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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Os acontecimentos em Moçambique (2)

Ao contrário do que alguns previam, as manifestações e barricadas regressaram hoje a Maputo, e podem continuar nos próximos dias.
Aqui ficam mais alguns links, em actualização:

- A razão e o sentido dos motins - por Paulo Granjo no Público.
- No dia em que Hélio não voltou para casa - reportagem de João Vaz de Almada, também no Público.
- As guerras do pão - por ABM, no Ma-Schamba.
- Maputo, take 2 - Por Eduardo Pitta, no Da Literatura.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Os acontecimentos em Moçambique

Os afazeres diários só me permitiram chegar agora ao blogue. Isto num dia em que a contestação social rebentou em Maputo, devido ao aumento dos preços dos bens alimentares, em especial dos do pão. Vou colocar aqui os posts ou notícias que considero relevantes para o acompanhamento e compreensão da situação, e este post será actualizado sempre que necessário. Para já deixo hipotéticas opiniões para depois.

- Motins em Maputo e Maria Antonieta na Costa do Índico - por Paulo Granjo, no Antropocoiso, e também no Cinco Dias.
- Maputo Policiada Hoje - por Carlos Serra (em Maputo), no Diário de um Sociólogo.
- Um mapa dos acontecimentos registados, em actualização permanente e feito por "cidadãos-repórteres", no site moçambicano "Verdade".
- Notícia do Público -  por Sofia Lorena: dá conta de seis mortos confirmados (mas, tal como os outros jornais, pelo menos à hora em que escrevo, é fraco em pormenores).
- Moçambique e o Outro Lado da Mesma História - No A Minha Mosca (autor anónimo).
- Confrontos chegaram à Beira - notícia da TSF, que dá conta de quatro mortos na segunda maior cidade de Moçambique.
- Moçambique, a Voz da Fome - por Francisco Louçã no Facebook.
- Da Sociologia Apressada - por jpt, no Ma-Schamba.
- Também no Ma-Schamba, uma reportagem fotográfica sobre as manifestações.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Sobre o tráfico de droga em Moçambique

