Mostrar mensagens com a etiqueta Salazar. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Salazar. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (3 e final)



Fragmentos do "Espólio Fernando Pessoa":


Aqui ha trez pontos a considerar: a aggressão a um fraco por um forte; a tentativa de occupação de um territorio que legitimamente pertence a outro, independentemente de forças e de fraquezas; e o caso particular da aggressão da Italia à Abyssinia, nas circunstancias presentes do mundo.
*
O conflicto entre a Italia e a Abyssinia, ou seja, em linguagem mais logica, o conflicto que a Abyssinia é obrigada a ter com a Italia, apresenta para nós portuguezes, como diversamente para todos os povos que não sejam aquelles dois, cinco aspectos distinctos.
O primeiro, não na ordem politica mas na humana, que necessariamente antecede a politica, é o aspecto moral. Trata-se da aggressão de um povo presumido fraco por um povo que se presume, a si mesmo, forte, quer porque de facto o seja, quer porque artificialmente/hypnoticamente se o supponha, quer porque funde em seus recursos e productos de sciencia applicada uma superioridade que organicamente não possue. Neste ponto a Italia está condemnada por todos os systemas moraes humanamente acceitaveis: em nenhum codigo moral, escripto ou intuitivo, se considera a força como fundamento, embora se possa considerar como garantia, do direito. Em nenhum se considera a força como direito.
*
Une-nos a elles, num mais largo e mais ironico conceito[,] uma vasta e larga fraternidade humana. Nós todos, homens, que neste mundo vive- mos oppressos pelas/pelos varias violencias/desprezos do[s] felizes e pelas diversas insolencias dos poderosos — que somos todos nós neste mundo, senão abexins?
Se com isto se pretende dizer que não ha relação entre o imperialismo aggressivo dos italianos e o fascismo, a resposta é que isso é falso, e, o que é mais, que é estupidamente falso.
*
É a fatalidade de todos os povos imperialistas que, ao fazer os outros escravos, a si mesmo se fazem escravos.
*
Não nos deixemos levar por esses argumentos. O problema italo-abexim é o que está diante de nós: é esse que temos que examinar.
Não se discute para antes de hontem.
Nem o ter a Inglaterra procedido mal com a Irlanda no passado serve de justificação à Italia para que proceda mal no presente. Dois males não fazem/ formam um bem, diz o proverbio inglez.
Quando se dá uma série de crimes, torna-se, a certa altura, necessario por-lhes cobro. Não se põe cobro aos que já foram feitos,
Conservemos o juizo, leitor, como homens simples que somos.
*
O mundo está já um pouco cansado dos que, por terem/porque teem as mãos frias, as mettem nas algibeiras... dos outros.
A grande natalidade —
E assim um phenomeno puramente animal, em que as femeas/senhoras dos coelhos facilmente superam, sem nacionalidade alguma, as dos homens, serve para explicar toda especie de offensas ao direito, à justiça e à humanidade.
Estão, selvagens ou não, socegados em suas casas, e desce/cahe/ desaba sobre elles civilização de crear bicho.
Ha horas para tudo, e a hora da oppressão, moralmente, passou.

FERNANDO PESSOA

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (2)



