante o tamanho da dívida, mas que antes portugueses do que apenas pedintes. Mas que seremos nós senão pedintes, a necessitar de ser mais que portugueses europeus e criaturas do mundo? Do que necessitamos é de uma grande fractura e não de ajustes, ou de pequenas melhoras. E essa fractura, não a pregam, os fósseis falantes, porque estão em posição de renda desde há muito. Os seus feudos mantêm-se intocados há décadas e obviamente para eles tudo está certo menos o Sócrates. A única coisa em que acertam é na falta de qualidade do Sócrates, se pensarmos nas casotas em que colaborou para desfear a serra, lá para a Covilhã e se pensarmos que quando fala não diz nada que não seja óbvio e da ordem da tautologia. Mas o argumentativismo de uns e as tautologias de outros, o que ajudam a formar é um colosso inamovível, uma ficção de país cimentada em atavismo e arcaísmo que alimentam de modo moderníssimo. São obviamente menos capazes de fazer mudar que o peixe de prata ou o bicho da madeira. Esses são lentos mas destroem por dentro o que é mofo e estrutura do mofo.
Ora os nossos fósseis falantes são como a pedra famosa. Falam do alto dos seus feitos e por certamente terem estado em espírito com o Gama quando por lá andou, pelos tais mundo que demos ao mundo, a globalizar. Estes não ajudam a uma nova matriz, rende-lhes a de sempre. São na realidade criaturas do antigo regime.
Encantam entretendo entretanto e para tantos. Entre eles e a pedra pátria há um pacto profundo. A pedra anda de história às costas somando reabilitações paredes meias com as construtoras. Eles andam entretendo as gentinhas com a política de bolso – têm respostas prontas para tudo – paredes meias com as grandes empresas mediáticas, públicas e privadas, todas elas de costas viradas para o tal serviço público, apenas simulado.

Fernando Mora Ramos

sábado, 13 de março de 2010

O Soldado Vigilante


Start Time: Thursday, March 25, 2010 at 9:30pm
End Time: Friday, March 26, 2010 at 12:30am
Location: Beco do Forno
O espectáculo continua em cena no dia 26 de Março, às 21h30 e apresentar-se-á no dia 27 de Março, Dia Mundial do Teatro, às 12h00 e 21h30, e conta com a colaboração do Restaurante Pachá, que promoverá terá no dia 27 de Março às 12h00 uma prova de vinhos.