Drogas: Revisitando a história recente, por Paul Fauvet


Quando a 1 de Junho o presidente Barack Obama nomeou o empresário Mohamed Bachir Suleman como um barão da droga, a reacção avassaladora nos media moçambicanos foi de surpresa, choque - e até mesmo de condenação aos americanos por arruinarem um empresário supostamente inocente. No entanto, a movimentação norteamericana contra um alegado “barão” de drogas moçambicano não deve constituir nenhuma surpresa. Desde meados da década de 1990, Moçambique tem sido usado como corredor por traficantes de drogas, mas até agora nenhuma figura chave no tráfico já foi condenada. Grandes apreensões de droga foram feitas. Assim, em 1995, a polícia apreendeu 40 toneladas de haxixe transportadas por Maputo, em dois camiões. As investigações definharam , e a única pessoa verdadeiramente presa em conexão com esta apreensão foi o condutor de camião Samssudine Satar.
Também em 1995, um laboratório para a produção de mandrax foi descoberto no bairro Trevo, na cidade da Matola. As pessoas que lá trabalhavam atearam-lhe fogo, mas esta tentativa de destruir as provas não deu certo, e os policiais concluíram que o equipamento existente era para a produção em massa de mandrax, uma droga para a qual existe um grande mercado na África do Sul. Os dez trabalhadores asiáticos presos no Trevo, na sua maioria recrutados nas ruas de Bombaim, foram liberados pelo procurador provincial de Maputo, Luis Muthisse, apesar de um juiz se ter recusado a conceder-lhes fiança. A intervenção do Muthisse (que perdeu seu trabalho neste escândalo) foi um dos muitos indícios de conluio de alto nível com os traficantes.
Os dez asiáticos, apesar de serem paupérrimos, foram capazes de contratar os serviços de um advogado de topo, Maximo Dias, que se recusou a dizer aos repórteres quem lhe estava pagando. Coincidentemente, Dias é agora o advogado de Mohamed Bachir Suleman. Os equipamentos para a fabricação do mandrax tinham sido importados através da empresa de pesca Afropesca. O director-geral da Afropesca, o empresário espanhol Luis da Costa Virott, foi preso, sob suspeita de tráfico de haxixe do Paquistão para Moçambique. Como os dez asiáticos, ele foi misteriosamente libertado após a intervenção de um advogado português de renome. A liberação foi condicionada a Virott permanecer no país - mas alguns dias depois ele estava num avião rumo a Lisboa e não houve nenhuma tentativa para detê-lo.
Em Agosto de 1997, 12 toneladas de haxixe foram apreendidas a partir de um esconderijo em Quissanga, na província nortenha de Cabo Delgado. Um empresário conhecido, Gulamo Rassul, foi preso em conexão com este caso. Esta foi a sua segunda prisão em conexão com drogas - ele já havia sido nomeado em conexão com o tráfico de haxixe para a América e Europa a partir do porto de Nacala, em recipientes onde a droga era disfarçada como chá. Quando este caso foi a julgamento no ano seguinte, intervenientes menores – pescadores de Quissanga e proprietários de embarcações – receberam longas sentenças, mas os homens que a acusação considerava como os barões da droga, Rassul e um certo Momade Bachir (nenhuma relação com Bachir Suleman), foram absolvidos. Assim, o motorista de Rassul apanhou uma pena de cadeia de 12 anos, mas o juiz levou o público a acreditar que Rassul não sabia nada da actividade do seu motorista. Tráfico ocorre também de barco pelo Canal de Moçambique, em águas territoriais de Moçambique. Isso veio à luz dramaticamente quando um barco que transportava haxixe encalhou nas rochas ao largo da costa da província de Inhambane, em Junho de 2000. Cerca de 16 toneladas de haxixe acondicionado em latas deram à costa. Os nove paquistaneses que escaparam do naufrágio foram condenados a longas penas de prisão. Mas nada de novo foi revelado sobre o destino do haxixe ou os seus proprietários. Aqueles que têm investigado o tráfico de drogas, chegaram a algumas conclusões surpreendentes. Com sede em Londres, o jornalista Joseph Hanlon escreveu, num artigo publicado em 28 de Junho de 2001, no “Metical” editado por Carlos Cardoso, que “o valor das drogas ilegais passando por Moçambique é provavelmente mais do que todo o comércio externo legal combinado, de acordo com peritos internacionais” (Isso foi antes da fundição de alumínio Mozal, a base das exportações de Moçambique, ter atingido a sua produção de cruzeiro). Esses peritos (que não foram nomeados) “estimam que mais de uma tonelada por mês de cocaína e heroína estão agora passando por Moçambique”. Aquele tráfico de drogas mensais tinham um valor de retalho estimado em cerca de 50 milhões de US dólares.
