Papadofila/ ludicasta
O papa semeia semeia semeia e nada
O crente vai mais casto atrás da carne ou da uva
Na banda larga e mesmo na vizinhança
Cometer com outra gana o que lhe proibiram em coro
E os padres com tanto rapazinho de pobreza exposta
À castidade dedicam santa aspirina remédio santo
Na busca da disfunção eréctil que os desatormente
Pois não há idade para pertencer aos Céus
E só se pertence sem desejos a eles
Dominada a besta e entregues ao breviário
Este entre mãos para tê-las ocupadas
Sem sucumbir ao entre pernas teodolito
Medidor de fronteiras e odores
E desaforado vertiginoso cobremaníaco
E porque não a excisão
Da gaita pois que o berbigão é delas
E não dos ordenáveis proprietários de castos pirilaus?
O papa semeia semeia semeia
E lá ordenam senhoras os anglicanos
A poucos metros de São Pedro
Praça da sua janela global
- Se há de oportunidade é a dele em poliglotismos alemanizados
Ritual mais que ateu pois apenas ecrã e microfone
Nem altar nem tecto sistino nem nada
Só plano americano e primeiro também e claro
Mais que água benta a mineral -
Intérpretes pois as senhoras
Do velho e do novo testamentos
O que só no masculino está prescrito
Pois só pelo filtro da cinzenta massa
Macha a palavra pode ser exegetada
Como deve ser
O papa semeia semeia e nada
O povoléu enche a praça
Curte a terapia em catarse concertante
E depois regressa ao pecado
Todas e cada um o seu
A mulher do parceiro certamente
Pois é mais picante que a própria
A masturbação penitente
No genuflexório pois
Para o mais novo ordenança ainda
Na presença dos mármores
E dos arrependidos
Das paredes pendurados
E mesmo os mais devotos
Tudo devem ao Tartufo
Pois o diabo está no neurónio instalado
Como uma carraça tresmalhada
Que o desejo não pede para entrar
Já lá anda
Ele há outros cometimentos
Que assinalam que o bicho mano
Só mano é na solto-manidade total
Sem trela nem rédea
Assim à moda do natural
Mas tal receita não tem evangelho que a prescreva
Nem bula que a torne medida
Tragédia da contradição
Que só muita contrição atenua
Sem garantia pois
Atenua atenua atenua
O papa semeia semeia
E as meninas vão com as meninas
E os rapazes com os rapazes
Já de Safo a coisa vem
E sabe-se que o Sócrates o Alcibíades papava
Ou era papado pelo infante discípulo
Belo mas não sábio
Daí vem o Papado como período
Papado durante o período
O período para a ordem masculina casta da coisa
É o equivalente do período
Para a ordem feminina da coisa
Essa fronteira que o papa re-semeia
Constantemente
Para salvar o mundo claro
Da guerra civil dos sexos
Pois se sangram é por alguma razão
Que eles apenas sangram por trás e quando
As almorróidas vindas da especiaria assassina visitam
Sem passaporte as partes merdoprodutoras
Portanto este papado é o papado do período do teólogo
Que mais Aristóteles das metafísicas é Rástzingaro
Para as impor assim duro às mais que físicas
As verdadeiras metas espirituais
Pura teoria e pura abstracção descorporificada
Baseada na pura ideia e transparência
A que sobrevoa por falta de gravidade que a persiga
Sem base material que a figure
Pois o sangue do senhor é de facto vinho
E este vem da inocência da uva
Sem consciência
Fruta é
E nada é
Como a outra
A maçã
Feita com o demóino
E pura traição avermelhada
O papa semeia semeia
E o berlusconho colhe da aura
Os ardores da erecção amiga
Nas páginas nacionais de referência
Para gáudio colectivo e memória de Nero exaltada
Em busca das chamas infernais romanas que tudo redimam
Pelos paparazis colhida a gaita ex ministerial de leste
No foco de uma teleobjectiva
Prova que a Europa vai de vento em popa
E que não há melhor reforma que a dos ex mandantes
Pois melhor que biagra é sem ele erigir a coisa aos céus
Por efeito da pura natureza das coisas contracenando
Pois agora que me refaço
Das dores mediáticas que tive
Quase traumatizantes
Dedico ao senhor dos Prada
Este poemO de alento
Com finalidade didáctica
Desejo e oro com ele
Para que a castidade
A dívida púbica resolva
E comova os especuladores
E suas agências ratzingas
É tudo uma questão
de desErecção cósmica
FMR
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domingo, 16 de maio de 2010
anaCrónica 20
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sexta-feira, 30 de abril de 2010
anaCrónica 19
Gosto e política cultural
O estudo de Augusto Mateus pôs dedos na ferida: a indiferença do governo quanto às actividades culturais artísticas, por um lado e a explicitação da diversidade constitutiva de um sector económico feito de três partes, a criação artística e as suas tradições disciplinares patrimoniais, as indústrias culturais e a dimensão criativa própria das mercadorias, na esfera lata do mercado, o design de objectos de consumo.
Convém aliás aqui clarificar que a dimensão criativa de actividades industrializadas, que obedece à satisfação de lógicas massivas de gosto elas próprias induzidas pela estratégia quantificadora do marketing que promove os diversos produtos na relação de concorrência, nada tem a ver com a actividade artística, esta desligada de objectivos imediatos, destinada ao fruidor cidadão potencial, solitário ou em assembleia, a públicos mais iniciados e não ao consumidor perdido na massa – uma, virada para o humano, a outra, para o mercado. Uma coisa é a linguagem imprevisível da criação artística, cujos códigos de leitura têm de ser reinventados sucessivamente porque não se trata de dar a ler algo já lido, outra coisa é a aplicação de normas de gosto estandartizadas para satisfazer padrões de vida que encontram na sofisticação do design uma dada exibição de status, particularmente através da lógica das marcas que, no presente, estabelecem uma norma geral de comportamento e sinais exteriores de troca simbólica consumível e ideológica, a aparência como essência possível. Não é por acaso que a maioria dos chamados políticos anda de gravata e essa gravata tende a hipertrofiar o nó num claro assumir de um certo “mau gosto” papalvo contra um certo “bom gosto” - um nó mais discreto e menos berrante – dos usos de famílias mais antigas. Este exemplo parece ridículo mas merece ser referido, pois tem carácter normativo por via informal e é revelador das mentes: ninguém os obriga a andar assim, mas de facto o uso é praticado como exibição e geral, normativo por costume. Desde que a sociedade ganhou aliás este carácter de democracia massiva e falsamente igualitária que as classes médias chegadas de fresco – os “parvenus” de Marivaux -, têm imposto as suas referências de “mau gosto” como bandeira da própria ascensão vencedora como gosto dominante. A diversidade, neste aspecto, não passa de um simulacro e o”mau gosto”, enquanto expressão de um poder da quantidade, é de facto, esmagador.
Nestas coisas, o respeito das tais minorias revela-se no plano de uma clara inveja social, confundindo-se muitas vezes aquilo que é de ordem estética com aquilo que é de ordem elitista. Não há bronco nenhum que não apelide de elitista, não aquilo de que não gosta porque formatado pelo tal “mau gosto” que o impede de gostar - no plano do juízo funciona na mesma zona em que se pode pensar o estético, o gostar não gostar dependente da comunicação imediata – mas aquilo que ele entende que, não percebendo, não passa de algo elitista que a tal democracia igualitária tem de liquidar para que, nivelando tudo pela tal lei do tudo nivelado pelo mesmo, tenhamos uma ordem democrática do gosto, um gosto comandado pelas massas médias e remediadas. Este pratica-se contra as veleidades aristocráticas do estético, identificadas com as tais elites que são perniciosas e a que se associam os desgraçados dos artistas, na realidade, mais artesãos que criaturas mundanas – artesãos do corpo e cabeça, das linguagens do enigmático. A ideia de “uma arte elitista para todos” não lhes passa pela cabeça. Ora, esta, é a ideologia do poder actual em matéria de gosto, uma ideologia da incultura estética e dos consumos designer, fundos de vernissage e berardices pavlovianas com amplificação mediática súbita e mesmo reacções papalvlovianas deslumbradas com a riqueza dos ricos, as massas despertando alegremente como parte e percentagem orgulhosa da maior estatística cultural – como no guiness, esse cúmulo da estupidificação oscarizada.
E este é o problema. Do mesmo modo que descrimina numa política a importância da ciência como factor de desenvolvimento libertador – que não o é em si, pelo contrário, o que justamente implica a marca orientadora de uma política – é imprescindível discriminar, numa política, a cultura como forma de fomentar as actividades estéticas da criação artística, que não têm um quadro de rendibilidade imediato pois não são realizadas para nenhum mercado, mas são actividades humanas essenciais, aquelas que no fundo identificam no ser os seus objectivos humanos – ainda recentemente José Gil falou desta dimensão ontológica da criação artística.
Será que isto não entra pelos olhos dentro? Mesmo a actividade artística regular, como a dos teatros, está mais próxima daquilo que enquanto actividade estético-literária caracteriza Os Lusíadas do que daquilo que vai no design dos móveis da IKEA. Não há relação entre as actividades do gosto formatado e a invenção artística. D. Quixote, por muito que o formatem e concentrem e imitem e reduzam a sigla e sinopse, não dispensa a leitura, essa actividade sem rendibilidade imediata – exemplo radical é o romance de Joyce agora editado, Finnegans Wake (15 anos levou Joyce a escrever o romance inacabado e agora mais de trinta levou o estudioso que fixou o texto a fazê-lo para uma leitura possível). Nada compro nem vendo nas horas perdidas da leitura, perco tempo e dinheiro – a leitura é tão “inútil” quanto a criação e tem os mesmos vícios. Mas ganho algo, ganho até inteligência criativa – ela anda aí a tal artificial, mas não funciona sem mão - aplicável a lógicas de exercício laboral dedicadas à economia. Mas estas não são nem de consequência directa, nem de medida imediata, não são mensuráveis. Será que isto não se entende? Não se entende que é de outra esfera e que é com esta esfera que uma política cultural do artístico se tem de entender? Uma política cultural é uma política da estruturação da criação artística e é uma política da leitura, das capacidades de ler a complexidade actual das linguagens. E é também uma política da relação umbilical das duas coisas.
Em relação ao Ministério da Cultura: mais orçamento, mais do dobro, mais do triplo, e obviamente um programa e competências organizacionais e dinâmicas. E não vale a pena falar de cortes. Neste momento é promover o desemprego apenas. Só um grande aumento dos dinheiros para a cultura pode promover a ideia de “uma cultura elitista” para todos, a única ideia socialista possível.
Fernando Mora Ramos
O estudo de Augusto Mateus pôs dedos na ferida: a indiferença do governo quanto às actividades culturais artísticas, por um lado e a explicitação da diversidade constitutiva de um sector económico feito de três partes, a criação artística e as suas tradições disciplinares patrimoniais, as indústrias culturais e a dimensão criativa própria das mercadorias, na esfera lata do mercado, o design de objectos de consumo.
Convém aliás aqui clarificar que a dimensão criativa de actividades industrializadas, que obedece à satisfação de lógicas massivas de gosto elas próprias induzidas pela estratégia quantificadora do marketing que promove os diversos produtos na relação de concorrência, nada tem a ver com a actividade artística, esta desligada de objectivos imediatos, destinada ao fruidor cidadão potencial, solitário ou em assembleia, a públicos mais iniciados e não ao consumidor perdido na massa – uma, virada para o humano, a outra, para o mercado. Uma coisa é a linguagem imprevisível da criação artística, cujos códigos de leitura têm de ser reinventados sucessivamente porque não se trata de dar a ler algo já lido, outra coisa é a aplicação de normas de gosto estandartizadas para satisfazer padrões de vida que encontram na sofisticação do design uma dada exibição de status, particularmente através da lógica das marcas que, no presente, estabelecem uma norma geral de comportamento e sinais exteriores de troca simbólica consumível e ideológica, a aparência como essência possível. Não é por acaso que a maioria dos chamados políticos anda de gravata e essa gravata tende a hipertrofiar o nó num claro assumir de um certo “mau gosto” papalvo contra um certo “bom gosto” - um nó mais discreto e menos berrante – dos usos de famílias mais antigas. Este exemplo parece ridículo mas merece ser referido, pois tem carácter normativo por via informal e é revelador das mentes: ninguém os obriga a andar assim, mas de facto o uso é praticado como exibição e geral, normativo por costume. Desde que a sociedade ganhou aliás este carácter de democracia massiva e falsamente igualitária que as classes médias chegadas de fresco – os “parvenus” de Marivaux -, têm imposto as suas referências de “mau gosto” como bandeira da própria ascensão vencedora como gosto dominante. A diversidade, neste aspecto, não passa de um simulacro e o”mau gosto”, enquanto expressão de um poder da quantidade, é de facto, esmagador.
Nestas coisas, o respeito das tais minorias revela-se no plano de uma clara inveja social, confundindo-se muitas vezes aquilo que é de ordem estética com aquilo que é de ordem elitista. Não há bronco nenhum que não apelide de elitista, não aquilo de que não gosta porque formatado pelo tal “mau gosto” que o impede de gostar - no plano do juízo funciona na mesma zona em que se pode pensar o estético, o gostar não gostar dependente da comunicação imediata – mas aquilo que ele entende que, não percebendo, não passa de algo elitista que a tal democracia igualitária tem de liquidar para que, nivelando tudo pela tal lei do tudo nivelado pelo mesmo, tenhamos uma ordem democrática do gosto, um gosto comandado pelas massas médias e remediadas. Este pratica-se contra as veleidades aristocráticas do estético, identificadas com as tais elites que são perniciosas e a que se associam os desgraçados dos artistas, na realidade, mais artesãos que criaturas mundanas – artesãos do corpo e cabeça, das linguagens do enigmático. A ideia de “uma arte elitista para todos” não lhes passa pela cabeça. Ora, esta, é a ideologia do poder actual em matéria de gosto, uma ideologia da incultura estética e dos consumos designer, fundos de vernissage e berardices pavlovianas com amplificação mediática súbita e mesmo reacções papalvlovianas deslumbradas com a riqueza dos ricos, as massas despertando alegremente como parte e percentagem orgulhosa da maior estatística cultural – como no guiness, esse cúmulo da estupidificação oscarizada.