Cervantes


Uma dell’artização do entremez

Eu explico-me. A Commedia dell’arte é uma técnica teatral – foi um modo de vida e uma economia nos séculos XVI E XVII, em Itália e pela Europa fora – que deve tudo à teatralidade, o teatro sem o texto como disse Barthes, e menos portanto ao texto em cena. Teatro de imagens e da corporalidade, assenta numa trama simples – o “canovachio” – e nas capacidades gestuais, incluindo vocais, dos actores e actrizes (teatro de actores), além de ser um teatro de arquétipos e personagens em embrião, sempre fixos, Arlequim, Pantaleão, o Doutor, o Capitão, Columbina e o sempre elencado par de amorosos, sempre contrariados e sempre vencedores.
O soldado vigilante é um entremez de Cervantes e pertence àquela literatura que hoje se chama de marginal. Tal como surgiu aliás a Commedia dell’arte, teatro de ar livre, amigo de estrebarias e estalagens, ambientes onde a virtude não fazia o quatro e a noite era fértil em gozos e desatinos. São portanto da mesma família, o entremez e a dell’arte. Nada anormal em casá-los numa mesma escrita e estética. São também coetâneos como se sabe. O entremez, arremedilho, burlaria, muitos outros nomes, nasceu bastardo, fora dos territórios fechados da respeitabilidade literária e entalado entre género maior, chamado comédia, na altura tão importante que designava o teatro. Com a literatura de latrina, os versos de pé quebrado e o surrealismo primitivo, tem horror às academias e vive livre e vadio a sua aversão à domesticidade burguesa, pequena, média e grande, à reverência cultural, não se intimidando com os clássicos, frequentando-os e tendo horror ao mesmismo retórico que exorciza através da palavra doutoral farsificada.
O que mancha o entremez não fará dele literatura de salão, seja qual for o salão, aristocrata burro ou provinciano, com ou sem sanefas. Não há que ter-lhe respeito mais do que pede, há que irmanarmo-nos do espírito que respira e entremear também, que é petiscar, sabe-se. O entremez não é nunca aliás prato principal, é intervalo, e porventura poderá ser entrada ou saída. Aqui, neste Soldado, quisemo-lo prato principal, parte inteira. Coitado, promovido a peça em actos, mais desacatos.
Resolvemos então pegar no entremez pelo que diz fundo – a farsa tem um reverso. Um soldado de amores perdido dentro de si, combatendo um sacristão lúbrico, os dois atrás de uma menina que está em idade casadoira e a quem, um sapateiro calça o peito do pé com denodo oficinal e calçadeira. Com a dona da casa presente, uma estranha criatura híbrida – na moda de hoje portanto – um casório parece desenhar-se. Mas isso é no espectáculo, se quiserem. Se não quiserem tudo bem. Este, como todo o entremez, é rápido e meio amanhado, desimportante, portanto vai bem com um bom copo na mão.
E o que fizemos? Pensando que na farsa há tragédia quisemos desenvolver a teatralidade implícita no entremez, escrevendo-o através de um conjunto de referências a desgraçados teatros irmãos e ao mesmo tempo revelar o avesso do próprio soldado, a humanidade que só se adivinha na figura por imaginação contraposta do espectador, ele que é um primo remoto dos sonâmbulos bipolares com que nos cruzamos hoje.
Reteatralizámo-lo portanto com outros teatros populares entremeados, mantendo como referência assumida estruturante a Commedia dell’arte, particularmente assumida na figura do soldado protagonista e fio condutor. Nada que muitos criadores teatrais não tenham sonhado no seu tempo, Copeau e Meyerhold, por exemplo.
E que teatros? As marionetas, a “boçalidade” revisteira, a tradição declamatória, os palhaços e as suas “clowneries”, o fado – nada mais português e teatral, com toda a panóplia de convenções, poses rituais e mesmo fundo caracterial – e finalmente, esse teatro maior que é o prazer lúdico, o da imitação imediata, esse teatro espontâneo das crianças. Temos assim um objecto multicultural a que não falta sequer um “preto”. Multicultural abrangente portanto, de uma universalidade quase espontânea, pura antropologia lúdica – que obviamente já lá estava, quem mais universal que Cervantes, vida e obra, mundo e invenção?
E esta opção levou-nos a uma reconfiguração dos tipos, cirurgia cénico-dramática total, segundo uma ambiguidade muito contemporânea, aquela que nos fragmenta, multiplica e híbrida, como tipos e aparências.
Assim o soldado é poeta soldado e soldado poeta, frustrado militante e jogando a palavra como arma e a espada como extensão gestual da palavra amorosa, repisada obcecadamente a cada gesto, numa contradição insolúvel e autêntica.
E o Sacristão? Talvez lembre o frade das Caldas, mas não é de louça e é mesmo inteiro, como diz, e tem uns arranques que faz pensar nos zanis da dell’arte primitiva, espécie de diabos repentinos na gestualidade imprevista e animal.
Surge também um “preto” mascarado que não chegamos a saber de onde vem mas que vende pau de Cabinda – virá de Cabinda? -, entre rendas portuguesas, num bazar portátil inesquecível.
E aparece um sapateiro, homem de ofício como os antigos e que fala de calçar a menina de um modo que só pode levantar o moral dos espectadores. Revela-se também, além de criatura de contas certas, poeta e amoroso, o que para sapateiro dá mais nas mãos mesmo que rime com as solas. Que lhe terá sucedido?
Mas mais estranho, neste painel humano um pouco zoológico, é a Ama de Cristina, a menina casadoira, que não chegamos a perceber como convive com o seu hermafroditismo conatural. A auto-suficiência finalmente? É portanto um teatro de aberrações que vos propomos.
Mas, e digo mas, reticências, não falta ao entremez encenado a cereja no topo da torta mal parida, como desagradava aos antigos e aos fanáticos da proporção e simetrias direitas: Cristina, a menina casadoira, é a mãe de todos os quiproquós. Por ela todos se batem. Será que algum a vê? E ela, ela mesma, o que deseja mais que a liberdade de libertar o corpo?
Felizmente, para bem das nossas angústias e a favor da moral e da gente séria que ainda resta neste mundo, o final feliz repõe tudo onde deve estar. Cristina casará…