O CASO É MUITO SIMPLES


Quando foi posto em vigor, no xadrez das ruas de Lisboa, a presente regulamentação do transito de peões, as regras de marcha e contramarcha pareceram a principio, a muitos, de uma complicação extrema. O caso, porém, é muito simples: andar sempre pelo passeio a atravessar as ruas em linha recta. Nisto, que não é complicado, se resume toda a complicação.
A Sociedade das Nações, fundada louvavelmente para evitar quanto possivel as guerras e as desintelligencias entre povos, que possam levar à guerra, adoptou desde o inicio o mesmo criterio para os paizes que o Municipio lisbonense adoptou para os peões: devem os paizes andar sempre pelo passeio e atravessar as suas difficuldades em linha recta.
Vêm estas considerações a proposito do conflicto entre a Italia e a Abyssinia, ou seja, em linguagem mais justa, o conflicto que a Abyssinia é obrigada a ter com a Italia. Ora o problema suscitado por esse conflicto divide-se em trez problemas: a attitude da Italia, e se essa attitude é justificavel; a attitude da Sociedade das Nações, e, particularmente, da Inglaterra ante essa attitude da Italia; a attitude que cada nação deve tomar perante o conflicto e a situação em que está posto. Para nós, portuguezes, este terceiro problema vem a ser: qual a attitude que Portugal deve tomar.
Consideremos, pela ordem exposta, estes trez modos do problema. Mas, antes de mais nada, vejamos a que luz os temos de considerar. Tudo quanto involve a politica das nações entre si cahe necessariamente sob trez criterios distinctos. O primeiro é o internacional, isto é, o da entre-relação das nações e do resultado, em qualquer lance, d’essa entre-relação. Esse problema escapa às previsões e aos projectos: a sua solução não póde ser dada senão pelos factos, e não ha homem, a não ser que pretenda ser propheta ou deus, que possa contar o numero de forças que entram ou poderão entrar em jogo, calcular as maneiras como agirão essas forças, deduzir o que resultará d’esse entrechoque de coisas que não sabe quantas são nem o que são.
O segundo criterio é o criterio nacional, isto é, o de que cada nação tem de considerar os seus interesses e agir de accordo com elles. Como, porém, os interesses de uma nação são sempre, por um lado, obscuros a ella mesma, podendo ser prejudicados, involuntariamente, pelos seus proprios governantes, e como são frequentemente, por outro lado, oppostos aos interesses de outras nações, quando não ao conjuncto das outras nações todas, o criterio nacional resulta inutil e fóra de caso na consideração de um problema que, por sua natureza, tem de ser considerado extra-nacionalmente, pois que affecta outras nações além da de que se trate.
O terceiro criterio é o criterio moral, que necessariamente antecede, na ordem humana, todo criterio politico, seja nacional, seja internacional. Os progressos da nossa civilização, por estorvados que tenham sido e constantemente o estejam sendo, levaram-nos todavia a não acceitar por bons, na ordem nacional ou na internacional, criterios que antigamente seriam, quando não acceitaveis, pelo menos admissiveis. Se na ordem practica muitas vezes se faz o que se não admittiria em theoria, continúa a estar de pé a theoria, ainda que violada ou postergada. É na vida nacional como na individual: podemos achar comprehensivel, e por comprehensivel desculpavel, que um homem mate outro em certas circumstancias; não erigimos todavia em doutrina acceitavel o homicidio voluntario.
Somos forçados, pois, em ultimo mas natural recurso, a examinar estes problemas nacionaes e internacionaes à luz do criterio moral. A essa luz os vê instinctivamente qualquer homem que o interesse não cegue ou a paixão não turve; a esse criterio os vê, ou procura ver, a Sociedade das Nações.
Fixemos bem o resultado de tudo isto. Resulta que não temos que considerar os interesses de Italia, ou de qualquer outra nação, senão à luz de saber se elles estão ou não de accordo com a moral e com o direito, e isso vem a dar em se estão de accordo com os superiores interesses da humanidade.
Posto isto, podemos entrar na consideração dos trez problemas particulares em que o problema geral se divide. Começaremos, segundo a ordem exposta, que é a natural, pela attitude da Italia.