E este é o problema. Do mesmo modo que descrimina numa política a importância da ciência como factor de desenvolvimento libertador – que não o é em si, pelo contrário, o que justamente implica a marca orientadora de uma política – é imprescindível discriminar, numa política, a cultura como forma de fomentar as actividades estéticas da criação artística, que não têm um quadro de rendibilidade imediato pois não são realizadas para nenhum mercado, mas são actividades humanas essenciais, aquelas que no fundo identificam no ser os seus objectivos humanos – ainda recentemente José Gil falou desta dimensão ontológica da criação artística.
Será que isto não entra pelos olhos dentro? Mesmo a actividade artística regular, como a dos teatros, está mais próxima daquilo que enquanto actividade estético-literária caracteriza Os Lusíadas do que daquilo que vai no design dos móveis da IKEA. Não há relação entre as actividades do gosto formatado e a invenção artística. D. Quixote, por muito que o formatem e concentrem e imitem e reduzam a sigla e sinopse, não dispensa a leitura, essa actividade sem rendibilidade imediata – exemplo radical é o romance de Joyce agora editado, Finnegans Wake (15 anos levou Joyce a escrever o romance inacabado e agora mais de trinta levou o estudioso que fixou o texto a fazê-lo para uma leitura possível). Nada compro nem vendo nas horas perdidas da leitura, perco tempo e dinheiro – a leitura é tão “inútil” quanto a criação e tem os mesmos vícios. Mas ganho algo, ganho até inteligência criativa – ela anda aí a tal artificial, mas não funciona sem mão - aplicável a lógicas de exercício laboral dedicadas à economia. Mas estas não são nem de consequência directa, nem de medida imediata, não são mensuráveis. Será que isto não se entende? Não se entende que é de outra esfera e que é com esta esfera que uma política cultural do artístico se tem de entender? Uma política cultural é uma política da estruturação da criação artística e é uma política da leitura, das capacidades de ler a complexidade actual das linguagens. E é também uma política da relação umbilical das duas coisas.
Em relação ao Ministério da Cultura: mais orçamento, mais do dobro, mais do triplo, e obviamente um programa e competências organizacionais e dinâmicas. E não vale a pena falar de cortes. Neste momento é promover o desemprego apenas. Só um grande aumento dos dinheiros para a cultura pode promover a ideia de “uma cultura elitista” para todos, a única ideia socialista possível.
Fernando Mora Ramos
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terça-feira, 27 de abril de 2010
AnaCrónica 18
Fecho-ecler
O botão parecia ter morte anunciada quando o fecho-ecler surgiu. Este mecanismo tem todas as vantagens que o tempo e o jeito fazem coincidir com a moral da época, fresca como fruta sem armazém, e permite a adequação das rotinas a um ritmo de vida cada vez mais veloz a caminho de novas velocidades ainda mais velozes: fechar um sobretudo de botões com casas à maneira é de todo em todo diferente de zipar um blusão na iminência de um espirro, em que parte do mundo for, da Gronelândia ao cabo Espichel, o que para botão pode ser constipação – nos intervalos a brisa malvada espreita o peito e ataca as costas onde o olho não chega. E para maior adesão à vitória todo o terreno do fecho-ecler, já o vemos há muito tempo também lançando os colchetes no desuso, mercado nostálgico dos amantes das patines sépia das imagens em papel e das velharias mercadificáveis – só mesmo um velho, humano mesmo, não tem mercado.
Claro que os botões se mantêm nas linhas da frente mais sofisticadas, as linhas eróticas e sem necessidade de indicativos. Tirados um a um fazem mais calor que arrefecem, são jeito de uma ginástica dos dedos e mãos a caminho da terra prometida: outra haverá? Com um fecho-ecler, a poesia da coisa vai-se no ruído inevitável e na rapidez que amolece. Tudo o que é precoce – e o tempo que anda mais rápido que o corpo faz abortar sensações e emoções - trai a possibilidade de vir a ser o que é, pois às coisas é devida a sua maturação, assim sabemos do trigo mas também do joio, essa gramínea mal tratada de que também se fez cerveja, e que, como o chicharro, se destinava às mandíbulas inferiores no tempo em que o salmonete e o linguado hierarquizavam as famílias em patamares de gosto e simbólicas estatuídas de distância social. De lá para cá a revolução do palato estruturou outras distâncias. As de hoje são fabricadas em tempo recorde e nada têm com sangue mas com roleta especulativa e obviamente saque e pilhagem, o que faz o seu sangue, vermelho industrial. Se muito se vêem, esses abismos, é para menos se verem e para provocar a vertigem invertida do salivar de boca da massa na sua psicologia ascensional de contágio constante, o vírus ansioso do cimo do cume a roer a corda da existência.
Mas eis que o anacrónico regressa com o ciclo dos regressos em prospectiva semeada a marketing – na música é constante essa plasticidade do retorno -, como a energia eólica ou solar. Nada mais primitivo do que o moinho de vento e o bife na pedra à moda do equador, ou o peixe seco em estendais de fedor, arenque e carapau, carne seca também. Mais simples ainda são os diversos canibalismos, tão sofisticados hoje, movidos a energia maxilar instintiva. A propósito: estou a ver a imagem do bispo Sardinha a ser grelhado pelos Tupinambás, com mitra, sotaina, os sapatos (Prada?) e tudo. Seria pedófilo? Não, era mesmo bispo. O João Ubaldo é que diz que em Itaparica a carninha branca dos holandeses, sabor a leitãozinho, era preferida à dos portugueses, com muito nervo. Nem para comer.
Quanto ao fecho-ecler foi um grande progresso e os nossos dirigentes progressistas sempre o disseram: o progresso e a modernidade hão-de levar-nos da leviandade, em direcção ao futuro, por muito que roer seja duro – é preciso é bons dentes.
Seguir-se-à ao ecler o fecho digital? Mas esse sempre houve. Estamos mesmo zipados de todo.
FMR
O botão parecia ter morte anunciada quando o fecho-ecler surgiu. Este mecanismo tem todas as vantagens que o tempo e o jeito fazem coincidir com a moral da época, fresca como fruta sem armazém, e permite a adequação das rotinas a um ritmo de vida cada vez mais veloz a caminho de novas velocidades ainda mais velozes: fechar um sobretudo de botões com casas à maneira é de todo em todo diferente de zipar um blusão na iminência de um espirro, em que parte do mundo for, da Gronelândia ao cabo Espichel, o que para botão pode ser constipação – nos intervalos a brisa malvada espreita o peito e ataca as costas onde o olho não chega. E para maior adesão à vitória todo o terreno do fecho-ecler, já o vemos há muito tempo também lançando os colchetes no desuso, mercado nostálgico dos amantes das patines sépia das imagens em papel e das velharias mercadificáveis – só mesmo um velho, humano mesmo, não tem mercado.
Claro que os botões se mantêm nas linhas da frente mais sofisticadas, as linhas eróticas e sem necessidade de indicativos. Tirados um a um fazem mais calor que arrefecem, são jeito de uma ginástica dos dedos e mãos a caminho da terra prometida: outra haverá? Com um fecho-ecler, a poesia da coisa vai-se no ruído inevitável e na rapidez que amolece. Tudo o que é precoce – e o tempo que anda mais rápido que o corpo faz abortar sensações e emoções - trai a possibilidade de vir a ser o que é, pois às coisas é devida a sua maturação, assim sabemos do trigo mas também do joio, essa gramínea mal tratada de que também se fez cerveja, e que, como o chicharro, se destinava às mandíbulas inferiores no tempo em que o salmonete e o linguado hierarquizavam as famílias em patamares de gosto e simbólicas estatuídas de distância social. De lá para cá a revolução do palato estruturou outras distâncias. As de hoje são fabricadas em tempo recorde e nada têm com sangue mas com roleta especulativa e obviamente saque e pilhagem, o que faz o seu sangue, vermelho industrial. Se muito se vêem, esses abismos, é para menos se verem e para provocar a vertigem invertida do salivar de boca da massa na sua psicologia ascensional de contágio constante, o vírus ansioso do cimo do cume a roer a corda da existência.
Mas eis que o anacrónico regressa com o ciclo dos regressos em prospectiva semeada a marketing – na música é constante essa plasticidade do retorno -, como a energia eólica ou solar. Nada mais primitivo do que o moinho de vento e o bife na pedra à moda do equador, ou o peixe seco em estendais de fedor, arenque e carapau, carne seca também. Mais simples ainda são os diversos canibalismos, tão sofisticados hoje, movidos a energia maxilar instintiva. A propósito: estou a ver a imagem do bispo Sardinha a ser grelhado pelos Tupinambás, com mitra, sotaina, os sapatos (Prada?) e tudo. Seria pedófilo? Não, era mesmo bispo. O João Ubaldo é que diz que em Itaparica a carninha branca dos holandeses, sabor a leitãozinho, era preferida à dos portugueses, com muito nervo. Nem para comer.
Quanto ao fecho-ecler foi um grande progresso e os nossos dirigentes progressistas sempre o disseram: o progresso e a modernidade hão-de levar-nos da leviandade, em direcção ao futuro, por muito que roer seja duro – é preciso é bons dentes.
Seguir-se-à ao ecler o fecho digital? Mas esse sempre houve. Estamos mesmo zipados de todo.
FMR
sábado, 24 de abril de 2010
anaCrónicas 17
Karl Valentin, um humorista nas Caldas
É uma relação de todo improvável, mas a contemporaneidade tem destas coisas: quando um autor “menor” é rebuscado do baú das preciosidades, ou das antiguidades vivificáveis, pode de facto ressurgir em qualquer parte do globo, mesmo numa pequena cidade de um Oeste que não tem a ínfima parte da fama do outro e que, culturalmente, é uma semi-pasmaceira auto complacente.
Karl Valentin é nomeado como clown metafísico por Brecht. É na opinião de alguns teóricos a referência física do teatro épico, essa invenção de B.B.
Brecht disse que Valentin não conta blagues, ele é a própria blague. Num país em que o humor se identifica com as expressões do requentado mais óbvio, Valentin é uma intrusão, um cómico burlesco inesperado, um autor que não conta piadas garantidas mas que espalha um tipo de humor nos alicerces dos rituais e estruturas de conservação como um antídoto rebelde para o conformismo.
A Ida ao teatro, A Primeira Comunhão, O Projector avariado, o Teatro obrigatório, são pequenas peças, sketches – e a forma breve tem essa eficácia do resultado imediato e da mobilidade extrema, na montagem e na fama partilhável, história fácil de contar, como fogo em palha – em que o mundo às direitas é metido às avessas pelos caminhos da lógica contestada e nessas avessas se percebe, mostrada, dada e baralhada de novo, a convencionalidade bacoca do mundo às direitas. Assim é escanhoada aos limites do masoquismo evidente a relação conjugal do casal de a Ida ao teatro e a sua visão pequeno burguesa, os seus limites de entendimento das liberdades e da liberdade do outro e a sua sujeição absoluta à sedução mundana meio parvónia, assim se vê na primeira comunhão o modo como a educação progride por etapas simbólicas ritualizadas e sem conteúdo real e a infantilização absurda de quem um dia virá a ser adulto, mas que ali, no gag revelador, se encerra numa adolescência prolongada infantilmente até à senilidade.
E o génio de Valentin é duplo: é um especialista da graça verbal, da piada literal levada ao absurdo, de uma profundidade lida na tacanhez do desejo das personagens retratadas, na ambivalente superfície das palavras, mas é também o criador da sua figura e da parceira, Liesl Karlstadt, ambos dedicados ao mundo do cómico, opção de vida e porventura de coincidência entre vocação humana para se ser livre e condição do próprio ser. E essas figuras, Valentin e Liesl, como Chaplin e Keaton, são personagens físicos: o corpo é desde logo uma marca do que são, o corpo é sujeito, ele liberta-se de uma total sujeição ao figurino e também de uma dependência da palavra como se fosse a sua ilustração. Não, o corpo é sujeito e funde-se com a palavra. Este tipo de clown e o seu jogo é já um resultado da modernidade e explora a confrontação entre uma humanidade ainda artesanal, ainda dependente da operacionalidade da mão e das virtudes do polegar oponível e as convenções e maquinismos da sociedade burguesa industrial em ascensão. Estamos na Europa dos anos vinte.
Quando Brecht diz que Valentin é a própria blague é porque dele se solta essa liberdade de quem não vive para contar graças a metro, cada piada cada dólar, mas de quem vive livremente a inadaptação, naquele modo fora de tom que Pirandello descreve no Humorismo, um modo que é ingenuamente acusador das verdades oficiais, do mundo das falsas aparências em que os analfabetos fazem de doutores e em que os poderes são reverenciados e o oportunismo uma regra. Valentin tem essa capacidade que a infância ainda não aculturada e regrada tem, aquela que diz “o rei vai nu” e que fustiga o preconceito, como o nosso Cervantes tão bem estigmatiza no seu Retábulo das maravilhas, um sketch do seu Século de ouro em que faz uma análise “científica” do preconceito como um verdadeiro mecanismo de ilusão colectiva convencionado entre poderes e aparências, o que nunca foi tão actual como hoje, em que domina a chamada sociedade do espectáculo.
Realizar este espectáculo no âmbito de uma parceria com a câmara e num projecto apoiado por programas da Mais Centro (CCRC) é mais que um dever, é um prazer. No coração das Caldas esta Ida ao teatro obrigatório é uma lança no coração do sistema urbano, uma lança para ferir imobilidades rasteiras e conformismos, assim como falsas inovações e pseudo vanguardismos analfabetos.
E agora senhores e senhoras, no Cabaret da Rainha, os actores: a Isabel Lopes, o Victor Santos e o Carlos Borges. Podem crer, é um privilégio. A partir de 29 em cena.
FMR
É uma relação de todo improvável, mas a contemporaneidade tem destas coisas: quando um autor “menor” é rebuscado do baú das preciosidades, ou das antiguidades vivificáveis, pode de facto ressurgir em qualquer parte do globo, mesmo numa pequena cidade de um Oeste que não tem a ínfima parte da fama do outro e que, culturalmente, é uma semi-pasmaceira auto complacente.
