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sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O essencial é ter o vento

O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos dum concorrente
Incompetente.

Reinaldo Ferreira

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Ânfora fui

Ânfora fui;
O seu cadáver sou.

Emparedada aqui neste museu,
Pasto do pó e dos olhares
Que não perscrutam minha mágoa,
Eu sou quem fui,
Menos o fim que alguém me deu,
De conter vinho e mel e água ...

Enfim, eu não sou nada,
Que há muito já se não propaga a mim
O calor de uma anca,
E o meu fresco conteúdo
Não encontra uma boca
E uma sede não estanca.

Do oleiro que me fez
-- A poeira, talvez,
Dispersa e reunida,
A contenha outra vida
Ou outra ânfora ... –
Nem memória persiste do seu nome.

Reinaldo Ferreira

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

RECEITA PARA FAZER UM HERÓI

Tome-se um homem,
Feito do nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

Reinaldo Ferreira

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

PIETÁ

Já lívido repousa em seu regaço.
Já não escuta, não vê, não ri, não fala.
Aquele que foi Seu Filho, Ela o embala
Morto, alheia a tempo e espaço.

O mistério parou no limiar dos assombros.
Dos irados profetas, das rígidas escrituras
Sobra um Deus morto; e os únicos escombros
São a atónita aflição das criaturas.

Eles choram, vários, como vários são
Sua revolta e sua dor. Absorto,
O olhar da Mãe escorre, inútil, no chão.
Ela, o que chora? O Deus parado – ou o filho morto?

Reinaldo Ferreira

sábado, 11 de agosto de 2007

CONFERÊNCIA À IMPRENSA

O processo
-- O que importa é virá-lo do avesso,
Mudar as intenções,
Interpretar,
Sofismar –
Deve ser rápido e sumário.
Termos, preceitos, norma,
É tudo forma,
Matéria de processo e convenção.
Ao cabo, é o Calvário
Que é preciso atingir.
Alguém tem de subir.
Eu não quis, sou juiz.

Aos senhores
Mais propagadores
De tudo o que acontece
-- De tudo que parece
Que acontece
E passa a acontecer –
E disto e aquilo
-- E da Verdade, às vezes --
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Reinaldo Ferreira

domingo, 5 de agosto de 2007

O FUTURO

Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais
Fundamentais,
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos
Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
-- Sòlidamente antiburgueses -- ,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários.

Reinaldo Ferreira

Post que leva um abraço à Ana Cristina Leonardo e, outro, ao Táxi Pluvioso

sábado, 4 de agosto de 2007

Quero um cavalo de várias cores

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva – nimbos e cerros –
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sòzinho
Sem um cavalo de várias cores?

Reinaldo Ferreira

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Glória a vós

Oh! vós, que dominais vossos instintos
Como se fossem cavalos!
Oh! vós, que os amestrais, para exibi-los
Como se fossem ursos!
Oh vós, que, infatigáveis domadores de impulsos,
Exibindo-os, colheis aplausos, contratos e elogios!
Glória a vós! Glória a vós, represadores
Do caudal,
Que eu não domino,
Do real.
Glória a vós dominadores do natural!

Reinaldo Ferreira

segunda-feira, 30 de julho de 2007

EPITÁFIO A UM CAPRICHO MORTO

Amei,
Não QUEM busquei,
Mas o que achei.
O mesmo acaso
Que nos cruzou,
Nos separou.
Assim
O fim
Estava em mim,
Túmulo e berço
Do sempre engano
Par'onde vou.

Reinaldo Ferreira

terça-feira, 24 de julho de 2007

Não sei nada

No princípio, só a vida existia;
O mundo era o que havia
Ao alcance da vida ...
E mais nada.

Tudo era certo, simples, claro.

Quando o passado passar
(E passará, porque o passado é hoje),
E o futuro vier
(E há-de vir, porque o futuro é hoje),
Então, sim; há-de saber-se tudo
E tudo será certo, simples, claro.

Eu, porém, não sei nada.

Reinaldo Ferreira

sábado, 21 de julho de 2007

Mistérios

Quanto mistério na semente
Que ergue ao sol o pulmão de uma folha;
Quanto mistério em mim, que a vejo;
E quanto, quanto mais mistério em mim,
Que vejo nisto um mistério!

Reinaldo Ferreira

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Ponte

Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num halo vago que atrai.

É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P’ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.

Da outra margem, direita,
A ponte parte também.
Quem sabe se alguém ma espreita?
Não a atravessa ninguém.

Reinaldo Ferreira

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Sou dos dois o mais velho

Que de nós dois
O mais sensato sou eu,
-- É uma forma delicada
De dizeres que sou mais velho.
Ora é verdade
Ser eu quem tem mais idade.
Mas daí a ter juízo
Vai um abismo tão grande
Que é preciso,
Com certeza,
Que o digas com ironia
E nenhuma simpatia
Pelo engano em que vivo.
O engano de ter rugas
E nunca fitar um espelho ...
Vê lá tu que eu não sabia
Que sou dos dois o mais velho.

Reinaldo Ferreira

sábado, 14 de julho de 2007

É pela tarde

É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colmeias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para dores alheias.

Um que, impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que se cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.

Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele, e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.

Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.

Reinaldo Ferreira

terça-feira, 10 de julho de 2007

Vejo lábios, olhos, dentes

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d´ónix, ou esmeralda ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo,
E vejo lábios, olhos, dentes.

Reinaldo Ferreira

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Um voo cego a nada

Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une – é estar ausentes.

Reinaldo Ferreira