Trata-se de um conflicto armado entre um povo presumido fraco, e com certeza materialmente quasi desapetrechado, e um povo que se presume forte, quer porque de facto o seja, quer porque hypnoticamente se o supponha, quer porque funde em seus recursos e productos de sciencia applicada uma superioridade que talvez organicamente não possua.
Tal conflicto viola desde logo o mais rudimentar instincto moral humano — o que impelle cada homem, independentemente de saber de causas ou razões, [a] estar pelo fraco contra o forte num conflicto que entre os dois se dê.
Passado, porém, este movimento primitivo do coração, ha que examinar as causas que motivaram o conflicto; pois, se o forte não tem direito de abusar da sua força, tampouco tem o fraco o direito de abusar da sua fraqueza — isto é, das sympathias que como tal cria, e os appoios practicos que d’ella se derivem — para vexar ou provocar o forte. Temos pois de saber se neste caso italo-abexim, se deu tal vexame ou tal provocação; e a resposta, como todos sabemos, é negativa. Todos vimos, desde o principio, que a Italia era a aggressora; e a investigação da Sociedade das Nações confirmou o que desde o principio todos vimos.
Condemnada assim a Italia, desde o principio e a essencia do problema, por todos os systemas moraes humanamente acceitaveis, resta saber se essa nação apresenta qualquer argumento, moralmente acceitavel, para justificar a innegavel aggressão que a privou do argumento fundamental. Até agora appareceram dois d’esses argumentos, e o chamar-lhes argumento é favor que lhes fazemos. O primeiro é de que a Italia, sobre-populada, tem de expandir-se. O segundo é que a Italia, paiz civilizado, tem todo o direito a tomar conta de um paiz como a Ethiopia, que é selvagem ou semi- -selvagem. Melhor do que isto não se pôde arranjar. Infelizmente, o melhor é do peor que ha.
Quanto ao primeiro argumento, a todos será evidente que os outros paizes, selvagens ou não, não teem culpa da sobre-população da Italia — e ha que notar que a sobre-população é um indicio de baixo nivel civilizacional, poisque os povos altamente civilizados tendem para a baixa da natalidade, quer por motivos organicos, quer por motivos moraes e intellectuaes, que se reflectem em practicas artificiaes. O que um paiz sobre-populado tem que fazer, na ordem moral, isto é, para resolver a dentro da moral esse problema, é tratar de baixar a sua natalidade. A Italia está mais precisada de que lhe preguem doutrinas neo-malthusianas do que lhe preguem fascismo.
Se, porém, a situação presente exige de facto essa “expansão” — o que não sei se será rigorosamente exacto, poi não tenho sobre o assunto outra informação que não seja a de Mussolini e dos fascistas, de cuja veracidade e imparcialidade não é illicito duvidar —, ponha a Italia o problema, devidamente fundamentado, perante a Sociedade das Nações. Ou essa encontra uma solução satisfactoria, ou não a encontra. Se a encontra, está o caso arrumado, e, ainda que a solução desagrade a este ou àquelle paiz, não póde a Italia ser culpada de tal situação. Se a não encontra80, ou procede justa ou injustamente. Se procede justamente, é que o problema é insoluvel: a Italia que o não arranjasse. Se procede injustamente, tem a Italia o direito de proceder, bem ou mal, como entender, pois, do ponto de vista moral e da salvaguarda da paz, começou por proceder como devia.
Quanto ao segundo argumento, succede-lhe o [que] os inglezes chamam cahir entre dois bancos, como alguem que se sentasse no ar, entre os dois. Em primeiro logar, não ha argumento inteiramente plausivel em favor de qualquer nação dever civilizar outra. Em segundo logar, ninguem entregou à Italia o encargo de civilizar a Ethiopia. Accresce que ninguem sabe ao certo o que quere dizer a palavra “civilização”, que, como a maioria dos termos correntes, significa para cada qual o que elle quere ou lhe convém. Os etiopes são incivilizados, ao que parece, porque teem lá a escravatura e porque não teem um alto nivel de hygiene e de cultura. Ora a escravatura é immoral, para nós hoje, porque considera o homem como uma coisa, porque considera a alma humana como subordinavel a uma potencia material — o dinheiro com que compre esse corpo —, ou seja, em ultima analyse, porque despreza a dignidade e a liberdade humanas. Ora a Italia fascista considera o homem como uma coisa, pois o considera subordinado ao Estado, a Italia fascista despreza todas as liberdades individuaes
FERNANDO PESSOA