Dado que Moçambique é essencialmente uma via de trânsito ao invés de um consumidor de drogas ilícitas, a maior parte do dinheiro das operações acaba fora do país. Mas Hanlon sugeriu que talvez 10 por cento fosse a quota dispensada aos traficantes locais - o que seriam 60 milhões de dólares por ano. Hanlon sugeriu que “o dinheiro da droga deve ser um dos factores dos crescimentos recorde de Moçambique nos últimos anos”. Este artigo identificou duas rotas da droga. Hanlon escreveu que a heroína se movimenta do Paquistão para o Dubai, em seguida, para a Tanzânia e Moçambique, antes que seja eventualmente canalizada para a Europa. A rota da cocaína está noutra direcção “da Colômbia para o Brasil, depois para Moçambique a caminho da Europa e da Ásia Oriental”. Hanlon alegou que o dinheiro destas drogas duras, mas também do haxixe e mandrax, é lavado por meio de bancos e casas de câmbio. A explosão do número de casas de câmbio (41 no momento do artigo de Hanlon) é certamente difícil de explicar, dado o tamanho relativamente pequeno da economia legal. O artigo de Hanlon, não suscitou qualquer desmentido indignado. Nenhuma fonte oficial tentou refutar as afirmações de Hanlon. E Hanlon estava longe de estar sozinho no alerta para os perigos do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e o crime organizado.
Num discurso feito num seminário internacional realizado em Coimbra em 2003, o juiz Augusto Paulino, agora PGR, assinalou muitos dos mesmos pontos. Ele concordou que Moçambique se tornou uma zona de trânsito no tráfico de cocaína e que uma segunda rede “activa desde 1992, constituída principalmente por cidadãos paquistaneses e moçambicanos de origem paquistanesa, se está concentrando em haxixe e mandrax”. No topo disto, vem a rota da heroína, a partir do Paquistão para a Tanzânia e Moçambique e depois para a Europa. “As várias redes de tráfico de drogas são empresas bem organizadas”, disse Paulino, “talvez mais organizadas do que as estruturas do Estado, envolvendo importadores, exportadores e transportadores de drogas, operadores no terreno e informantes”. Paulino não tinha dúvidas de que isso só foi possível com a conivência de funcionários corruptos dentro do Estado moçambicano. “Os funcionários aduaneiros são subornados para deixar as drogas passarem, os oficiais de imigração facilitam documentos de identificação e de residência, os policiais são pagos para olhar para o lado, e é ainda dito que os magistrados recebem subornos para ordenar liberações ilegais”, observou ele. Os lucros da droga foram lavados, e o resultado foi a proliferação de “mansões e carros de luxo” - mas parte do dinheiro seria “reinvestido” em negócios legais para dissipar suspeitas no futuro”.
Nos sete anos desde que Paulino falou, nenhum traficante significativo foi preso, mas há poucas dúvidas de que Moçambique continue no mapa dos traficantes. Regularmente serviços policiais e aduaneiros anunciam a apreensão de cocaína nos aeroportos de Maputo e Beira, muitas vezes transportada no estômago de jovens mulheres moçambicanas que viajam a partir do Brasil. Em nenhum caso, as mulheres revelaram quem as contratou. O medo de represálias é claramente maior do que o medo da prisão. E por todos aqueles que estão presos - quantos mais passam os aeroportos sem serem detectados? Um dos parlamentares mais experientes no Partido Frelimo, Teodato Hunguana, em 2002, advertiu que se o Estado não tomar medidas contra os bandidos, serão os bandidos a capturar o Estado. “A única maneira de impedir que o Estado caia definitivamente nas malhas do crime é desencadear uma guerra sem quartel contra os senhores do crime”, disse Hunguana. Se a guerra fôr limitada apenas aos homens do gatilho e aos peixes pequenos, deixando de fora o que os americanos chamam de “barões” intocáveis, isto permitirá que eles” se tornem cada vez mais poderosos e capazes de tomarem o próprio Estado”.
Quando Paulino ou Hunguana fizeram soar as suas advertências, eles foram amplamente aplaudidos pelos meios de comunicação do país - os mesmos media que hoje levantam as mãos horrorizados por o presidente norte-americano e o Departamento do Tesouro terem dado um passo sério na luta contra o crime organizado. É claro que teria sido muito melhor se os departamentos moçambicanos encarregues da aplicação da lei e ordem moçambicana estivessem dispostos e aptos a identificar e trazer à justiça os barões da droga. Porque não fizeram isso, é perfeitamente razoável que os americanos tenham decidido tomar medidas para proteger o seu sistema financeiro de dinheiro sujo de Moçambique, assim como eles fazem quando o dinheiro vem da Colômbia. Obama merece elogios pela sua acção, e não um coro abusado de antiamericanismo barato.