Fernando Mora Ramos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Como engordar os obesos

A obesidade financeira passa por não ser doença. Bem vistas as coisas talvez seja, porque também ela se constrói por toxicidade acumulada. Como a original, hambúrguer/ketechupe e pipocas, viabiliza uma meteórica ascensão ao porcino triunfo. Diversa, a Ob. do tipo financeiro, é completamente SPA: banho turco com esguicho escocês pela frente e nas costas altas.
Entretanto a OBFIN (léxico dos paraísos fiscais) é identicamente mórbida como a Ob. proteica. Não da morbidez da toxicidade específica do dinheiro, mas daquela da finta ao fisco e outras magias tácticas, próprias da toxicidade específica dos processos de adquiri-lo, e também daquela, mais específica ainda, que é a do dinheiro falso que, como se sabe, é de dois tipos: o contrafeito a gosto e o dos outros que é nosso, jogado no Casino global em sede de virtude própria. Quem pode dizer agora que Dona Branca não era de imaculada seriedade gestora?
A gestão – sempre se soube que a dos proventos e suor alheios faz as fortunas -, é a via mais frequente do sucesso e acontece aos falsos magros. Por exemplo, o muito a pulso Dr. Oliveira e Costa é um falso magro, de tal modo que a sua receita para a obesidade financeira atraiu muitos outros também falsos magros, como o insuspeito Dr. Loureiro que todos os santos protegem, mesmo os laicos.
É também óbvio que os falsos magros da Opus deles, banqueiros e peregrinadores a Rolls-Royce – não as do pecado para arrependimento catártico, o recurso a São Viagra remete a traição para a intangibilidade da química –, também são obesos financeiros, mas neste caso, fazem mais facilmente o papel de criaturas morais porque, vá-se lá a saber como, são eles que ditam a lei da moralidade que baseia o tal poder independente da justiça idêntico ao poder dependente da justiça. E dependente de quem? Da hidra, de rosto multiforme e sucessivo poder global com delegados locais, cabecitas anãs da serpente.
Como se sabe juiz em causa própria é hoje a regra e receita. Para tal vende-se a mentira mantida fresca na rede de frio espectacular enquanto o facto novo necessitar de se impor (reputações de seriedade, por exemplo) até à saturação – aí já ninguém lhe resiste. Os ecrãs privados públicos e públicos privados cumprem as ordens de quem, de cima, não necessita de as exibir. Não há aliás mecanismo de exposição crua da verdade que sobreviva às camadas de publicidade ideológica cuja potência de branqueamento do ilícito jogado são a regra, o que estrutura o sistema, dos bancos ao governo, das empresas ao governo, das empresas aos bancos, do publico ao privado e das polícias à própria lei e parlamentos. A rede tece as suas malhas de modo multipolar e não necessita de um centro. Os centros são plurais, plutocratas e igualmente mafio-democráticos. Todos nós conhecemos o modo como os gangs geram e gerem os seus territórios lucrativos. O ponto a que chegámos torna indistinta a fronteira entre os verdadeiros e os supostamente virtuosos. De acordo com a lei de facto, a do poder no presente e do presente, obviamente que todos os que mexem com dinheiro ungido por um qualquer baptismo legal são virtuosos, tanto os do tráfico da cocaína, como os do tráfico do dinheiro especulado. A virtude compra-se como qualquer outro produto e compra-se obviamente nas lojas do Estado – o Estado, é a especialidade dos tribunais e das polícias, vende virtude(s) a preços obviamente proibitivos para as pessoas comuns, há cauções que são quase Pibes –, nessas que ainda jogam algum poder. Alguma dúvida? De Porto Rico ao Iraque só não vê quem não tira a cabeça da areia por amor do ilógico e do breu.
Em síntese: tudo como a fruta calibrada, custa mais que a outra e é legal. Mas de facto é feita de ração para maçã e é muito mais bela do que a verdadeira. Quem não lhe corre atrás? Os obesos financeiros - falsos magros, são como estas maçãs, cheios de virtude por fora e fedem por dentro, não do bicho mas da química de casta.
A fim e ao cabo coitados, de tão obesos, aos falsos magros há que engordar. É o que faz quem manda seguindo o alto espírito laico da caridade igualitária. E secretamente, a alma do negócio, com o ruído necessário à diversão táctica em fundo, mesmo na face.