A ausência de ponto final, bem como a própria construção da frase, mostram que o texto não foi acabado. Pessoa também não cumpriu o plano elaborado no terceiro parágrafo do texto, tendo tratado apenas do primeiro dos “três problemas” que pretendia abordar.


BNP/E3, 92X”74r a 76r. Dactiloscrito de três páginas numeradas, sem indicação de título,

datável de 1935, com uma correcção do punho do autor.

Num projecto editorial de 1935 (48B”90r), Fernando Pessoa incluiu um artigo intitulado

“O caso é muito simples”, destinado ao R[epública] ou ao D[iário] de L[isboa]. Deve tratar-

se do presente artigo, em virtude da frase usada aqui. O projecto editorial em causa é citado

por Luís Prista em Pessoa (2000, p. 456).

terça-feira, 22 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (1)



PROFECIA ITALIANA

A existência do dom da profecia é afirmada por muitos e negada por muitos. Na maioria dos casos, ou a linguagem profética é tam obscura que dela se póde fazer aplicação a qualquer facto, ou a abundância é tam grande que dificilmente se encontrará um facto a que um ou outro dos pormenores se não possa ajustar. De sorte que o problema fundamental fica na mesma. Os que afirmam a existência do dom profético apontam o facto justificativo; os que lhe negam a existência apontam que qualquer facto, ainda que fôsse o contrário do que se deu, serviria igualmente, e portanto com igual inutilidade, de justificação.
Ha contudo profecias que são simples e claras, como a da célebre quadra das Centúrias de Nostradamo, em que, com mais de dois séculos de antecedência, o advento de Napoleão se indica e o seu carácter se define. É a quadra que começa: “Um Imperador nascerá ao pé de Italia” — Un Empereur naistra près d’Italie...
Estas poucas profecias que são claras versam em geral factos: são como pequenos artigos de pequena enciclopédia, resumindo a história às avessas, isto é, antes de ela existir.
Há, porém, um caso curioso de profecia clara, que contém, com vinte e dois anos de anticipação, não a indicação de factos futuros, mas o comentário justo e preciso dêles, como se os supuzesse conhecidos. E esse vaticinio tem ainda de mais curioso o não ser, suponho, de um profissional da profecia.
No jornal italiano Avanti, de 21 de Janeiro de 1913, vem inserto um artigo em que se lê o seguinte, que peço ao leitor que, palavra a palavra, acompanhe e medite:

“Estamos na presença de uma Italia nacionalista, conservadora, clerical, que se propõe fazer da espada a sua lei, e do exercito a escola da nação.
“Previmos esta perversão moral: não nos surpreende.
“Erram porém os que pensam que esta preponderância do militarismo é sinal de fôrça. As nações fortes não têm que descer à espécie de carnaval estúpido a que os italianos hoje estão entregues: as nações fortes têm o sentido das proporções. A Italia nacionalista e militarista mostra que não tem êsse sentido.
“E assim sucede que uma réles guerra de conquista é celebrada como se fôsse um triunfo romano.”

Ignoro a que propósito imediato se escreveram essas linhas. Ignoro e não importa. São elas o mais justo, o mais claro e o mais cruel comentario de quanto hoje, vinte e dois anos depois, se está passando na Italia, ou, melhor, com a Italia. Ao jornalista casual coube um lampejo de verdadeiro espírito profético.
Felizmente o artigo é assinado, de sorte que não falta o nome, nem portanto a honra, ao iluminado dessa súbita inspiração.
O autor do artigo do Avanti é o sr. Benito Mussolini. Não ter êle fixado residência em profeta!...