Karl Valentin é nomeado como clown metafísico por Brecht. É na opinião de alguns teóricos a referência física do teatro épico, essa invenção de B.B.
Brecht disse que Valentin não conta blagues, ele é a própria blague. Num país em que o humor se identifica com as expressões do requentado mais óbvio, Valentin é uma intrusão, um cómico burlesco inesperado, um autor que não conta piadas garantidas mas que espalha um tipo de humor nos alicerces dos rituais e estruturas de conservação como um antídoto rebelde para o conformismo.
A Ida ao teatro, A Primeira Comunhão, O Projector avariado, o Teatro obrigatório, são pequenas peças, sketches – e a forma breve tem essa eficácia do resultado imediato e da mobilidade extrema, na montagem e na fama partilhável, história fácil de contar, como fogo em palha – em que o mundo às direitas é metido às avessas pelos caminhos da lógica contestada e nessas avessas se percebe, mostrada, dada e baralhada de novo, a convencionalidade bacoca do mundo às direitas. Assim é escanhoada aos limites do masoquismo evidente a relação conjugal do casal de a Ida ao teatro e a sua visão pequeno burguesa, os seus limites de entendimento das liberdades e da liberdade do outro e a sua sujeição absoluta à sedução mundana meio parvónia, assim se vê na primeira comunhão o modo como a educação progride por etapas simbólicas ritualizadas e sem conteúdo real e a infantilização absurda de quem um dia virá a ser adulto, mas que ali, no gag revelador, se encerra numa adolescência prolongada infantilmente até à senilidade.
E o génio de Valentin é duplo: é um especialista da graça verbal, da piada literal levada ao absurdo, de uma profundidade lida na tacanhez do desejo das personagens retratadas, na ambivalente superfície das palavras, mas é também o criador da sua figura e da parceira, Liesl Karlstadt, ambos dedicados ao mundo do cómico, opção de vida e porventura de coincidência entre vocação humana para se ser livre e condição do próprio ser. E essas figuras, Valentin e Liesl, como Chaplin e Keaton, são personagens físicos: o corpo é desde logo uma marca do que são, o corpo é sujeito, ele liberta-se de uma total sujeição ao figurino e também de uma dependência da palavra como se fosse a sua ilustração. Não, o corpo é sujeito e funde-se com a palavra. Este tipo de clown e o seu jogo é já um resultado da modernidade e explora a confrontação entre uma humanidade ainda artesanal, ainda dependente da operacionalidade da mão e das virtudes do polegar oponível e as convenções e maquinismos da sociedade burguesa industrial em ascensão. Estamos na Europa dos anos vinte.
Quando Brecht diz que Valentin é a própria blague é porque dele se solta essa liberdade de quem não vive para contar graças a metro, cada piada cada dólar, mas de quem vive livremente a inadaptação, naquele modo fora de tom que Pirandello descreve no Humorismo, um modo que é ingenuamente acusador das verdades oficiais, do mundo das falsas aparências em que os analfabetos fazem de doutores e em que os poderes são reverenciados e o oportunismo uma regra. Valentin tem essa capacidade que a infância ainda não aculturada e regrada tem, aquela que diz “o rei vai nu” e que fustiga o preconceito, como o nosso Cervantes tão bem estigmatiza no seu Retábulo das maravilhas, um sketch do seu Século de ouro em que faz uma análise “científica” do preconceito como um verdadeiro mecanismo de ilusão colectiva convencionado entre poderes e aparências, o que nunca foi tão actual como hoje, em que domina a chamada sociedade do espectáculo.
Realizar este espectáculo no âmbito de uma parceria com a câmara e num projecto apoiado por programas da Mais Centro (CCRC) é mais que um dever, é um prazer. No coração das Caldas esta Ida ao teatro obrigatório é uma lança no coração do sistema urbano, uma lança para ferir imobilidades rasteiras e conformismos, assim como falsas inovações e pseudo vanguardismos analfabetos.
E agora senhores e senhoras, no Cabaret da Rainha, os actores: a Isabel Lopes, o Victor Santos e o Carlos Borges. Podem crer, é um privilégio. A partir de 29 em cena.
FMR
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quarta-feira, 21 de abril de 2010
anaCrónicas 16
O pedófilo cómico e virtuoso
Molière criou duas figuras que o nosso modo de vida social confirmou como personagens reconhecíveis e sempre em vias de não extinção, isto é, existentes, reais, sempre de boa proa: Tartufo e Alceste, o Misantropo. Se o primeiro é fácil de reencontrar, sob todas as vestes do oportunismo, nas figuras da nossa vida pública, o segundo é mais difícil de entender num tempo, agora, que impõe a visibilidade como prova de existência. Nem me refiro à dimensão dessa prova como expressão mediatizada que a concretize, refiro-me sim a uma dimensão do narcisismo como modo específico da socialização, o que para qualquer Alceste será estranho, mais propenso a uma arrogância associal do que a uma publicitação da sua extrema introversão, exibicionista seja. Não há forma de vaidade mais evidente que o espectáculo da modéstia. Não será o caso de Alceste, a não ser numa pequena parte. Quanto ao Tartufo, será hoje um comportamento aplaudido como uma forma superior do Chico-espertismo, essa criação nacional prima do fado.
Na nossa galeria de tipos não falta a diversidade: do Jardim da ilha, palavra tonitruante e bufão autoritário, inteligência que baste para manter o atraso no progresso devido, a ignorância onde estava e o turismo em alta, com ou sem tsunami, o engenheiro mais esperto da serra, capaz de fazer de pocilgas vivendas ou vice-versa, muito amigo do rei ilhéu, o presidente muito austero de verbo e de maxilar emproado, o Pacheco do círculo quadrado, já ao serviço sistémico-circense ainda andava com o colarinho à Mao, o Marcelo filho do pai dele, sempre em alta, etc., um conjunto de espécimes que só o cómico rotineiro de serviço há décadas supera em capacidade de sobrevivência e poder – o sistema tem estes pilares como estrutura, são os tais pilares da comunidade.
Não se é cómico de ter piada toda a vida, aliás, pode ser-se cómico uma vida inteira. Como profissão. Já ter graça é outra coisa. A anedota é uma vocação nacional e é o reverso da incapacidade da tragédia. Fizemos o Frei Luís e pouco mais, dizem que a Castro. Mesmo a tragédia romântica tem pouco fôlego e nada deve à matriz grega, pouca dada ao que o melodrama exacerba, sentimentos prolongando-se em marés lacrimejantes. A tragédia é outra cosia, é o inelutável após o crime acidental, ou a morte irremediável, ou mesmo o desafio suicidário das hierarquias homicidas, o impossível em debate. Tudo em verbo sublime e sincero, ritmo apoiado nas cadências de inspiração ritual, vindas do tempo e fundo da irracionalidade e da festa.
O grande cómico da República é um daqueles actores que joga no requentado, que não faz um gesto espontâneo, para quem os minutos se contam como dólares. É o que se chama um canastrão, um actor vulgar, um apóstolo da falta de rigor, da laracha e da deixa rasca. Esses, desse tipo, em Portugal, fazem carreira e são incensados. Os espectadores são pouco exigentes e não entendem sequer que, de facto, a verdade, a concentração, o rigor dos textos, a articulação, a dicção, a gestualidade, etc., são o que é constitutivo da cifra estilística, de um contributo verdadeiro pela liberdade, dando o corpo ao manifesto à letra aqui. O que nunca se reveste de balda, de desenrasca e de improvisos de terceira categoria. Mas para quê falar de pérolas?
Quando um proxeneta é homenageado como um campeão da moral e mais, como um libertador dos sentidos, só poderemos temer o juízo da massa, esse poder acéfalo e criminoso. Por omissão ou por pressão. De resto o poder sempre conviveu bem com a crítica fulanizada e sempre se deu mal com a crítica coerente e articulada. O que fez, quando esse modo de vida era vivo, meias tintas com todo o tipo de tráficos, mais carne menos carne, o sucesso da tal revista que, na realidade, nunca foi portuguesa a não ser nas coxas e pernas. Na realidade, essa crítica, só servia de aval à publicidade da própria liberdade de expressão parangonada pela propaganda. A liberdade, essa, é outra coisa, e nada tem com o poder dizer-se o que se quiser, mas tudo tem com a capacidade, estruturada, formada, crítica, culta, de saber dizer porque se sabe ler, descodificar, conhecer as coisas que estão atrás das coisas, como dizia o velho Brecht falando das causas profundas e das evidências enganadoras. E obviamente com a capacidade de indignação e a coragem de dizer. O que também escasseia. E cada vez mais, nesta falta de liberdade crescente, não só pela inexistência do espaço público como ideias em confronto vivo, como pela vocação policial dos de cima e seus lacaios.
De resto as liberdades imaginativas da sensualidade e o erotismo não passam por aqui, muito menos com a caução das diversas formas de impotência inventiva em serviço, as mimético-naturalistas e as que têm pura e simplesmente falta dela, imaginação, o que também sucede.
FMR
Molière criou duas figuras que o nosso modo de vida social confirmou como personagens reconhecíveis e sempre em vias de não extinção, isto é, existentes, reais, sempre de boa proa: Tartufo e Alceste, o Misantropo. Se o primeiro é fácil de reencontrar, sob todas as vestes do oportunismo, nas figuras da nossa vida pública, o segundo é mais difícil de entender num tempo, agora, que impõe a visibilidade como prova de existência. Nem me refiro à dimensão dessa prova como expressão mediatizada que a concretize, refiro-me sim a uma dimensão do narcisismo como modo específico da socialização, o que para qualquer Alceste será estranho, mais propenso a uma arrogância associal do que a uma publicitação da sua extrema introversão, exibicionista seja. Não há forma de vaidade mais evidente que o espectáculo da modéstia. Não será o caso de Alceste, a não ser numa pequena parte. Quanto ao Tartufo, será hoje um comportamento aplaudido como uma forma superior do Chico-espertismo, essa criação nacional prima do fado.
Na nossa galeria de tipos não falta a diversidade: do Jardim da ilha, palavra tonitruante e bufão autoritário, inteligência que baste para manter o atraso no progresso devido, a ignorância onde estava e o turismo em alta, com ou sem tsunami, o engenheiro mais esperto da serra, capaz de fazer de pocilgas vivendas ou vice-versa, muito amigo do rei ilhéu, o presidente muito austero de verbo e de maxilar emproado, o Pacheco do círculo quadrado, já ao serviço sistémico-circense ainda andava com o colarinho à Mao, o Marcelo filho do pai dele, sempre em alta, etc., um conjunto de espécimes que só o cómico rotineiro de serviço há décadas supera em capacidade de sobrevivência e poder – o sistema tem estes pilares como estrutura, são os tais pilares da comunidade.
Não se é cómico de ter piada toda a vida, aliás, pode ser-se cómico uma vida inteira. Como profissão. Já ter graça é outra coisa. A anedota é uma vocação nacional e é o reverso da incapacidade da tragédia. Fizemos o Frei Luís e pouco mais, dizem que a Castro. Mesmo a tragédia romântica tem pouco fôlego e nada deve à matriz grega, pouca dada ao que o melodrama exacerba, sentimentos prolongando-se em marés lacrimejantes. A tragédia é outra cosia, é o inelutável após o crime acidental, ou a morte irremediável, ou mesmo o desafio suicidário das hierarquias homicidas, o impossível em debate. Tudo em verbo sublime e sincero, ritmo apoiado nas cadências de inspiração ritual, vindas do tempo e fundo da irracionalidade e da festa.
O grande cómico da República é um daqueles actores que joga no requentado, que não faz um gesto espontâneo, para quem os minutos se contam como dólares. É o que se chama um canastrão, um actor vulgar, um apóstolo da falta de rigor, da laracha e da deixa rasca. Esses, desse tipo, em Portugal, fazem carreira e são incensados. Os espectadores são pouco exigentes e não entendem sequer que, de facto, a verdade, a concentração, o rigor dos textos, a articulação, a dicção, a gestualidade, etc., são o que é constitutivo da cifra estilística, de um contributo verdadeiro pela liberdade, dando o corpo ao manifesto à letra aqui. O que nunca se reveste de balda, de desenrasca e de improvisos de terceira categoria. Mas para quê falar de pérolas?
Quando um proxeneta é homenageado como um campeão da moral e mais, como um libertador dos sentidos, só poderemos temer o juízo da massa, esse poder acéfalo e criminoso. Por omissão ou por pressão. De resto o poder sempre conviveu bem com a crítica fulanizada e sempre se deu mal com a crítica coerente e articulada. O que fez, quando esse modo de vida era vivo, meias tintas com todo o tipo de tráficos, mais carne menos carne, o sucesso da tal revista que, na realidade, nunca foi portuguesa a não ser nas coxas e pernas. Na realidade, essa crítica, só servia de aval à publicidade da própria liberdade de expressão parangonada pela propaganda. A liberdade, essa, é outra coisa, e nada tem com o poder dizer-se o que se quiser, mas tudo tem com a capacidade, estruturada, formada, crítica, culta, de saber dizer porque se sabe ler, descodificar, conhecer as coisas que estão atrás das coisas, como dizia o velho Brecht falando das causas profundas e das evidências enganadoras. E obviamente com a capacidade de indignação e a coragem de dizer. O que também escasseia. E cada vez mais, nesta falta de liberdade crescente, não só pela inexistência do espaço público como ideias em confronto vivo, como pela vocação policial dos de cima e seus lacaios.
De resto as liberdades imaginativas da sensualidade e o erotismo não passam por aqui, muito menos com a caução das diversas formas de impotência inventiva em serviço, as mimético-naturalistas e as que têm pura e simplesmente falta dela, imaginação, o que também sucede.
FMR
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segunda-feira, 19 de abril de 2010
anaCrónicas 15
O torcicolo atemorizado
Entrei na FNAC da Rua Catarina com o saco da Livraria Latina pleno de literatura fora de época, nem sensacional, nem no top ten, velharias como o Artaud traduzido pelo Urbano e algum material da Contratempo com cheiro a libertinagem, coisa para surtos de êxito em bancadas de feira velha, no seu tempo e se a chuva, que veio para ficar com ou como a Crise (debate a ter), tiver remorsos de tanta chamada para os bombeiros, quase a desistir do voluntariado com as bomba de água a estoirar de marés de excesso aquoso – depois de tanto investimento na floresta, nos helicópteros, nas torres de vigia entre a Lousã e o Açor, o que é necessário agora são mangueiras de fogo para extinguir a água. Que dirão os partidos? E o engenheiro, que proporá?