Fernando Mora Ramos

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Natal dos Hospitais

Precariedade exclusiva
Hoje usa-se muito a palavra inclusivo, escola inclusiva, arquitectura inclusiva e por simpatia antónima diz-se também muito a palavra exclusivo, em diversos contextos. Por exemplo: o Natal dos hospitais é inclusivo. Aqueles deserdados da vida que têm ali onde cair mortos, assistem àquela manifestação de beleza incomparável num palco mediatizado, ouvem aquela massa sonora inteligente e sensível de catadupas de sensibilidade generosamente derramada, mais play back, menos microfone pela goela abaixo, num êxtase que, quase religioso, se finaliza com fitas de alegria postiça envolvendo pacotes de paralelipipédica vocação, grandes para caber em exclusivo protagonismo num primeiro plano de ecrã televisivo. Extenuados de amor, no fim, agradecem, lacrimejando e somando palmas num entusiasmo unânime. Trata-se de um momento inclusivo que perdoa um ano de exclusão (um ano inteiro de inclusão numa cama hospitalar pode ser uma situação de absoluta exclusão da vida) através de uma boa acção espectacular – boa acção não é só aquela de dar a mão a velhinhas quando o semáforo está no amarelo intermitente, condição do semáforo nacional, ambíguo e hesitante, sempre ao serviço do atropelador potencial.
Exclusivo, no sentido de um dever de fidelidade a um estatuto de responsabilidade profissional exclusiva, é qualquer coisa de que nem parlamentares nem altos quadros da administração pública – com excepções honrosas – querem ouvir falar. E o rendimento familiar alargado, os quatro carros, as três sopeiras, ou quatro mesmo?
O salário mínimo nacional são 450 euros. Não se pratica sequer. Com a multiplicação das formas de regular desregulando, via contrato, os horários de trabalho, qualquer part time é hoje um horário completo e muito salário de 700 euros, em empresas multinacionais, significa horário que muitas vezes vai até à meia noite – muitos têm meio salário mínimo nacional atribuído a um suposto meio horário, cujo tempo de contagem também é altamente suspeito para não falar dos tempos envolventes, chegar ao trabalho e regressar a casa. Estes trabalhadores que têm estes horários e conheço directamente uma quantidade de casos, têm obviamente um vínculo de tempo exclusivo. O resto do tempo será sono se ele vier tranquilo. Os outros, os dos trabalhos e contratos vários, das muitas administrações de empresa, esses têm um horário exclusivo consigo mesmos atribuído por leis subjectivas e por relações de casta. A coisa tem vindo a lume na sua expressão bandida e todos os dias assistimos a novos casos de católicos muito dedicados a realizar o seu bem privado nos paraísos fiscais suas propriedades inventadas. Mas para estes, a lei e os amigos no poder, são uma garantia não só de liberdade – não vão presos – mas, mais do que isso, de imposição mediatizada de um estatuto de seriedade moral. Tudo converge num mesmo momento, instituições da república e canais televisivos, para dizer o mesmo: a criatura é impoluta eticamente. A República, assim fazendo, transforma-se em Máfia, máfia republicana, se quiserem, um contra-senso nos termos, mas uma verdade insofismável.
A mim o que me incomoda agora é a palavra Crise. Como sou patrão a recibo verde, dirijo uma micro companhia de teatro, a Crise é para mim uma velha amiga. Nunca conhecemos outra coisa e a experiência de doze salários continua uma miragem. O interesse do nosso trabalho, estabelecida a sua vocação de serviço público, está determinado em leis. Leis constitucionais e leis parlamentares e governativas. Um articulado todo europeu na retórica para humanista e absolutamente informe e mal amanhado nos aspectos de regulação, rigor contratual, acompanhamento e avaliações. Nada disto existe. Para além de mafiosa a Republica é das bananas. A Res Publica está de rastos, de facto está num coma porventura sem regresso, corpo vegetal vai realizando mínimos de cidadania vital.
O que me chateia é que agora nem a Crise é nossa. Agora foi democratizada, mesmo massificada. E nós que tínhamos aquela ilusão de ter uma relação de exclusividade com a precariedade. Como rima tão bem.