FERNANDO PESSOA
BNP/E3, 92X-78 a 79. Transcrição fiel do original dactilografado, mantendo a respectiva ortografia. Publicado pela primeira vez, com ligeiras diferenças, em Cunha e Sousa (1985, pp. 121-122).

sábado, 19 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (introdução)



Novamente por sugestão do leitor Paulo Ferreira, publicamos três textos de Fernando Pessoa, sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália, ocorrida em 1935, antecedidos por esta introdução contextualizadora, da autoria de José Barreto, professor do ICS. Estes textos são muito interessantes, em especial por desmentirem um dos mitos produzidos sobre Pessoa, o do seu suposto alinhamento, ou pelo menos indiferença, para com o fascismo.

A pouco mais de um mês da sua morte, ocorrida a 30 de Novembro de 1935, Fernando Pessoa escreveu dois textos sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália fascista, destinados à imprensa lisboeta, mas que não puderam ser publicados. Pode neles constatar-se o mesmo ânimo crítico com que o escritor vinha produzindo, desde Fevereiro desse ano, uma série de escritos em prosa e em verso contra Salazar e o Estado Novo. Nessa torrente de escrita política de 1935, em que se define claramente o perfil de um opositor não só do salazarismo, como também do fascismo, incluem-se,entre outros: o artigo “Associações secretas”, em defesa da Maçonaria, a que se podem juntar numerosos fragmentos deixados inéditos pelo autor, relacionados com a polémica que o seu artigo desencadeou na imprensa; uma dúzia de poemas satíricos contra Salazar e o Estado Novo; diversos textos e poemas anticatólicos, visando a crescente influência da Igreja na política portuguesa; um longo artigo crítico sobre Salazar, em francês; uma carta ao presidente da República, Óscar Carmona, de protesto contra o governo; uma crítica contundente a um discurso de tom totalitário do ministro da Justiça Manuel Rodrigues. Estes escritos, bem como os artigos sobre a invasão da Abissínia e ainda outros textos produzidos ao longo do ano de 1935 mostram o crescente empenhamento político de Pessoa, na fase final da sua vida, em defesa da liberdade e da dignidade do homem, que ele julga então ameaçadas tanto em Portugal como no mundo.
Embora nunca tivesse consagrado ao tema do fascismo, como doutrina ou regime político, uma análise mais elaborada, Pessoa deixou entre os escritos impublicados da famosa arca numerosos fragmentos e trechos alusivos a Mussolini e ao fascismo, que olhava com desdém e sarcasmo, embora a personalidade do Duce, pelo seu carisma (ou magnetismo, como então se dizia), lhe tivesse merecido uma referência vaga e indirectamente elogiosa, ainda que num contexto de rejeição das ideologias fascistas e nazis. O nacionalismo liberal do “conservador de estilo inglês” Fernando Pessoa não se confundia com o “nacionalismo animal” ou “nacionalismo mórbido” do fascismo italiano — assim o definiu em duas notas que deixou inéditas. Desde logo, o desprezo do fascismo pelas liberdades individuais e a condição de submissão do indivíduo ao Estado totalitário nunca permitiriam a identificação de Pessoa com o regime de Mussolini, tal como não permitiriam a sua identificação com o comunismo. O escritor sustentava, aliás,que havia uma “identidade fundamental” entre os regimes fascista e comunista, em virtude do “anti-liberalismo comum”. Num texto dos anos 20, Pessoa considera o fascismo e o comunismo como forças dissolventes da civilização europeia. Num texto inédito de 1933-1935, Pessoa acrescenta aos dois o nazismo: “Sovietes, comunismo, fascismo, nacional-socialismo — tudo isso é o mesmo facto, o predomínio da espécie, isto é, dos baixos instintos, que são de todos, contra a inteligência, que é do indivíduo só”. Os textos que em 1935 escreveu sobre a guerra ítalo-abissínia, de que adiante se tratará, exprimem a oposição do escritor não só à agressão imperialista da Itália contra a Etiópia, como também ao próprio regime fascista, em que Pessoa via a origem da política agressiva italiana. Não se pretende aqui decidir se estas inequívocas posições do escritor permitem ou não rotular Fernando Pessoa de “antifascista”, questão que já ocupou vários autores, mas viciada à partida por uma definição peculiar de “antifascismo”. As conotações específicas que essa expressão possa ter não invalidam o facto da oposição essencial de Pessoa ao fascismo, ainda que de um ponto de vista conservador liberal. O antifascismo, nacional e internacionalmente, nunca foi propriedade de nenhuma corrente política.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Arroja e as abelhas