Com o saco muito discretamente colado à PERNA ESQUERDA, A DA PRÓTESE, verifiquei que os consumidores que ali cirandavam punham olhares de um soslaio apreensivo, como se fosse um suicida islâmico pendurado na minha meia dose de penca judaica – uma ambiguidade que se paga cara. E a câmara de vídeo, as câmaras, deslocavam, à miopia desarmada, intimidando, os seus narizes na direcção do inesperado previsível, focando-o como miras - foram ensinadas ao ponto de farejarem como o cão doutorado em hachiche.
Um saco não é uma T Shirt, nas T Shirt’s a divergência pode vir estampada e fica bem, faz parte da diferença para a troca e saúda-se como um toque de pertença ao mesmo universo subido das T Shirts. Senti-me arcaico, falante de marca com sotaque local. As câmaras vídeo iam gravando a ocorrência numa espécie de directo sem truques. O vírus, a propagar-se, ficou lacrado para a eternidade do capitalismo, num conjunto de planos 3 D contra picados – elas espreitam sempre de cima a estimular o torcicolo.
O saco pôde entrar, mas eu não, preso no terror da heresia e entrando sim, para um interior panicado e pré enfarte, enquanto tropeçava nos próprios sapatos, a esquerda e a direita por um momento presas da fatalidade disléxica, tão criativa noutras circunstâncias. Na barreira de olhares vi por um momento o poder da massa, maior que o poder da massa. Reconheci-o.
De facto, pensei, se todos os que entrarem na FNAC o fizerem com sacos da Latina, os da FNAC correrão o perigo de promover a Latina no território da FNAC – a na FNAC fnaca-se absolutamente e tudo o que tocamos e olhamos fnaca. Fnaca-se e fnaca-se em todos os sorrisos mansos – uma palavra promovida a espectáculo por uns momentos na cozinha do rectangulozinho – num sistema de olhares entrecruzados que distribui a serenidade reflexiva dos fnaqueiros (versão nacional dos fnaquéens para rimar com toureiros, toureiros de lide mansa) em clima de aquisição sem esforço, o penetrar do cartão visando a fenda e não ofuscando com o seu ruído amusical, como outrora o vil metal, o sentimento de unanimidade reflexiva e pacífica que faz as religiões superiores. Este ar concentrado e moderadamente satisfeito – tudo o que é muito dá cabo da saúde - sobe dos livros como um perfume de saberes subtil, decisivo para as posturas, geometrias do corpo entre as estantes e olhares lambe lombadas numa prévia aferição aperitiva de conteúdos.
Quem sabe se a Latina, numa manobra de guerra civil localizada, de posições, como manda a guerrilha clássica aos pobres – onde isso já vai -, não industriou os seus seguidores a entrar de modo numeroso (o contingente dos pobres aumenta de modo exponencial e nada equilibrado ao seu desaparecimento) para dentro das fronteiras da FNAC numa manobra terrorista, essa política da pobreza fanatizada, segundo se diz?
Ao que parece, depois do caso aqui relatado autobiograficamente em tempo real (vulgo documentário, docudrama para falar como o Camilo de Sousa, meu amigo, categoria desviada da objectividade sacrossanta), os Fnaccontrolers propuseram a nacionalização de todos os potenciais suicidas, a fazer com dinheiros do QREN, e fundamentando a coisa nos atentados ao ocidente e ao mercado, a sua alma. Na sequência do caso das burkas este caso promete, dizia a gazeta local em artigo de canto de página, mas de manchete gigante e luminosa.
FMR
Entrei na FNAC da Rua Catarina com o saco da Livraria Latina pleno de literatura fora de época, nem sensacional, nem no top ten, velharias como o Artaud traduzido pelo Urbano e algum material da Contratempo com cheiro a libertinagem, coisa para surtos de êxito em bancadas de feira velha, no seu tempo e se a chuva, que veio para ficar com ou como a Crise (debate a ter), tiver remorsos de tanta chamada para os bombeiros, quase a desistir do voluntariado com as bomba de água a estoirar de marés de excesso aquoso – depois de tanto investimento na floresta, nos helicópteros, nas torres de vigia entre a Lousã e o Açor, o que é necessário agora são mangueiras de fogo para extinguir a água. Que dirão os partidos? E o engenheiro, que proporá?
Com o saco muito discretamente colado à PERNA ESQUERDA, A DA PRÓTESE, verifiquei que os consumidores que ali cirandavam punham olhares de um soslaio apreensivo, como se fosse um suicida islâmico pendurado na minha meia dose de penca judaica – uma ambiguidade que se paga cara. E a câmara de vídeo, as câmaras, deslocavam, à miopia desarmada, intimidando, os seus narizes na direcção do inesperado previsível, focando-o como miras - foram ensinadas ao ponto de farejarem como o cão doutorado em hachiche.
Um saco não é uma T Shirt, nas T Shirt’s a divergência pode vir estampada e fica bem, faz parte da diferença para a troca e saúda-se como um toque de pertença ao mesmo universo subido das T Shirts. Senti-me arcaico, falante de marca com sotaque local. As câmaras vídeo iam gravando a ocorrência numa espécie de directo sem truques. O vírus, a propagar-se, ficou lacrado para a eternidade do capitalismo, num conjunto de planos 3 D contra picados – elas espreitam sempre de cima a estimular o torcicolo.
O saco pôde entrar, mas eu não, preso no terror da heresia e entrando sim, para um interior panicado e pré enfarte, enquanto tropeçava nos próprios sapatos, a esquerda e a direita por um momento presas da fatalidade disléxica, tão criativa noutras circunstâncias. Na barreira de olhares vi por um momento o poder da massa, maior que o poder da massa. Reconheci-o.
De facto, pensei, se todos os que entrarem na FNAC o fizerem com sacos da Latina, os da FNAC correrão o perigo de promover a Latina no território da FNAC – a na FNAC fnaca-se absolutamente e tudo o que tocamos e olhamos fnaca. Fnaca-se e fnaca-se em todos os sorrisos mansos – uma palavra promovida a espectáculo por uns momentos na cozinha do rectangulozinho – num sistema de olhares entrecruzados que distribui a serenidade reflexiva dos fnaqueiros (versão nacional dos fnaquéens para rimar com toureiros, toureiros de lide mansa) em clima de aquisição sem esforço, o penetrar do cartão visando a fenda e não ofuscando com o seu ruído amusical, como outrora o vil metal, o sentimento de unanimidade reflexiva e pacífica que faz as religiões superiores. Este ar concentrado e moderadamente satisfeito – tudo o que é muito dá cabo da saúde - sobe dos livros como um perfume de saberes subtil, decisivo para as posturas, geometrias do corpo entre as estantes e olhares lambe lombadas numa prévia aferição aperitiva de conteúdos.
Quem sabe se a Latina, numa manobra de guerra civil localizada, de posições, como manda a guerrilha clássica aos pobres – onde isso já vai -, não industriou os seus seguidores a entrar de modo numeroso (o contingente dos pobres aumenta de modo exponencial e nada equilibrado ao seu desaparecimento) para dentro das fronteiras da FNAC numa manobra terrorista, essa política da pobreza fanatizada, segundo se diz?
Ao que parece, depois do caso aqui relatado autobiograficamente em tempo real (vulgo documentário, docudrama para falar como o Camilo de Sousa, meu amigo, categoria desviada da objectividade sacrossanta), os Fnaccontrolers propuseram a nacionalização de todos os potenciais suicidas, a fazer com dinheiros do QREN, e fundamentando a coisa nos atentados ao ocidente e ao mercado, a sua alma. Na sequência do caso das burkas este caso promete, dizia a gazeta local em artigo de canto de página, mas de manchete gigante e luminosa.
FMR
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quinta-feira, 8 de abril de 2010
anaCrónicas 13
Cavaco e Bruni
Foi uma piada do Valente numa das crónicas traseiras do Público mas confesso que me ri. Sobre a banalização do escândalo a possibilidade ainda do escândalo. Certamente para consumo nacional, já que todos conhecem a Bruni, até descascada, pois fez por isso, e ninguém conhece o Cavaco, que nunca se descascaria, a não ser por cá. O que dá o sinal da nossa globalização específica: importamos todos os modelos e somos formigas anónimas lá fora. Exceptuando o Mourinho, mas esse é quase inglês e chama-se Mou, vejam no La Repubblica e o Cristiano Ronaldo que é da Madeira. Mas o planeta futebol é o de uma globalização específica e aí fala-se futebolês, o único esperanto quase absoluto, mais extenso que o inglês de trocos. Para nós o Cavaco fugir com a Bruni seria um sobressalto grande e levar-nos-ia por momentos a esquecer o pesadelo da dívida, o que este governo cuida de inculcar como a pior das sombras no nosso juízo perdido, com perseverança e carinho responsáveis - credivelmente. E com quem fugiria o Sarkozy?
FMR
Foi uma piada do Valente numa das crónicas traseiras do Público mas confesso que me ri. Sobre a banalização do escândalo a possibilidade ainda do escândalo. Certamente para consumo nacional, já que todos conhecem a Bruni, até descascada, pois fez por isso, e ninguém conhece o Cavaco, que nunca se descascaria, a não ser por cá. O que dá o sinal da nossa globalização específica: importamos todos os modelos e somos formigas anónimas lá fora. Exceptuando o Mourinho, mas esse é quase inglês e chama-se Mou, vejam no La Repubblica e o Cristiano Ronaldo que é da Madeira. Mas o planeta futebol é o de uma globalização específica e aí fala-se futebolês, o único esperanto quase absoluto, mais extenso que o inglês de trocos. Para nós o Cavaco fugir com a Bruni seria um sobressalto grande e levar-nos-ia por momentos a esquecer o pesadelo da dívida, o que este governo cuida de inculcar como a pior das sombras no nosso juízo perdido, com perseverança e carinho responsáveis - credivelmente. E com quem fugiria o Sarkozy?
FMR
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segunda-feira, 5 de abril de 2010
anaCrónicas 12
Dizia o Marques Mendes há dias - não lhe conheço escândalos, pessoa hábil, ou discreta, e porventura, mais surpreendente ainda, talvez honesta - que a este PSD de Passos Coelho faltavam agora três ou quatro ideias bem escolhidas como causas que se “vendessem”, suponho que ao eleitorado perpétuo da democracia sondagística em que submergimos. Isto é: temos a realidade e esta é composta de temas fracturantes, país real, crise, dívida pública, submarinos a espreitar, personalidade do senhor engenheiro, o caso da “mentira”, a “face oculta”, a licenciatura fast food, etc. , e destas questões há que elencar aquelas que servem, numa dada composição, uma narrativa da vitória do ponto de vista do papel do novo antagonista, com o propósito de destronar o protagonista de serviço em prazo calendarizado – sempre entre eleições regulares, até ver .
Nessa narrativa há que injectar (como com o betão, é a “consistência ou credibilidade” em jogo de responsabilidade versus irresponsabilidade, os da economia e do mesmo, contra os que são supostamente da mudança e pelas pessoas) as 3 ou 4 ideias alimentadoras da ideia de que são ideias, justamente aquelas que podem render uma vitória, a vitória dessas ideias, já que ninguém se pode apresentar com o rosto da imparcialidade absoluta, ou da neutralidade, por muito que seja do tal centro – o centro não passa de uma ilusão fictícia e de um jogo em política, ou a própria política como emprego na medida em que no centro podemos estar sempre com uns e com outros. Ao centro virá até o Portas, que já lá esteve mais ou menos disfarçado e lá regressará quando for preciso.
Ora estamos portanto diante daquele absoluto do marketing político que ignora a realidade e que escolhe uma dada reformatação narrativa da ficção política (e da realidade, cujos aspectos relevantes se tornam mais ou menos visíveis e assim usados conforme convenha à conjuntura narrativa) como novela, de modo a que, nessa narrativa enquadrada pelas 3/4 ideias causas, Passos Coelho possa derrotar José Sócrates por ser melhor e mais capaz naquela definição da luta de galos que passa pelos perfis das revistas de fim-de-semana – mais ou menos simpático, mais ou menos bem vestido, mais ou menos preparado, mais ou menos inglês, técnico ou do outro, mais ou menos sensatez, mais ou menos coragem de decidir e por aí adiante.
A simplificação da realidade para consumo das massas enquanto novelização da “política” nunca esteve tão clara como nos dias que correm. As tais ideias, 3 ou 4 - mais que isso surge a indesejada complexidade, sem leitura para os papalvos, nós – têm que ser bem escolhidas. Por exemplo: 1ª ideia: Passos Coelho nada deve à dívida pública, é um inocente; 2ª ideia: é tão laico como Sócrates, não combaterá o aborto; 3º ideia: apesar de tão liberal quanto Sócrates até se colocará contra certas privatizações de sectores estratégicos, por exemplo os CTT e parte da Caixa; 4ª ideia: ao contrário de Sócrates não será um Chefe que faz o deserto à sua volta, pelo contrário, à sua volta rimarão as outras tendências, até os barões; E basta, cuidado com a saturação do espaço mediático. Tudo daqui, deste elenco ideal, se poderá inferir.
Projecto, programa, sistema articulado de propostas analítico-prospectivas para quê? A realidade depois dá-lhes a volta, ou não é assim com o mercado e mais os seus humores irracionais e bolsistas? E depois quem é que sabe fazer um programa com pés e cabeça? - Justamente o que não interessa porque é teórico e complica (e até pode revelar umas verdades mais insuportáveis que o Calvário da dívida, essa cruz que todos carregamos perante os novos romanos, os banqueiros a quem devemos e as suas empresas de rating – é assim não é, rating?) e o que é necessário é pragmatismo e eficácia. Andar para a frente. E há sempre aqueles chapéus de clarividência providente: “modernidade”, “desenvolvimento”, “progresso”, e até “cidadania”, e recuando um pouco “os portugueses conhecem-me”, que resulta sempre e é mais emotivo que dizer “somos europeus” – dizem que somos.