Fernando Mora Ramos
Director do Teatro da Rainha

domingo, 14 de dezembro de 2008

O cão chileno e os parlamentares britânicos

O paradoxo pode cair-nos em cima aleatoriamente, mas também pode estar inscrito na ordem do mundo. O do actor, para Diderot, teria qualquer coisa a ver com a qualidade de ser actor sem o ser ao sabor das emoções, com a fria expressão de uma emoção controlada, de um processo corporal dominado quase até à possibilidade de se propor no jogo teatral concreto/abstracto na mesma cifra, e consequentemente na relação com os destinatários, um teatro de ideias.
Não pude deixar de olhar, no Público on line, para o vídeo do cão chileno – e apetece-me atribuir-lhe uma naturalidade – salvando um irmão desvalido de ser reatropelado na auto-estrada: um pobre rafeiro (só estes andam nas auto-estradas, os outros são de colo e coleira) incapaz de mexer uma das quatro patas que fosse, numa das vias da auto-estrada, a meio de um trânsito desenfreado e cego. É um posto para suicidas, não um lugar de passeio, mas o pobre bicho atropelado certamente não tinha a quarta classe do outro. O cão salvador avança para o parente e observando o trânsito, mete duas patas no corpo do outro, em jeito de tenaz, mas suavemente, e trá-lo assim abraçado até à berma, não deixando de evitar os passantes de quatro rodas que obviamente não paravam. E consegue. Não sei se o salvou, as notícias sobre o cão pararam no fenómeno ali visível. Leio o que vi por comparação. Comparação entre comportamentos caninos e entre caninos e humanos. E, quase por certo, já que o género humano também o é animal, atribuo ao gesto deste cão “inteligência”, mas não só, também “humanidade”. E não será por acaso que no léxico dos humanos se diz “vida de cão”, tenho uma “fome canina”, mesmo “filho de um cão”, tudo expressões que colocam o fiel amigo – em concorrência com o bacalhau nesta latitudes – no fim da escala, porventura perto de muitos sem abrigo que com eles partilham o espaço público e a natureza e não querem mais que uma casota cartonada.
Se o cão fosse bombeiro seria o bombeiro do ano e talvez viesse mesmo a ter, sob o impulso dessa condição herói concelhia, no palco global, uns óscares holiwoodianos, dado o desempenho videogravado provar talento de actor. Depois de um primeiro gesto de aconchego ao cão sinistrado, o animal faz um primeiro esforço de o deslocar e desloca-o, mas reparando num carro que se aproxima, olha-o num plano perfeito para a câmara vídeo – infelizmente muito ao longe -, suspende o movimento e retoma-o mal o inimigo passa. Perfeita acção simples, dir-se-ia em linguagem de escrita de actor. Dá vontade de perguntar quem será? É um cão e peras. Já o mesmo não posso dizer dos parlamentares britânicos e da sua reacção à gaffe do Gordon Brown na Câmara dos Comuns. Será possível que uma risada sem limite, com algo de absolutamente rasteiro e profundamente cínico seja a reacção – porventura a verdadeira resposta – a um erro involuntário, mas que só lhe fica bem, referindo que as medidas para estancar o descalabro económico que tomara serviriam para “salvar o mundo”? Eu sei que os parlamentares o que queriam ouvir era “salvar a economia” porque salvar o mundo, para quê? O mundo são pessoas, povos e a economia é outra coisa, somos nós talvez. Aliás o mundo é o nosso padrão de vida – e que será isso? - e esse, na realidade. chama-se economia.
Fiquei esclarecido quanto à qualidade dos parlamentares britânicos. E estavam lá todos.