Pedro Arroja não é aquele avô salazarista que está sempre a pregar aos netos que os comunistas comem criancinhas. Pedro Arroja escreve com uma moderação que deixa qualquer um engasgado quando nos focamos no conteúdo.
Vejamos, há uma profundidade científica nos posts, uma análise que, para o mais incauto, parece ser um programa científico, fundamentado em premissas já diversas vezes confirmadas, inclusive com exemplos animais. Ficamos todos a saber que "Chamar os pais, como pretendem certas teorias modernas da educação, a desempenhar nos cuidados e na educação dos filhos" é um erro, porque nas abelhas as coisas não se passam bem assim e os machos são usados para fins meramente sexuais. Uma comparação plena de eficácia e altamente sustentada, porque as abelhas são um animal e nós também. Há umas leves diferenças que me estão ocorrer, mas não interessam nada para o caso.
Mas é isso que é belo no blog de Arroja: a modernidade. Não há aqui cheiro a bolor, é tudo inovador, quase revolucionário. O autor apresenta-se como um Messias que nos vem corrigir os erros da nossa famigerada professora de História (porque o ensino de hoje é claramente socialista. Os russos ganharam a guerra fria e foram tão inteligentes que nos convenceram do contrário.).
Arroja não está atrasado no tempo, como costumamos pensar sobre os apoiantes de Salazar. Arroja está à frente, numa fase de surrealismo mágico em que até as regras da lógica são esquecidas. Observemos:
1.[acerca de Salazar] "Mas aquilo que ressalta em todos os seus escritos é a preocupação permanente em conhecer o carácter português"
2. [no meio de algumas qualidades lusas, conseguimos aprender também que...] "o português (...) é pouco aplicado ao trabalho e ao estudo (...), incapaz de chegar a um consenso mesmo com o seu vizinho do lado. (...) mas depois falta-lhe a vontade e a perseverança para executar as ideias e os projectos que ele próprio concebeu."
3. [no entanto, o que é que torna o Estado Novo único?] "O Estado Novo foi um regime político diferente de todos os outros, genuínamente português"
Aqui, as pessoas que tiveram lógica no ensino secundário e que a usam enquanto ferramenta pensam: mas então... o Estado Novo foi bom?
Ao que Arroja responde, com uma argúcia fantástica: " O Estado Novo levou Portugal da 70ª ou 50ª posição no mundo para a 24ª. Hoje, nos seus grandes princípios, levá-lo-ia provavelmente para a primeira. "
Este estado supra-sumo de uma pessoa calma, que escreve sem irritações ou ataques e vê acima de todos nós é, no mínimo, refrescante.
Aqui, porque a dúvida nos assalta e o gosto pela discussão nos leva a querer saber mais, enveredamos pelo perigoso caminho da opinião de Arroja sobre o Estado Novo. O desconhecido mete medo, já o sabemos. Mas a escrita iluminada de Arroja é uma pedrada no charco.