O povão, entre estes colossos homéricos das Beiras, só os vê a eles, mancha única, e com esta fulanização narrativa dramatizada da política obviamente que a realidade se esfuma – quem vê heróis, negativos e positivos, só vê a nuvem e do destino, do porvir, perde o fio e a meada, entra na cabotagem. Nada mais eficaz portanto do que a política espectáculo. E não será tanto o espectáculo em si, mas, antes os enredos que ligam os momentos espectaculares. Mais dramáticos e pessoais, menos dramáticos e mais aproximados do real, o que eles chamam de economia. Mesmo a economia está repleta, nas supostas análises permanentemente publicitadas via opinião em feudo próprio ao serviço do sistema, de terminologia psicológica: a confiança, como dizem, tornou-se um elemento chave das descrições da Crise centradas no batimento pendular e “cardíaco” desse monstro imprevisível chamado sistema bolsista, filho directo da soma da interacção das irracionalidades em confronto no tal mercado globalizado – a bolsa é um totobola dos muito ricos com bases seguras para quem tem a informação necessária na hora, mete muita espionagem e menos faro, embora pareça metade instinto – falo da costela jogo. É muita emoção junta e como sabemos chega a provocar suicídios em série – em 1929 foi assim, agora não se repetiu, foi menos dramático – eis uma tese de doutoramento.
O que estes senhores não prevêem é que a realidade não é dominável por baias de nenhum tipo e não se pode ocultar o que não se revela por fazê-lo táctica e tacanhamente, como não se pode prever o modo como de repente uma nova questão – e imprevista pois – toma conta dos fluxos diários de realidade virtualizada e objectiva na marcha coomum. Sabemos aliás que muito do que acontece hoje tem muito a ver com um aumento exponencial das imprevisibilidades, justamente por efeito da crise, essa tragédia multiplicadora de dramas e precariedades que são a fonte de maior imprevisível.
Creio, no entanto, que o problema do Passos vai ser o Coelho. E desse ele não se livra. Só com uma auto-mutilação nominal. Claro que dava mais jeito ao PSD que se chamasse Passos Jack ou mesmo Passos Carneiro. Ainda vão encontrar estranhas conexões no Coelho do Passos. Discutam isso no Congresso. Ele há mais um não é? Será o das quatro ideias?
FMR
Nessa narrativa há que injectar (como com o betão, é a “consistência ou credibilidade” em jogo de responsabilidade versus irresponsabilidade, os da economia e do mesmo, contra os que são supostamente da mudança e pelas pessoas) as 3 ou 4 ideias alimentadoras da ideia de que são ideias, justamente aquelas que podem render uma vitória, a vitória dessas ideias, já que ninguém se pode apresentar com o rosto da imparcialidade absoluta, ou da neutralidade, por muito que seja do tal centro – o centro não passa de uma ilusão fictícia e de um jogo em política, ou a própria política como emprego na medida em que no centro podemos estar sempre com uns e com outros. Ao centro virá até o Portas, que já lá esteve mais ou menos disfarçado e lá regressará quando for preciso.
Ora estamos portanto diante daquele absoluto do marketing político que ignora a realidade e que escolhe uma dada reformatação narrativa da ficção política (e da realidade, cujos aspectos relevantes se tornam mais ou menos visíveis e assim usados conforme convenha à conjuntura narrativa) como novela, de modo a que, nessa narrativa enquadrada pelas 3/4 ideias causas, Passos Coelho possa derrotar José Sócrates por ser melhor e mais capaz naquela definição da luta de galos que passa pelos perfis das revistas de fim-de-semana – mais ou menos simpático, mais ou menos bem vestido, mais ou menos preparado, mais ou menos inglês, técnico ou do outro, mais ou menos sensatez, mais ou menos coragem de decidir e por aí adiante.
A simplificação da realidade para consumo das massas enquanto novelização da “política” nunca esteve tão clara como nos dias que correm. As tais ideias, 3 ou 4 - mais que isso surge a indesejada complexidade, sem leitura para os papalvos, nós – têm que ser bem escolhidas. Por exemplo: 1ª ideia: Passos Coelho nada deve à dívida pública, é um inocente; 2ª ideia: é tão laico como Sócrates, não combaterá o aborto; 3º ideia: apesar de tão liberal quanto Sócrates até se colocará contra certas privatizações de sectores estratégicos, por exemplo os CTT e parte da Caixa; 4ª ideia: ao contrário de Sócrates não será um Chefe que faz o deserto à sua volta, pelo contrário, à sua volta rimarão as outras tendências, até os barões; E basta, cuidado com a saturação do espaço mediático. Tudo daqui, deste elenco ideal, se poderá inferir.
Projecto, programa, sistema articulado de propostas analítico-prospectivas para quê? A realidade depois dá-lhes a volta, ou não é assim com o mercado e mais os seus humores irracionais e bolsistas? E depois quem é que sabe fazer um programa com pés e cabeça? - Justamente o que não interessa porque é teórico e complica (e até pode revelar umas verdades mais insuportáveis que o Calvário da dívida, essa cruz que todos carregamos perante os novos romanos, os banqueiros a quem devemos e as suas empresas de rating – é assim não é, rating?) e o que é necessário é pragmatismo e eficácia. Andar para a frente. E há sempre aqueles chapéus de clarividência providente: “modernidade”, “desenvolvimento”, “progresso”, e até “cidadania”, e recuando um pouco “os portugueses conhecem-me”, que resulta sempre e é mais emotivo que dizer “somos europeus” – dizem que somos.
O povão, entre estes colossos homéricos das Beiras, só os vê a eles, mancha única, e com esta fulanização narrativa dramatizada da política obviamente que a realidade se esfuma – quem vê heróis, negativos e positivos, só vê a nuvem e do destino, do porvir, perde o fio e a meada, entra na cabotagem. Nada mais eficaz portanto do que a política espectáculo. E não será tanto o espectáculo em si, mas, antes os enredos que ligam os momentos espectaculares. Mais dramáticos e pessoais, menos dramáticos e mais aproximados do real, o que eles chamam de economia. Mesmo a economia está repleta, nas supostas análises permanentemente publicitadas via opinião em feudo próprio ao serviço do sistema, de terminologia psicológica: a confiança, como dizem, tornou-se um elemento chave das descrições da Crise centradas no batimento pendular e “cardíaco” desse monstro imprevisível chamado sistema bolsista, filho directo da soma da interacção das irracionalidades em confronto no tal mercado globalizado – a bolsa é um totobola dos muito ricos com bases seguras para quem tem a informação necessária na hora, mete muita espionagem e menos faro, embora pareça metade instinto – falo da costela jogo. É muita emoção junta e como sabemos chega a provocar suicídios em série – em 1929 foi assim, agora não se repetiu, foi menos dramático – eis uma tese de doutoramento.
O que estes senhores não prevêem é que a realidade não é dominável por baias de nenhum tipo e não se pode ocultar o que não se revela por fazê-lo táctica e tacanhamente, como não se pode prever o modo como de repente uma nova questão – e imprevista pois – toma conta dos fluxos diários de realidade virtualizada e objectiva na marcha coomum. Sabemos aliás que muito do que acontece hoje tem muito a ver com um aumento exponencial das imprevisibilidades, justamente por efeito da crise, essa tragédia multiplicadora de dramas e precariedades que são a fonte de maior imprevisível.
Creio, no entanto, que o problema do Passos vai ser o Coelho. E desse ele não se livra. Só com uma auto-mutilação nominal. Claro que dava mais jeito ao PSD que se chamasse Passos Jack ou mesmo Passos Carneiro. Ainda vão encontrar estranhas conexões no Coelho do Passos. Discutam isso no Congresso. Ele há mais um não é? Será o das quatro ideias?
FMR
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quarta-feira, 31 de março de 2010
anaCrónicas 11
Ele há dois tipos de cinemas: aqueles em que se comem pipocas e aqueles em que se batem punhetas. O primeiro tipo de salas, o das pipocas, é o espaço acústico em que os pipoqueiros produzem um som do tipo herbívoro que busca a unanimidade de um movimento maxilar compassado para construir uma banda comum, e é também o espaço em que os mesmos pipoqueiros interiorizam o som que produzem para fora, pois o interior do corpo é também um espaço acústico que recebe dentro o que se faz para fora, o que os ouvidos, entradas de som, provam à evidência, pois quando não ouvem para fora estão absolutamente ocupados para dentro nessa função de sondar as músicas interiores – acontece muito.
Infelizmente nem todos os comedores de pipocas estão suficientemente adestrados para o fazerem ao mesmo tempo no mesmo lugar como a sublime experiência da unanimidade referida – chegados aí, os poucos que o sabem fazer, os iniciados, entram no céu da comunhão maxilar, só comparável ao êxtase inexplicável do milagre em directo – só os da católica valem, os outros são falsos. Claro que a pipoca, tendo a dupla condição de criar som externo e interno, vai mais longe: o movimento estético-mandibular pode fundir-se com o gesto criador numa espécie de big bang da invenção da partícula estética. A cavidade bucal funciona, na trituração, como um verdadeiro acelerador de partículas do universo sensível.
Já a punheta pede um cinema específico em matéria fílmica e em característica de sala. Neste tipo de sala convém usar guarda-chuva porque esta cinefilia praticante funciona como actividade sexual de tipo aberto, cujo limite é apenas orgânico e a fantasia só comparável com a poética amorosa dos símios.
Entretanto, a diferença radical entre o punheteiro cinéfilo e o pipoqueiro está em que tendo ambos uma intervenção clara no curso da acção fílmica, o primeiro exprime-se para o exterior, produzindo opinião clara sob a forma de uma secreção húmida e identitária e o segundo só o faz para dentro, numa atitude mais moderada e sensata. O que normalmente se traduz, para o pipoqueiro na preferência pelo filme familiar, divórcio mais casamento, mais filhos, mais divórcio e casamento, continuando por aí, e para o punheteiro num tipo de cinema mais próximo da dança do varão, essa expressão superior da dança contemporânea que agora é muito comum nos workshops para mães de família e que se generalizou depois do conhecido caso “as mães de Bragança”.
FMR
Infelizmente nem todos os comedores de pipocas estão suficientemente adestrados para o fazerem ao mesmo tempo no mesmo lugar como a sublime experiência da unanimidade referida – chegados aí, os poucos que o sabem fazer, os iniciados, entram no céu da comunhão maxilar, só comparável ao êxtase inexplicável do milagre em directo – só os da católica valem, os outros são falsos. Claro que a pipoca, tendo a dupla condição de criar som externo e interno, vai mais longe: o movimento estético-mandibular pode fundir-se com o gesto criador numa espécie de big bang da invenção da partícula estética. A cavidade bucal funciona, na trituração, como um verdadeiro acelerador de partículas do universo sensível.
Já a punheta pede um cinema específico em matéria fílmica e em característica de sala. Neste tipo de sala convém usar guarda-chuva porque esta cinefilia praticante funciona como actividade sexual de tipo aberto, cujo limite é apenas orgânico e a fantasia só comparável com a poética amorosa dos símios.
Entretanto, a diferença radical entre o punheteiro cinéfilo e o pipoqueiro está em que tendo ambos uma intervenção clara no curso da acção fílmica, o primeiro exprime-se para o exterior, produzindo opinião clara sob a forma de uma secreção húmida e identitária e o segundo só o faz para dentro, numa atitude mais moderada e sensata. O que normalmente se traduz, para o pipoqueiro na preferência pelo filme familiar, divórcio mais casamento, mais filhos, mais divórcio e casamento, continuando por aí, e para o punheteiro num tipo de cinema mais próximo da dança do varão, essa expressão superior da dança contemporânea que agora é muito comum nos workshops para mães de família e que se generalizou depois do conhecido caso “as mães de Bragança”.
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sexta-feira, 19 de março de 2010
anaCrónicas 10
Dizia o penúltimo Ministro da Cultura, o jurista Pinto Ribeiro, que Pessoa valia em dólares, e em bens transaccionáveis, mais que aquilo que as acções da PT no Brasil iam lucrando. E dizia isto a propósito de algo muito na moda na ficção de uma política dedicada à internacionalização da cultura, algo inexistente, como é inexistente uma visão política da utilidade social da literatura ou mesmo uma política do livro digna do nome – não que não existam pessoas dedicadas ao livro e à leitura.
Pessoa dizia abrindo novos mundos ao mundo e referindo-se o Ministro, creio, ao todo, à obra, mas provavelmente mais que à obra, à fama, isto é, ao resultado da conversão do mito em negócio possível, isto é, a pessoa, mais a obra, mais as frases célebres, mais o esoterismo e os heterónimos, mais o desassocego, corpus e personagem indefiníveis mas certamente mito transformável, na versão simplificada e à mão de abrir a boca e dizer, num qualquer marketing de campanha necessária afirmado numa paisagem qualquer, sendo que ele, o Ministro, seria o inteligente que ia pôr isso tudo a mexer, pioneiro da exportação de Pessoa numa escala intercontinental e a caminho de global, já que no Brasil há um gosto de Pessoa reconhecível e Pessoa seria um garante do nível subido da transacção e da internacionalização – diria Pessoa e ao pronunciar da palavra mágica, diante dos olhos surgiria um abre-te sésamo de possibilidades tendo como consequência a subida das acções portugalo-linguísticas na Bolsa de Nova Iorque.
Estávamos a entrar no Brasil das grandes empresas e no mundo dos grandes negócios – muitos anos depois do Caminha ter visto as partes vergonhosas das Índias de um modo tão natural que deu início a uma literatura erótico na carta crónica escrita – financeiros e portanto vá lá um bocadinho de Pessoa para dar substância espiritual, qual folha de rosto das relações que se esboroa com as primeiras brisas de desentendimento, ao terreno árido do investimento inteligente dos nossos capitalistas do sector público e privado no país do maior número de falantes da nossa língua – ou será a língua deles? Ou mesmo a mesma e outras?