Fernando Mora Ramos

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O Dona Maria e o BPN

Em princípio como a água e o azeite, nada a ver. Numa segunda apreciação muda o ângulo de visão : faliram ambos. Diz-se nos dois casos que por má gestão, sendo que no caso do banco, ela não será má, será mesmo corrupta, isto é, aquele senhor que foi governante do Presidente roubou e fez negócios fraudulentos – o que aliás prova a relação próxima entre ser governante e ser homem de negócios, restando saber onde se aprende o quê, se no governo a gerir negócios privados, se na privada a gerir negócios públicos. Trata-se obviamente de uma proximidade explosiva, viral, que não deixa ninguém fora da área contaminada, aliás mais ou tão vasta como o mundo que as descobertas proporcionou, Madeira, Marrocos, Cabo Verde, Porto Rico, Brasil, traficantes, tudo rotas simpáticas, quentes e de turismo possível. Fica aliás claro que para se ser governo há que ter uma ligação qualquer a grupos económicos. O que for excepção só serve para encobrir a verdade desta regra e para fazer aquela parte do tipo que afiançava que o bordel era sério porque ele, ele próprio, não ficava com nenhum dinheiro de meninas e meninos, ele apenas pegava nesse dinheiro como administrador e investia-o, sendo que o seu dinheiro resultava dos lucros do investimento e não do suor do pecado, do ilícito comercial – face à religião, claro.
Mas avançando um pouco mais em relação ao cerne da coisa e pensando que a realidade são camadas de opacidade sobrepostas - como a cebola só lá se chega, ao núcleo explosivo, retirando-as sucessivamente e sabendo que pertencem a épocas diferentes, à sobreposição de tempos diversos, de clientelas diferentes, o que torna o todo mais oculto, quase indecifrável, e trabalho de arqueologia judiciária e policial – chegamos ao seguinte : são ambos assuntos de Estado e ambos assuntos de milhões e só são questão por serem milhões – mesmo o Dona Maria só se discute porque são milhões (ao longo de décadas) e não porque seja essencial à nação, aos espectadores portugueses, ao perfil da democracia, à literacia do povo e principalmente dos governantes, à arte teatral e à identidade nacional, mais multicultural, mais europeia ou mais matricial.
Isto é: um é questão por ser uma não questão, uma recorrência sistémica, um falhanço apaparicado e desejado como impossibilidade e bloqueio – outra coisa portuguesa – e o outro é uma grande questão, uma enorme questão, quase um 11 de Setembro da aldrabice ou, preferindo, um caso similar em descrédito nacional e cobardia, ao da Casa Pia.
Assustador é verificar que estamos cada vez mais metidos em sucessivas descobertas do que se passa no reino que fedem ao que de pior há : à amoralidade reles dos poderosos, aqueles que têm tudo ao dispor para poderem, sendo acusados, dizer o que quiserem ficcionar com todos os suportes de tornar a ficção verdade consumida. Não é por acaso que o Dr. Dias Loureiro passa horas na televisão pública, há décadas e recentemente com a seriíssima jornalista da TV pública, como não é por acaso que passa longo tempo na SIC – são milhões em tempo televisivo pago. Talvez, vendo bem as coisas, em ambas haja quota, acções, investimentos, relações, amigos, sabe-se lá o que mais.
O que é verdade é que se não há almoços grátis também não existem anjos em paraísos fiscais.

Fernando Mora Ramos

segunda-feira, 19 de maio de 2008

"Por que é que os índios não falam todos espanhol?"



Na Lima inventada por Mérimée segundo os traços expressionistas do romantismo, um Vice Rei colonial sofre de amor e gota. Com o reino em caos crescente sob o impacto da revolta índia lá para os confins da sua geografia, e em dia de cerimónia religiosa dirigida pelo bispo local, sua alteza está enciumada por causa da actriz Perichole, sua amante, escandalosa de comportamentos num meio dominado pelas beatas da pequena corte local. Conseguirá Perichole que o Vice-Rei lhe ceda o mais belo Coche de Lima, de fazer morrer de inveja as famílias tradicionais poderosas?
E a revolta índia, por onde andará?
Estará a resposta no índio que Tabori constrói, mais de um século depois?


Teatro da Rainha