Quais são as chaves do sucesso do Estado Novo? e Arroja arranca. Há o pormaior de o sucesso do Estado Novo ser já uma premissa da discussão. O mais distraído poderá começar a questionar a taxa de analfabetismo, o colonialismo, a censura política e essas histórias da carochinha. Mas dado que há pouco Arroja previu - com uma firmeza que nem o Professor Karamba pode permitir aos seus clientes - que Portugal estaria no topo do mundo não fosse aqueles sacanas do 25 de Abril, já nenhum de nós pode voltar atrás.
"a democracia é restrita - só votam os (as) chefes de família." - mais uma frase que nem necessita de explicação. Suponho que nas abelhas também só votem as fêmeas. (nota-um-bocado-depois-de-ter-postado: reparem que Arroja está num ponto tão elevado que não se prende com o óbvio. Para mim o primeiro argumento para a democracia ser restrita era o facto de estar sempre o mesmo no poder. Mas Arroja vê mais longe.)
"...a aproximação, numa base de independência recíproca, entre o Estado e a Igreja. Existe liberdade de culto, mas a Igreja Católica é a religião tradicional dos portugueses." Ah, os bons ares da Igreja! A tradição é a tradição e isto nem se questiona. É uma coisa científica, a tradição. Se os portugueses sempre foram católicos, o Estado deve dar liberdade de culto, mas com um toque católico. Uma tendência, um empurrãozinho. Nada de especial (há uma independência recíproca), é só um acordo de cavalheiros. A moral e os bons costumes são para manter. E fico muito feliz pela modéstia do senhor Pedro Arroja, que aconselha uma religião a todos os seus compatriotas, não vá a malta escolher mal (ou o chefe de família por nós).
"Oitavo, a família como unidade natural da sociedade." - esta frase volta a esbarrar num dos mais poderosos argumentos de Arroja: o das abelhas. Eu cá, se tenho que ser natural porque a naturalidade é boa, gostava de poder educar os meus filhos e não ser um objecto sexual da minha mulher (as feministas tomaram conta do mundo e nós, homens, a ver futebol).
"Décimo-segundo, a autoridade pessoalizada, forte, proba e discreta do próprio Salazar - um exemplo para todos aqueles que serviam o Estado e, em última instância, para toda a sociedade. Ele estava lá para guardar a casa e para evitar que ela fosse deitada abaixo." - várias curiosidades: Salazar morreu solteiro e sem filhos (não era um pró - vida), o que não deixa de ser normal. Era um homem de bons costumes e cedo percebeu que se tivesse mulher era só para sexo e não quis. Ou porventura até queria educar os filhos, mas viu que isso era contra a tradição histórica da humanidade e não se deixou enganar. No entanto, era um exemplo. Mais, deixámos morrer o pastor que guardava as ovelhinhas e, se este era tão bom, vai ser difícil arranjar outro que nos ponha tão ordenadinhos (apesar de Sócrates, nesse campo, ser uma boa promessa).
Concluindo, em Arroja há um surrealismo contra-lógico, uma coisa mui moderna e especial, que selectivamente lembra acontecimentos históricos para chegar a uma conclusão que faz Nostradamus parecer a Maya: o Estado Novo colocar-nos-ia no topo do mundo.
Porventura não chegámos lá por não sermos chefes de família. Ou abelhas fêmeas.