Acentuando as Lágrimas de Portugal mais de que Chuva Oblíqua, O Marinheiro mais que A Tabacaria, ou numa outra vertente, mais eficaz, vendendo melhor as fotos do atravessamento distraído da Rua dos Douradores, ou da Rua Augusta, ou da Prata, teremos sempre um Pessoa qualquer mais manipulável e consumível. Poderemos mesmo dar a conhecer apenas as cartas a Ofélia. O outro não é comercializável porque não é possível de sujeitar seja a que marketing for. É irredutível a qualquer classificação e não pode ser dado a conhecer a não ser na impossibilidade de uma definição. Só o fluir da vida e da obra se pode suster nas suas contradições e nunca como qualquer coisa que se reduza seja a que complexo signo for.
Veio isto a propósito de um Ministro que ia abrir os caminhos da modernidade na cultura ao lado dos caminhos da modernidade que o Primeiro já abrira na tecnologia. Eu também quero um moinho de vento a soprar-me energia renovável na vontade de progresso. Finalmente o Quixote deixou de ter visões, elas são reais. O que certamente se segue, como marketing ministerial, será a exportação de estátuas do Pessoa versão Chiado, curtidas em plexiglás, um Pessoa completamente transparente.
FMR
Pessoa dizia abrindo novos mundos ao mundo e referindo-se o Ministro, creio, ao todo, à obra, mas provavelmente mais que à obra, à fama, isto é, ao resultado da conversão do mito em negócio possível, isto é, a pessoa, mais a obra, mais as frases célebres, mais o esoterismo e os heterónimos, mais o desassocego, corpus e personagem indefiníveis mas certamente mito transformável, na versão simplificada e à mão de abrir a boca e dizer, num qualquer marketing de campanha necessária afirmado numa paisagem qualquer, sendo que ele, o Ministro, seria o inteligente que ia pôr isso tudo a mexer, pioneiro da exportação de Pessoa numa escala intercontinental e a caminho de global, já que no Brasil há um gosto de Pessoa reconhecível e Pessoa seria um garante do nível subido da transacção e da internacionalização – diria Pessoa e ao pronunciar da palavra mágica, diante dos olhos surgiria um abre-te sésamo de possibilidades tendo como consequência a subida das acções portugalo-linguísticas na Bolsa de Nova Iorque.
Estávamos a entrar no Brasil das grandes empresas e no mundo dos grandes negócios – muitos anos depois do Caminha ter visto as partes vergonhosas das Índias de um modo tão natural que deu início a uma literatura erótico na carta crónica escrita – financeiros e portanto vá lá um bocadinho de Pessoa para dar substância espiritual, qual folha de rosto das relações que se esboroa com as primeiras brisas de desentendimento, ao terreno árido do investimento inteligente dos nossos capitalistas do sector público e privado no país do maior número de falantes da nossa língua – ou será a língua deles? Ou mesmo a mesma e outras?
Acentuando as Lágrimas de Portugal mais de que Chuva Oblíqua, O Marinheiro mais que A Tabacaria, ou numa outra vertente, mais eficaz, vendendo melhor as fotos do atravessamento distraído da Rua dos Douradores, ou da Rua Augusta, ou da Prata, teremos sempre um Pessoa qualquer mais manipulável e consumível. Poderemos mesmo dar a conhecer apenas as cartas a Ofélia. O outro não é comercializável porque não é possível de sujeitar seja a que marketing for. É irredutível a qualquer classificação e não pode ser dado a conhecer a não ser na impossibilidade de uma definição. Só o fluir da vida e da obra se pode suster nas suas contradições e nunca como qualquer coisa que se reduza seja a que complexo signo for.
Veio isto a propósito de um Ministro que ia abrir os caminhos da modernidade na cultura ao lado dos caminhos da modernidade que o Primeiro já abrira na tecnologia. Eu também quero um moinho de vento a soprar-me energia renovável na vontade de progresso. Finalmente o Quixote deixou de ter visões, elas são reais. O que certamente se segue, como marketing ministerial, será a exportação de estátuas do Pessoa versão Chiado, curtidas em plexiglás, um Pessoa completamente transparente.
FMR
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quarta-feira, 17 de março de 2010
anaCrónicas 9
Não se escreve em definitivo sobre nada. E a experimentação na escrita não deixa de ser uma experimentação dos conceitos ou da matéria que para lá caminhe entre o informe e a forma – não há como a escrita para pensar e não há pensar que não seja ficção. Falou o José Gil, na última aula, que venho glosando numa espécie de vontade de ser eco, do risco como pensamento, isto é, de que pensamento e risco seriam sinónimos. Tenho andado a tentar perceber isso. Uma coisa acho que entendi: as teorias cheias de consistência – e nelas incluo as plenas de inconsistência, a medida contrária que afirma a irracionalidade mas não explica as cidades nem a romanização por exemplo, menos ainda o pão e circo, o canibalismo e outras façanhas humanas consistentes e constitutivas do ser, como também o extermínio selectivo – são formas de esquivar ao risco.
Quem teoriza no arame faz uma coisa que o teórico consistente não é capaz de fazer.Olhando-se não se reconhece na imagem sempre movente e aí talvez escape ao narcisismo, doença destes tempos de filhos únicos e protecções materno-paternais ansiosas.
A imprecisão do que se quer fixar é uma constante e o desejo de forma, outra. Quem, como se diz, tem os pés na terra, diante do bitoque de que fala o Gil, esquece o resto e converte-o em entretenimento. Começa polémica e risco o que começa e se foca em qualquer coisa discernível e termina culinário. Estes últimos, os dos pés na terra, são muito úteis como polícias. Os outros não têm finalidade. São mesmo inúteis. Talvez aí comece qualquer coisa.
FMR
Quem teoriza no arame faz uma coisa que o teórico consistente não é capaz de fazer.Olhando-se não se reconhece na imagem sempre movente e aí talvez escape ao narcisismo, doença destes tempos de filhos únicos e protecções materno-paternais ansiosas.
A imprecisão do que se quer fixar é uma constante e o desejo de forma, outra. Quem, como se diz, tem os pés na terra, diante do bitoque de que fala o Gil, esquece o resto e converte-o em entretenimento. Começa polémica e risco o que começa e se foca em qualquer coisa discernível e termina culinário. Estes últimos, os dos pés na terra, são muito úteis como polícias. Os outros não têm finalidade. São mesmo inúteis. Talvez aí comece qualquer coisa.
FMR
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terça-feira, 16 de março de 2010
anaCrónicas 8
Glosando o José Gil que falou de cidades inteligentes numa entrevista a propósito da sua última aula.
Será uma cidade inteligente a que cria uma fronteira entre a cidade e o rio?
Será uma cidade inteligente a que produz a amálgama humana indiferenciada nas horas de ponta ao ponto do corpo automático, da mecânica desistente, do cérebro embotado de esforço resistente?
Será uma cidade inteligente a que tem milhares de casas desabitadas e milhares de cidadãos sem habitação condigna?
Será uma cidade inteligente a que está sempre em obras e que sem obras não vive porque certamente já não se revê nem conhece?
Será uma cidade inteligente a que vê cair casas antigas como cogumelos nascendo em período de humidades férteis?
Será uma cidade inteligente a que esvazia humanamente os centros históricos, deixando a pedra bela entregue à corrosão do vazio?
Será uma cidade inteligente a que não cria uma vida cultural integrada e exposta à escolha inteligente de cada um no trajecto de vida diária dos seus afazeres e pausas?
Será uma cidade inteligente a que vive mais do marketing que a promove do que da vida que cria e confunde vida com “animação”(insuflada ginástica autárquica de flores de plástico)?
Será uma cidade inteligente a que multiplica parques de estacionamento ao ponto de caminharmos para uma cidade dos automóveis mais do que para uma cidade das pessoas?
Será uma cidade inteligente a que necessita da multiplicação dos policiamentos na rua?
Será uma cidade inteligente a que a qualquer quantidade de água responde com a multiplicação dos lagos espontâneos a fazer de nós primatas anfíbios?
Será uma cidade inteligente a que multiplica os signos de uma tradição vazia para turista ver, mais logotípica que vida própria?
Será uma cidade inteligente a que não irradia o ruído interminável da primeira ponte, ruído dos rodados sobre a conhecida grelha metálica, a multiplicar a agressão sonora constante pela bacia fora do rio que o reflecte em toda a cidade ribeira?
E onde uma cidade dos afectos expansíveis? Do prazer da polémica em longos trajectos de silêncio feitos a pé? Dos passeios sem limite que não sejam os passeios determinados como passeios numa lógica mais de zoo humano que de liberdade cívica e de passos errantes? Uma cidade em que a vida se misture com a inteligência criativa e dela se não distinga como o próprio prazer que se cria numa nova arquitectura de relações surpreendentes.
Será uma cidade inteligente a que não permite a inteligência, mas produz a irritabilidade e, por assim dizer, legitima a cólera e o atropelo constantes?
E onde há cidades inteligentes? Elas existem. Já vimos grandes metrópoles em que o espaço para respirar é um espaço real e o fluxo da vida não produz constantemente o registo agressivo e xenófobo.
Valha-nos certamente o Bristish Bar, onde o tremoço ainda faz bandeira e a polémica vital é uma postura de todas as famílias que o frequentam.
FMR
Será uma cidade inteligente a que cria uma fronteira entre a cidade e o rio?
Será uma cidade inteligente a que produz a amálgama humana indiferenciada nas horas de ponta ao ponto do corpo automático, da mecânica desistente, do cérebro embotado de esforço resistente?
Será uma cidade inteligente a que tem milhares de casas desabitadas e milhares de cidadãos sem habitação condigna?
Será uma cidade inteligente a que está sempre em obras e que sem obras não vive porque certamente já não se revê nem conhece?
Será uma cidade inteligente a que vê cair casas antigas como cogumelos nascendo em período de humidades férteis?
Será uma cidade inteligente a que esvazia humanamente os centros históricos, deixando a pedra bela entregue à corrosão do vazio?
Será uma cidade inteligente a que não cria uma vida cultural integrada e exposta à escolha inteligente de cada um no trajecto de vida diária dos seus afazeres e pausas?
Será uma cidade inteligente a que vive mais do marketing que a promove do que da vida que cria e confunde vida com “animação”(insuflada ginástica autárquica de flores de plástico)?
Será uma cidade inteligente a que multiplica parques de estacionamento ao ponto de caminharmos para uma cidade dos automóveis mais do que para uma cidade das pessoas?
Será uma cidade inteligente a que necessita da multiplicação dos policiamentos na rua?
Será uma cidade inteligente a que a qualquer quantidade de água responde com a multiplicação dos lagos espontâneos a fazer de nós primatas anfíbios?
Será uma cidade inteligente a que multiplica os signos de uma tradição vazia para turista ver, mais logotípica que vida própria?
Será uma cidade inteligente a que não irradia o ruído interminável da primeira ponte, ruído dos rodados sobre a conhecida grelha metálica, a multiplicar a agressão sonora constante pela bacia fora do rio que o reflecte em toda a cidade ribeira?
E onde uma cidade dos afectos expansíveis? Do prazer da polémica em longos trajectos de silêncio feitos a pé? Dos passeios sem limite que não sejam os passeios determinados como passeios numa lógica mais de zoo humano que de liberdade cívica e de passos errantes? Uma cidade em que a vida se misture com a inteligência criativa e dela se não distinga como o próprio prazer que se cria numa nova arquitectura de relações surpreendentes.
Será uma cidade inteligente a que não permite a inteligência, mas produz a irritabilidade e, por assim dizer, legitima a cólera e o atropelo constantes?
E onde há cidades inteligentes? Elas existem. Já vimos grandes metrópoles em que o espaço para respirar é um espaço real e o fluxo da vida não produz constantemente o registo agressivo e xenófobo.
Valha-nos certamente o Bristish Bar, onde o tremoço ainda faz bandeira e a polémica vital é uma postura de todas as famílias que o frequentam.
FMR
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sexta-feira, 12 de março de 2010
anaCrónicas 7
Um conhecido meu, dirigente do PS – conheci-o, boémio e marxista, nas tascas de Roma – contava-me aqui há uns anos que, no seu partido, os votos se compravam. E de duas maneiras: uma, era essa forma conhecida de pagar as quotas de militantes passivos, verdadeiramente não praticantes, ressuscitados para efeito votante em cada acto a preço de saldo votando no que fosse sinalizado pelos mandantes, a outra, complementar, era a de vender o próprio lugar na lista – ou melhor, comprar – dando-me como exemplo, se bem me lembro, os oito mil contos (na moeda antiga é mais nítido) que teria custado um lugar europeu. Não sei se era ficção, se era luta interna, se era um golpe baixo – creio que no interior dos partidos a Técnica política dos golpes baixos é mesmo única – ou se era mesmo verdade. O que é facto é que me disse isto e que me referiu que a coisa se passava lá numa terrinha longínqua, na serra. O que é facto é que os partidos, esse primeiro alicerce das democracias, são realidades opacas, escondidas, não escrutináveis e que dentro deles se passam coisas inomináveis e permanentemente escondidas, financeira e humanamente inadmissíveis – aliás os partidos são definidos por Umberto Cerroni, no seu magnífico livro, Teoria do partido Político, como partidos de interesses, partidos empresa, tendo desaparecido, corpo em agonia lenta, o partido de ideais.
Aquilo que deveria ser objectiva e publicamente observável como uma prática da transparência, por exemplo os processos eleitorais internos (já que são candidatos ao poder governativo, geral e são subvencionados por dinheiros públicos) não é senão um jogo escondido entre grupos de poder à procura da conquista desse primeiro poder, a caminho da conquista do poder político governativo e na sua sequência, do conjunto dos poderes. Ninguém duvida que é nos grupos partidários, muitos deles bem colocados nas grandes empresas e no sistema bancário, numa sequência organizativa transversal, que todas as trocas e baldrocas se combinam e conspiram, como ninguém duvida que são grupos, partidários e interpartidários, que dispõem do stock público de cargos apetecíveis como moeda de troca para todo o tipo de jogos de poder e benesses.
Nunca isso foi tão claro, como nunca foi tão clara a impotência das diversas justiças, dos tribunais às polícias de investigação, para repor a democracia nas suas verdadeiras regras de verdade e equilíbrio, que, mesmo nunca sendo uma realidade finalizada – a utopia democrática como perfeição igualitária e pureza transparente -, será tendencialmente uma realidade mais democrática numas conjunturas do que noutras – temos hoje saudades das chamadas social-democracias, reais certamente, por estranho que pareça. O que tem que se sentir é que prevalece a democracia no sistema e não o contrário, a corrupção e o abuso de poder como regra.
A chegada de Hitler ao poder relativizou, para sempre, o sistema do voto em democracia. Também – também, reparem - pelo voto, foi o caso, se caminhou para o campo de concentração e de extermínio. A questão do voto não está só em quem se vota, como sabemos hábil na arte do disfarce (Mussolini foi socialista), mas também no condicionamento ideológico do votante, e as ideologias são amálgamas incontroláveis, preconceito arreigado e estruturado sob a forma de potencial violência sectária e burocrática, de uniformidade de olhares, de prática social monstruosa tida como normal.
Se a justiça funcionasse a classe política seria outra, a virtude premiada e o mérito um bem reconhecido. Em Itália temos o exemplo caricatural, brutal no traço grosso, do que cá sucede. É falso que vivamos em democracia, vivemos num simulacro de democracia, numa amputação particularmente grave nesta conjuntura, porque na realidade as liberdades, culturalmente expressas numa espiritualidade difusa e laica, reguladora e vigilante qualificadamente como pressão de uma maioria esclarecida, não são poderes inscritos numa sociedade cada vez mais fechada a transformações que não conduzam ao mesmo e que, sob o paleio da igualdade de oportunidades, vem construindo o fosso, a discrepância, uma nova sociedade: a dos condomínios versus favelas, a das massas fast-fúdicas e absolutamente expostas na sua vida nua versus elites intocáveis e sempre protegidas pelos seguranças privados.
Na Índia chamam intocáveis aqueles que no fundo da escala não têm sequer direito a estar num mesmo espaço com outros, nem sequer a olhá-los e qualquer um que não seja intocável pode agredir um intocável. Por cá os Intocáveis vivem nas quintas das Marinhas, frequentam colégios privados de renda impossível para os demais e na altura devida são empregados nos grandes bancos em que os papás são grandes accionistas e administradores. E não importa que tenham subido a pulso ou que já lá estivessem – o mérito, nem a ética, são qualidades intrínsecas do chamado sucesso -, importa que servem, num caso e noutro, a regra da perpetuação do abismo fracturante.
Fernando Mora Ramos
Aquilo que deveria ser objectiva e publicamente observável como uma prática da transparência, por exemplo os processos eleitorais internos (já que são candidatos ao poder governativo, geral e são subvencionados por dinheiros públicos) não é senão um jogo escondido entre grupos de poder à procura da conquista desse primeiro poder, a caminho da conquista do poder político governativo e na sua sequência, do conjunto dos poderes. Ninguém duvida que é nos grupos partidários, muitos deles bem colocados nas grandes empresas e no sistema bancário, numa sequência organizativa transversal, que todas as trocas e baldrocas se combinam e conspiram, como ninguém duvida que são grupos, partidários e interpartidários, que dispõem do stock público de cargos apetecíveis como moeda de troca para todo o tipo de jogos de poder e benesses.
Nunca isso foi tão claro, como nunca foi tão clara a impotência das diversas justiças, dos tribunais às polícias de investigação, para repor a democracia nas suas verdadeiras regras de verdade e equilíbrio, que, mesmo nunca sendo uma realidade finalizada – a utopia democrática como perfeição igualitária e pureza transparente -, será tendencialmente uma realidade mais democrática numas conjunturas do que noutras – temos hoje saudades das chamadas social-democracias, reais certamente, por estranho que pareça. O que tem que se sentir é que prevalece a democracia no sistema e não o contrário, a corrupção e o abuso de poder como regra.
A chegada de Hitler ao poder relativizou, para sempre, o sistema do voto em democracia. Também – também, reparem - pelo voto, foi o caso, se caminhou para o campo de concentração e de extermínio. A questão do voto não está só em quem se vota, como sabemos hábil na arte do disfarce (Mussolini foi socialista), mas também no condicionamento ideológico do votante, e as ideologias são amálgamas incontroláveis, preconceito arreigado e estruturado sob a forma de potencial violência sectária e burocrática, de uniformidade de olhares, de prática social monstruosa tida como normal.
Se a justiça funcionasse a classe política seria outra, a virtude premiada e o mérito um bem reconhecido. Em Itália temos o exemplo caricatural, brutal no traço grosso, do que cá sucede. É falso que vivamos em democracia, vivemos num simulacro de democracia, numa amputação particularmente grave nesta conjuntura, porque na realidade as liberdades, culturalmente expressas numa espiritualidade difusa e laica, reguladora e vigilante qualificadamente como pressão de uma maioria esclarecida, não são poderes inscritos numa sociedade cada vez mais fechada a transformações que não conduzam ao mesmo e que, sob o paleio da igualdade de oportunidades, vem construindo o fosso, a discrepância, uma nova sociedade: a dos condomínios versus favelas, a das massas fast-fúdicas e absolutamente expostas na sua vida nua versus elites intocáveis e sempre protegidas pelos seguranças privados.
Na Índia chamam intocáveis aqueles que no fundo da escala não têm sequer direito a estar num mesmo espaço com outros, nem sequer a olhá-los e qualquer um que não seja intocável pode agredir um intocável. Por cá os Intocáveis vivem nas quintas das Marinhas, frequentam colégios privados de renda impossível para os demais e na altura devida são empregados nos grandes bancos em que os papás são grandes accionistas e administradores. E não importa que tenham subido a pulso ou que já lá estivessem – o mérito, nem a ética, são qualidades intrínsecas do chamado sucesso -, importa que servem, num caso e noutro, a regra da perpetuação do abismo fracturante.
Fernando Mora Ramos
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quinta-feira, 11 de março de 2010
anaCrónicas 6
Tem razão o Fernando Rebelo em protestar contra tanta água. Eu próprio, que sou peixe, me estou a passar. Explico-me: peixe de signo. O que apesar de tudo, não por ser filho de Março mas por no-la atirarem à cara os que, é o seu direito de expressão, querem encontrar nessas coisas um caminho de compreensão do que não percebem mas sentem muito. Na realidade quantas vezes nos perguntam o tal do signo? Mas como fui sendo sempre peixe na boca dos outros – salvo seja – lá fui incorporando umas guelras inconscientes, uma barbatana dorsal sem grande esplendor e mesmo aquela característica dos peixes que é mais óbvia e menos se vê e que é aquele olho que já vem morto, na nossa percepção mais comum, no prato ou perto dele. Um olho míope extraordinário, capaz de ver para dentro como nenhum outro. Os peixes são como o Jaime Gama, pelo menos os das águas profundas, conspiram muito enquanto podem. Antes que a esclerose avance, irremediável, sem regresso.
Pois é Fernando, esta coisa da água, passados os recordes de Alqueva que festejámos com a pátria apesar de, como foram dizendo técnicos e agricultores, ser água sem destino útil na sua escala – as obras são feitas para serem grandes mas antes não se cuidou do recheio que as preencha – é de facto uma chatice mais que cinzenta, é cinzenta no que chove dentro e parece prolongar-se no tempo tornando-o indiferenciado, insuportavelmente o mesmo. E nós somos viciados de sol e Primavera, dinâmicos na letargia de Agosto. Portugal, o sol, as praias, o peixe, o Algarve, a vida feita no exterior, a vida sem interior que não seja o da objectivação nessas condições naturais (estarão em extinção?) que os suecos invejam – também nos davam jeito aquelas capacidades que eles desenvolvem e que só a vida nos interiores propicia. Já pensaram numa sardinhada interior? Eles não pensam noutra coisa mas ainda não inventaram o exaustor específico.
A solução é levar o signo a sério e como o insecto do Kafka se irmanou da insignificância, irmanarmo-nos da água, metamorfose mais simpática. Uma poupança em impermeáveis e guarda-chuvas, que nunca resistem a um vento maior e muito menos a esta moda do granizo. É que a chuva também está diferente e vem de paragens que não eram as anteriores. E tudo por causa do anticiclone dos Açores que resolveu deslocar-se do seu sítio natural. Pode ser que Portugal também saia do sítio e desça mais um bocado no mapa cósmico. Não seria pior.
Olha Fernando, vou dar um pulo a Marrocos. Lá não chove. Não levo a barbatana, claro.
FMR
Pois é Fernando, esta coisa da água, passados os recordes de Alqueva que festejámos com a pátria apesar de, como foram dizendo técnicos e agricultores, ser água sem destino útil na sua escala – as obras são feitas para serem grandes mas antes não se cuidou do recheio que as preencha – é de facto uma chatice mais que cinzenta, é cinzenta no que chove dentro e parece prolongar-se no tempo tornando-o indiferenciado, insuportavelmente o mesmo. E nós somos viciados de sol e Primavera, dinâmicos na letargia de Agosto. Portugal, o sol, as praias, o peixe, o Algarve, a vida feita no exterior, a vida sem interior que não seja o da objectivação nessas condições naturais (estarão em extinção?) que os suecos invejam – também nos davam jeito aquelas capacidades que eles desenvolvem e que só a vida nos interiores propicia. Já pensaram numa sardinhada interior? Eles não pensam noutra coisa mas ainda não inventaram o exaustor específico.
A solução é levar o signo a sério e como o insecto do Kafka se irmanou da insignificância, irmanarmo-nos da água, metamorfose mais simpática. Uma poupança em impermeáveis e guarda-chuvas, que nunca resistem a um vento maior e muito menos a esta moda do granizo. É que a chuva também está diferente e vem de paragens que não eram as anteriores. E tudo por causa do anticiclone dos Açores que resolveu deslocar-se do seu sítio natural. Pode ser que Portugal também saia do sítio e desça mais um bocado no mapa cósmico. Não seria pior.
Olha Fernando, vou dar um pulo a Marrocos. Lá não chove. Não levo a barbatana, claro.
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quarta-feira, 10 de março de 2010
anaCrónicas 5
«Aquele que pertence verdadeiramente ao seu tempo, o verdadeiro contemporâneo é o que não coincide perfeitamente com ele nem adere às suas pretensões, definindo-se, neste sentido, como inactual.
A contemporaneidade é portanto uma relação singular com o seu próprio tempo, a que se adere preservando as suas distâncias; ela é a relação com o tempo que lhe adere pelo desfasamento e pelo anacronismo; Aqueles que coincidem excessivamente com a sua época, que se lhe adequam perfeitamente em todos os seus pontos, não são contemporâneos porque, por estas mesmas razões, não chegam a vê-la. Não conseguem fixar o olhar que lhe dirigem.»
Agamben escreve isto em 2008.
A sensação que tenho depois de um sem número de teses sobre a ditadura do presente, é que, de facto, os nossos modernos – eles atiram a palavra modernidade quando, por uma razão qualquer, necessitam de falar do futuro diante de um par de microfones apontados como armas; modernidade, dizem logo como passe de magia verbal e dizem que para lá caminhamos, sendo portanto essa modernidade vindoura o que nos espera para a frente, o futuro portanto, uma imprevisibilidade cada vez mais obscura a que não se quer reconhecer nem a obscuridade e muito menos diagnosticar as causas profundas e próximas naquilo que contém de opaco, invisível, irracionalidade alimentada, nevoeiro compacto sem Sebastião possível – são não só pessoas actualizadíssimas, portanto aderindo ao seu tempo sem desfasamento, coincidindo com ele, como não têm sequer tempo para pensar o que dizem, de tal modo o dizem sem o desfasamento que qualifica o pensamento como tal, sem tomarem distâncias para além do jogo interpartidário do poder e dos poderes. Diante, só têm mesmo os votos, as sondagens constantes exercendo a sua função de arma política e a manchete mais relevante da hora. Para além disso têm obviamente a dívida pública, mascote do regime. Como se depreende falo de líderes, esses visionários de serviço ao sistema como presente absoluto.
FMR
A contemporaneidade é portanto uma relação singular com o seu próprio tempo, a que se adere preservando as suas distâncias; ela é a relação com o tempo que lhe adere pelo desfasamento e pelo anacronismo; Aqueles que coincidem excessivamente com a sua época, que se lhe adequam perfeitamente em todos os seus pontos, não são contemporâneos porque, por estas mesmas razões, não chegam a vê-la. Não conseguem fixar o olhar que lhe dirigem.»
Agamben escreve isto em 2008.
A sensação que tenho depois de um sem número de teses sobre a ditadura do presente, é que, de facto, os nossos modernos – eles atiram a palavra modernidade quando, por uma razão qualquer, necessitam de falar do futuro diante de um par de microfones apontados como armas; modernidade, dizem logo como passe de magia verbal e dizem que para lá caminhamos, sendo portanto essa modernidade vindoura o que nos espera para a frente, o futuro portanto, uma imprevisibilidade cada vez mais obscura a que não se quer reconhecer nem a obscuridade e muito menos diagnosticar as causas profundas e próximas naquilo que contém de opaco, invisível, irracionalidade alimentada, nevoeiro compacto sem Sebastião possível – são não só pessoas actualizadíssimas, portanto aderindo ao seu tempo sem desfasamento, coincidindo com ele, como não têm sequer tempo para pensar o que dizem, de tal modo o dizem sem o desfasamento que qualifica o pensamento como tal, sem tomarem distâncias para além do jogo interpartidário do poder e dos poderes. Diante, só têm mesmo os votos, as sondagens constantes exercendo a sua função de arma política e a manchete mais relevante da hora. Para além disso têm obviamente a dívida pública, mascote do regime. Como se depreende falo de líderes, esses visionários de serviço ao sistema como presente absoluto.
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terça-feira, 9 de março de 2010
anaCrónicas 4
A guilhotina tem a marca do terror. Contra livros parece então o cúmulo da desvergonha, principalmente quando quem manda guilhotinar é quem edita. Como pode quem tem supostamente o amor dos livros dar cabo deles? Mas é assim, já o mesmo acontece às maçãs e ao peixe quando o excesso traz na oferta a quebra dos preços. Eles lá sabem porque raio é que acham que isso é lei a respeitar na economia básica? No meio desta regra há quem a ela não pertença e ao lado tenha fome. O mesmo para o livro, embora, no caso, esse tipo de fome seja menos perceptível e muitas vezes o faminto nem se dê conta dada a omnipresença da fome de primeiro tipo, a do estômago. Nunca o livro esteve tão claramente reduzido à sua expressão comercial, como nunca ouve tanta capa a despropósito da substância literária interior – vende-se para o olho.