domingo, 30 de setembro de 2007

Leituras de Outono. Diplomacia, Doce e Amarga (1)


Quando cheguei a Macau comemorava-se não sei que data festiva e, no estilo dos países comunistas, assisti a um longo desfile cívico, em que se exibiram enormes retratos das grandes figuras do mundo comunista. Com espanto, vi desfilar, diante dos meus olhos, um retrato gigantesco de Karl Marx, seguido das efígies de Lenine. Staline, Mao Tse Tung e, para terminar ... Salazar!”
José Calvet de Magalhães


Aproveito e junto mais um.
Era também dançarino.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Zita escancarada

Gente amiga fez-me chegar alguns excertos da biografia autorizada, por ela própria, de Zita Seabra. Confesso que só li aquelas partes que metiam sexo e droga, tão, tão gráficas que fazem do tímido “Porn” do Irvine Welsh ou do canónico “Garganta Funda” de Linda Lovelace, meras ‘sequel’ da perversa Condessa de Ségur. A velha senhora já conheceu melhores dias... mas agora que a padralhada deu em levar na bilha e enrabar noviços e querubins, pior, a arrepender-se e ainda pagar por cima...
Enfim, calúnias, falsificações, quiçá, ciumeira literária, plágio redentor. É que aqueloutra ‘gente amiga’ é muito dada à brincadeira e já não é a primeira vez que beneficiando do mundo desregulado e desmiolado da blogosfera me induz em erro com textos cuidadosamente retocados, desventrados, maquilhados, adulterados, mesmo textos universalmente conhecidos e sempiternos. Pois, aproveitaram-se da minha ignorância e fizeram passar um monte de esterco pela fina prosa de Dona Zita. Fica aqui lavrado um acto de penitência na forma tentada.
Anátema! Deitei tudo para o lixo. Confesso que guardei aquela parte em que a jovem revolucionária discute aleijões ideológicos com o analfabeto Suslov. Já se sabe, como na estória do macaco, deixa-me ver a tua marreca, olha que verruga, andas a dormir com o china, velhaco, tira os cascos Belzebu.
Mas vem isto a propósito do nojo que me metem os arrependidos, reais ou ficcionados, não exactamente- Gogol e Dostoievsky explicaram tudo- por horror à tragédia do traidor, mas porque reduzem o argumentário do pluralismo.
Como Dona Zita, é pseudónimo, é, bem sabe, só o futuro é seguro e todo o passado incerto. O que ontem era serviço, hoje é a mais baixa bufaria. Este dispositivo estalinista- baseado na mecânica quântica-, da certeza saltitante, provoca nas boas almas um encontro com Fichte e com a República de Weimar. As outras, a maioria, as ruins, encontram a salvação nas diferentes modalidades do colapso das liberdades.
Dada a exigência dos frequentadores do “2+2=5”, aqui fica um exemplo de manipulação grosseira.
Como sabem, aquelas gentes ecologistas, ambientalistas, verdes, sim, eu sei, que as categorias vêm-se degradando, desagradam-me quase tanto quanto a esquerda anti-semita. Alardeiam ciência, entre Rousseau e Al Gore, para desvirtuar o progresso. Há aquecimento global? E então? É bom, para se irem habituando ao Inferno. Dizem que o ambiente está degradado? É estranho, à entrada do Elefante Branco ou do Gallery ouve-se sempre dizer “uh! uh!está bom ambiente”.
Afinal, esta rapaziada quer para ‘nosotros’ a felicidade oferecida por Oliveira Salazar: Sombra e Água Fresca. Tá bem, com dois cubos de gelo.


JSP

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Post intimista sobre o 25 de Abril

Foto: Eduardo Gageiro. Com a devida vénia ao Geração Rasca

Sempre comemorei Abril. Este ano num espectáculo em que participei, com direito a capitão de Abril e tudo. Tivemos a grande voz do Francisco Naia, música, dança e poesia. Deixei o convite aqui, a 15 do corrente mês. Hoje, para mim, é dia de autocrítica, introspecção, exame de consciência. Este blogue congrega entre ficha técnica, colaboradores, comentadores, quiçá grande parte dos nossos leitores, várias tendências de esquerda. Todos sabemos, aqui, que há diferença entre esquerda e direita. E também sabemos que somos, e viemos, de esquerdas diferentes. Continuaremos a aprofundar as nossas convergências e divergências. Dito isto, algumas constatações. Em Abril de 1974, o Fernando Almeida Ribeiro, o João de Azevedo, o José Pinto de Sá, o Jota Esse Erre, eram exilados políticos. O ZeMari tinha passado pelas prisões do regime. Aqui lhes deixo a minha homenagem. À guerra colonial baldámo-nos todos ou quase todos. O André Carapinha e o Manuel Neves não tinham nascido, mas com eles o debate de esquerda continua e cresceu. Que inveja tenho, por não ter a pedalada de outrora, dos novos tempos que Abril abriu. O João Neves faria hoje anos e o João Murinello, o José Barros, o Raul Ferreira vão faltar à festa. Muito vou ter que chorar, que rir, que beber, que fumar, nestes festejos. A luta continua!
Aqui fica para todos este cravo.

Beijinhos e abraços