Robespierre certamente que mandaria para a guilhotina não os livros mas quem guilhotinasse livros. E no meio de tanto novo analfabetismo em expansão ficamos de facto surpresos - ele há estatísticas para tudo portanto será difícil que tudo nelas, nas várias, não venha provar a senda constante do progresso (o puguesso como dizia o Cavaco mais primitivo) em direcção ao progresso ou se preferirem, à modernidade, essa galdéria que está em todas as bocas.
Como é possível? Na Itália, quando Berlusconi, esse supra-sumo da estética capilar requentada, entre outras aquisições, comprou a Mondadori, mandou as completas do Goldoni armazenadas já não sei onde pelo mesmo caminho, a guilhotina. O armazenamento, explicam, é mais importante que o livro e certamente mais importante que os leitores. Importância medida pela relação espaço versus pilim – como nos estacionamentos, essa mina de ouro certo. Os livros na realidade estão estacionados. Na altura pareceu-me que a façanha estava à altura do bicho. E pensei que viria bem ao mundo se o guilhotinassem a ele, talvez mesmo entre as partes – é uma metáfora, claro, já que não guilhotinam tomates. Mas aqui, com a tradição miserável que o livro e a leitura têm, guilhotinar livros do Sena, do Eugénio de Andrade, da Sofia? De facto tem razão o Luís Fernandes quando no Público clamou para que não lessem as coisas da Leya, essa editora que, entre outros tops, tem o Saramago. Será que o Nobel vai fazer ouvir a sua voz ou, tratando-se do patrão, a calará? Era uma boa ocasião para sair da editora e eventualmente fundar outra, alternativa e não monopolista. Mas isso obviamente obrigaria a ir contra a lógica best seller.
FMR
Robespierre certamente que mandaria para a guilhotina não os livros mas quem guilhotinasse livros. E no meio de tanto novo analfabetismo em expansão ficamos de facto surpresos - ele há estatísticas para tudo portanto será difícil que tudo nelas, nas várias, não venha provar a senda constante do progresso (o puguesso como dizia o Cavaco mais primitivo) em direcção ao progresso ou se preferirem, à modernidade, essa galdéria que está em todas as bocas.
Como é possível? Na Itália, quando Berlusconi, esse supra-sumo da estética capilar requentada, entre outras aquisições, comprou a Mondadori, mandou as completas do Goldoni armazenadas já não sei onde pelo mesmo caminho, a guilhotina. O armazenamento, explicam, é mais importante que o livro e certamente mais importante que os leitores. Importância medida pela relação espaço versus pilim – como nos estacionamentos, essa mina de ouro certo. Os livros na realidade estão estacionados. Na altura pareceu-me que a façanha estava à altura do bicho. E pensei que viria bem ao mundo se o guilhotinassem a ele, talvez mesmo entre as partes – é uma metáfora, claro, já que não guilhotinam tomates. Mas aqui, com a tradição miserável que o livro e a leitura têm, guilhotinar livros do Sena, do Eugénio de Andrade, da Sofia? De facto tem razão o Luís Fernandes quando no Público clamou para que não lessem as coisas da Leya, essa editora que, entre outros tops, tem o Saramago. Será que o Nobel vai fazer ouvir a sua voz ou, tratando-se do patrão, a calará? Era uma boa ocasião para sair da editora e eventualmente fundar outra, alternativa e não monopolista. Mas isso obviamente obrigaria a ir contra a lógica best seller.
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segunda-feira, 8 de março de 2010
anaCrónicas 3
Diante do gordo do Preço Certo acontece-nos descobrir o que sempre intuíramos mas o que nunca pensáramos. Este tipo, se decide fazer uma dieta, vai para o desemprego. A obesidade, a tal que se combate licenciando os sistemas de engorda da comida rápida nas praças da alimentação e nas escolas públicas é a razão do êxito. Sim, porque um emprego de luxo é uma forma específica de sucesso, já que a outra é ser parte da tal corrupção que, segundo mais de sessenta por cento dos portugueses, não é assim uma coisa tão má, porque nalguns casos, é redistribuída, reinvestida dizem. Portanto o ladrão que rouba para reinvestir é amigo do povo e o branqueamento de capitais uma das actividades morais mais destacadas dos narcotraficantes – por cá também há, como havia a ETA, ali, no paraíso obidense, vila postal a dois passos da pirotecnia criativa.
Aquela história do Brecht quando falava de demitir o povo e não o ministro perdeu o sentido. A massa é massa e vem-lhe o faro da oportunidade com ávida coerência própria, mistura de inveja e forte desejo de ascensão clicável. E à criatura massiva cheira que não lhe calhando o totoloto lhe pode calhar em alternativa o que reste, em notas voadoras, do saque de um multibanco próximo. Até dará uma ajudinha.
É assim o pão e circo, a vida actual no circo globalizado do mundo, a realidade constantemente espectacularizada – dizem-na também virtualizada para a tornar mais neutra – necessita das suas aberrações (os índios talvez tivessem alma, Bartolomeu de Las Casas bateu-se pela alma deles e, em Woizeck, o cavalo fazia que sim com a cabeça e não era lusitano) para que o espectáculo prenda os sentidos dos espectadores planetários com eficácia imperial e faça salivar a mente quando o fetiche, muitas vezes um automóvel, brilha sob a luz dos projectores em consonância com o clímax sonoro num verdadeiro horizonte cantante.
Diz-se: o teatro é grego, o espectáculo é romano. O gordo do preço certo tem garantida a sua posição de renda, como acontece em qualquer loja dos trezentos a um gordo que ofereça fetiches de uso quotidiano cujo valor multiplique trezentos pela precariedade geral em que somos olhos e barriga ávidos de propriedade. Assim como têm emprego certo, por contraposição, as boazonas que ajudam a decorar as mercadorias com o esbelto par de pernas mais o sorriso obrigatório, outra razão de competência específica para emprego certo. O gordo que se acautele, porque o gigante de Manjacaze lá morreu de uma altura que não parava de disputar o cimo da copa das árvores, o que às árvores seculares não agrada, pois mais alto, de direito autenticado pela tradição, só os pássaros e os arranha-céus de betão imortal. Um dia o corpo não poderá suportar o tamanho em crescimento constante – oxalá isso acontecesse à economia, dirão os preocupados com a pátria. O gordo, com aquelas piadas estafadas, só engorda mais. É o preço certo da própria dignidade animal, o culto da banha alimentada e mantida como uma amante no tempo antigo das amantes mantidas – também está em extinção, não as amantes, mas esta forma especificamente económica, já que não é um investimento, nem sequer um roubo eticamente apoiado na visão vulgar, não rende, é puro défice.
E a ração do gordo não é, por certo, qualquer uma.
FMR
Aquela história do Brecht quando falava de demitir o povo e não o ministro perdeu o sentido. A massa é massa e vem-lhe o faro da oportunidade com ávida coerência própria, mistura de inveja e forte desejo de ascensão clicável. E à criatura massiva cheira que não lhe calhando o totoloto lhe pode calhar em alternativa o que reste, em notas voadoras, do saque de um multibanco próximo. Até dará uma ajudinha.
É assim o pão e circo, a vida actual no circo globalizado do mundo, a realidade constantemente espectacularizada – dizem-na também virtualizada para a tornar mais neutra – necessita das suas aberrações (os índios talvez tivessem alma, Bartolomeu de Las Casas bateu-se pela alma deles e, em Woizeck, o cavalo fazia que sim com a cabeça e não era lusitano) para que o espectáculo prenda os sentidos dos espectadores planetários com eficácia imperial e faça salivar a mente quando o fetiche, muitas vezes um automóvel, brilha sob a luz dos projectores em consonância com o clímax sonoro num verdadeiro horizonte cantante.
Diz-se: o teatro é grego, o espectáculo é romano. O gordo do preço certo tem garantida a sua posição de renda, como acontece em qualquer loja dos trezentos a um gordo que ofereça fetiches de uso quotidiano cujo valor multiplique trezentos pela precariedade geral em que somos olhos e barriga ávidos de propriedade. Assim como têm emprego certo, por contraposição, as boazonas que ajudam a decorar as mercadorias com o esbelto par de pernas mais o sorriso obrigatório, outra razão de competência específica para emprego certo. O gordo que se acautele, porque o gigante de Manjacaze lá morreu de uma altura que não parava de disputar o cimo da copa das árvores, o que às árvores seculares não agrada, pois mais alto, de direito autenticado pela tradição, só os pássaros e os arranha-céus de betão imortal. Um dia o corpo não poderá suportar o tamanho em crescimento constante – oxalá isso acontecesse à economia, dirão os preocupados com a pátria. O gordo, com aquelas piadas estafadas, só engorda mais. É o preço certo da própria dignidade animal, o culto da banha alimentada e mantida como uma amante no tempo antigo das amantes mantidas – também está em extinção, não as amantes, mas esta forma especificamente económica, já que não é um investimento, nem sequer um roubo eticamente apoiado na visão vulgar, não rende, é puro défice.
E a ração do gordo não é, por certo, qualquer uma.
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sábado, 6 de março de 2010
anaCrónicas 2
Os pais desavindos com a primeira palavra a ensinar depois do leite militante entraram em ciclotimia de afectos. Quase nem se falavam. Ela queria mamã talvez – segundo uma fonte mais ou menos credível – e ele queria papá – segundo outra fonte mais ou menos credível. Tudo um pouco primário mas perfazendo o pleno das emoções, essa sensação de estar vivo, equivalente, pela negativa, à do bandulho cheio, essa sensação de ser jibóia. Recorreram portanto ao tribunal familiar. Mas tudo ficou sem saída, já que as partes se dividiam por fronteiras sanguíneas e por afectos politicamente correctos, resultando tudo numa igualdade de braços no ar – a família era da esquerda arcaica, enraizada em terra de sequeiro lá para os lados onde o horizonte não é coxo. De regresso ao lar e para não lhes acontecer o mesmo que aos outros que se esqueceram de alimentar o bebé, que morreu, enquanto jogavam online o jogo da filha virtual a tempo inteiro, resolveram dar o biberão à criança, o que o pai fez pois era a sua vez, sendo que ela tinha optado pela fralda que viesse. E a vida continuou desavinda, amuos, olhares carregados, dores de cabeça, náuseas inexplicadas e mesmo longas desistências mergulhadas na banheira em osmose de amores com a água quente pelas bordas do topo.
Andaram assim meses até que no mesmo sonho – era um casal muito unido no sono e com a crise, que a todos vem tocando, sonhavam mais barato sonhando o mesmo sonho – uma voz silenciosa, subliminar lhes derramou para o ouvido interno a palavra do desejado consenso: e porque não ensinar à criança a palavra défice? E os dias rosa do leite mamado em directo voltaram.
FMR
Andaram assim meses até que no mesmo sonho – era um casal muito unido no sono e com a crise, que a todos vem tocando, sonhavam mais barato sonhando o mesmo sonho – uma voz silenciosa, subliminar lhes derramou para o ouvido interno a palavra do desejado consenso: e porque não ensinar à criança a palavra défice? E os dias rosa do leite mamado em directo voltaram.
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sexta-feira, 5 de março de 2010
anaCrónicas 1
A propósito de touros, e bravos, veio-me à mona o bode do Mário Henrique Leiria. No conto do Leiria o bode é uma máquina devoradora de papel selado, requerimentos, dossiês, peixes de prata – lindo nome para iguaria (eles comem-no, os bárbaros, como as baratas) tão reles – lombadas amarelecidas de nostalgia cultivada, livros angustiados à espera do toque dos dedos que os folheiem, silêncios ocos sob a caliça que se desprende de paredes esquecidas do viço da cal virgem e outros elementos característicos dos paraísos esverdeados da burocracia. O bode foi aliás condecorado por serviços relevantes prestados à pátria. Eis que agora o touro bravo saiu, sob a forma de candidato a cadáver – esperam-no as bandarilhas e os bandarilheiros sob o olhar ávido dos vampiros consumidores encartados de pão e circo –, no Diário da República, como motivo protagonista de constituição de uma secção especializada do Conselho Nacional de Cultura, organismo tirado da cartola da sua letargia antiga de nobilitados membros do pedestal da República. É a pura da verdade: a República dispõe, a partir desta publicação em Diário da República, de uma secção cultural especializada em tauromaquia, com um elenco de fazer inveja à maior peça de Shakespeare, em número que não em diversidade humana caracterial, claro. Quando mais evoluímos mais nos enredamos no fado de uma suposta identidade moldada em atavismos e arcaísmos. E para mais espanto, tal decisão, foi tomada pela pianista Ministra que, ao que parece, se tornou aficionada lá para os Açores aquando de um Congresso, certamente mundial, de touros. Nada me move contra os touros, como não sou contra o bitoque, as guerras serão outras, mais complexas e a maior parte delas nem sequer escolhidas.
É claro que tudo isto integra a sociedade do espectáculo e que quem se mede na política diariamente, calculando a sua temperatura de popularidade, está sempre em condição de definição do seu estado estatístico, o que significa estatuto, sempre instável por certo naquilo que aproxima o Ministro do Primeiro-Ministro. Será isto a política hoje?
A mim só me choca ver o touro ribatejano no Diário da República misturado com a fila de licenciados a empoleirar-se no que der e vier. É que merecia mais a companhia dos chaparros, o ar livre do montado e o amargo doce da bolota, tal como ao javali agrada. Nada contra os licenciados, entenda-se, mais que proletários no país centro comercializado, e tudo pela liberdade.
FMR
É claro que tudo isto integra a sociedade do espectáculo e que quem se mede na política diariamente, calculando a sua temperatura de popularidade, está sempre em condição de definição do seu estado estatístico, o que significa estatuto, sempre instável por certo naquilo que aproxima o Ministro do Primeiro-Ministro. Será isto a política hoje?
A mim só me choca ver o touro ribatejano no Diário da República misturado com a fila de licenciados a empoleirar-se no que der e vier. É que merecia mais a companhia dos chaparros, o ar livre do montado e o amargo doce da bolota, tal como ao javali agrada. Nada contra os licenciados, entenda-se, mais que proletários no país centro comercializado, e tudo pela liberdade.
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