Sérgio Santimano
, via Ponte Moçambique-Suécia

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (8 e final)


quarta-feira, 16 de junho de 2010

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (7)

Um dos exemplos mais visíveis do aparecimento de novas distinções foi a criação da escola da FRELIMO em Maputo, destinada aos filhos dos altos membros do partido. O propósito desta escola era instruir os líderes do futuro, e aqui a ligação entre educação de qualidade e estatuto e poder era bastante explícita, como é demonstrado pelo exemplo seguinte.
Catarina nasceu em 1975 no seio de uma família ligada à FRELIMO; o seu pai foi ministro do governo. Foi educada na escola da FRELIMO até aos 9 anos. Havia mais 30 alunos na sua turma, todos eles oriundos de famílias de elite. De acordo com Catarina, as regras de disciplina da escola eram muito rígidas. Quando um professor entrava na sala, os alunos tinham de se levantar, saudar o professor e aguardar permissão para se sentarem. O programa de estudo era rigoroso e os alunos tinham melhores professores (na sua maioria expatriados), melhor comida e melhores materiais. Tinham até um autocarro para os levar e trazer, um luxo praticamente inaudito naquela época. Os estudantes normais, que iam a pé para a escola, costumavam zombar deles quando os viam passar, comparando-os a gado numa camioneta. Outra amiga minha lembra-se de sentir ódio pelos privilégios dos alunos da escola da FRELIMO, confessando-me que ela e os amigos costumavam arremessar pedras contra o autocarro escolar quando este passava na rua.
O propósito declarado desta escola era ensinar os futuros líderes a construírem o socialismo. Porém, apesar da retórica igualitária, a escola desempenhou um papel essencial na criação de um grupo privilegiado de pessoas enquanto classe à parte. A julgar pela hostilidade que a escola da FRELIMO inspirava, fica-se com a impressão de que o seu propósito era amplamente reconhecido. A crescente estratificação social foi inicialmente desencadeada pelo enorme aumento da mobilidade social, particularmente em Maputo, que se verificou após a independência do país. O êxodo dos portugueses deixara vagos praticamente todos os cargos profissionais e administrativos do país e, pela primeira vez, os moçambicanos viam-se promovidos às posições anteriormente ocupadas pelos colonialistas. Durante o meu trabalho de campo recolhi numerosos testemunhos de estudantes que se viam subitamente promovidos a professores, de trabalhadores que davam por si, praticamente de um dia para o outro, nas juntas que geriam as suas fábricas (Sumich, no prelo). Quase todos aqueles que tivessem algum tipo de instrução conseguiam arranjar emprego, se o desejassem. Com a abertura do sistema educativo não apenas aos jovens, como também aos adultos, a oportunidade de se obter distinção e poder sociais através da educação parecia de facto ter sido alargada a toda a população urbana. No entanto, devido à crise económica e à guerra civil que continuava a alastrar, em breve se desenvolvia uma economia de privação, pelo que, para muitas pessoas, a educação e a economia «moderna» continuavam a estar para além do seu alcance.
Pude compreendê-lo claramente durante um jantar com uma família de Maputo. Depois da refeição, a anfitriã mostrou-nos um álbum de fotografias dos primeiros anos do seu casamento, logo a seguir à revolução. Ao olharem para as fotografias, os filhos dela e alguns dos parentes mais jovens desataram a rir. Como acontece com os adolescentes de todo o mundo, os jovens achavam divertidos os enormes penteados «afro» e as roupas fora de moda dos pais, mas estavam também chocados ao notarem a extrema magreza de todos os fotografados e a péssima qualidade das suas roupas e das peças de mobiliário. A anfitriã tentou explicar que naquele tempo — o tempo de fome, como lhe chamou — não havia mais nada para comprar. Ouvi com frequência comentários semelhantes durante as discussões furiosas a que assisti durante o meu trabalho de campo sobre o legado do período socialista. Alguns afirmavam que no tempo de Samora (a presidência de Samora Machel) as coisas eram melhores, já que pelo menos havia ordem, um objectivo claro e pouca criminalidade; outros, mais cínicos, contrapunham que a criminalidade era rara porque não havia nada para roubar. Outros ainda defendiam essa espécie de solidariedade negativa do período socialista, afirmando que, pelo menos nessa altura, todos (a elite e a população em geral) eram igualmente pobres, ao contrário do que se verifica no presente, dominado por elites abastadas que tudo monopolizam. Porém, mesmo os mais fervorosos defensores do tempo da revolução admitiam que, apesar da solidariedade e da euforia em torno da construção da nova nação, os tempos eram muito difíceis e a maioria das pessoas passava fome — um caso à parte era o dos poucos felizardos que tinham contactos em Portugal e que regressavam das suas viagens tão carregados de produtos que o aeroporto mais parecia um mercado de rua. Embora a FRELIMO tivesse conseguido alargar o sistema, a distinção e o estatuto que ele simbolizava continuavam a ser difíceis de alcançar, mesmo para a elite privilegiada da capital.
A transição para o capitalismo não atenuou necessariamente esta situação. Em alguns casos houve talvez um agravamento das diferenças de estatuto e, uma vez mais, a disponibilidade de novos tipos e formas de educação assinalou mudanças mais alargadas dentro da ideologia de modernidade. A escola da FRELIMO há muito foi encerrada, mas tal não significa que os filhos da elite tenham sido reintegrados no sistema de ensino público frequentado pela maioria da população; na verdade, afastaram-se ainda mais dele graças a uma rede emergente de escolas privadas e internacionais. Bastará hoje um rápido passeio por Maputo para que notemos as diferenças entre as escolas da elite e as escolas públicas. A cidade tem muitas escolas, mas a maioria delas está em mau estado de conservação, com a tinta das paredes descascada e os vidros das janelas partidos. Os estudantes passam por estes edifícios ao longo do dia, vaga após vaga, já que o excesso de alunos obriga as escolas a trabalharem por turnos. No outro lado da cidade, no Bairro Triunfo (uma zona de elite), a situação é muito diferente. É numa rua sem saída, algo resguardada, ligeiramente desviada da estrada principal, que se situam muitas das escolas privadas e internacionais da capital. Embora a rua não esteja alcatroada, a diferença entre estas escolas e as instituições públicas é evidente. Muitas delas têm dois ou três andares, as paredes estão pintadas de fresco, as janelas intactas e os alunos são deixados à porta por uma grande variedade de carros e jipes de luxo. As instalações são de qualidade muito superior, os professores (moçambicanos e estrangeiros) contam-se entre os mais competentes do país e as propinas mensais oscilavam, em 2002-2004, entre os 100 dólares — um montante muito elevado, mesmo para uma família de classe média — e os 1000 dólares, um valor que excede em muito as possibilidades de todos os moçambicanos que não pertençam à elite. Embora muitos dos jovens da elite frequentem escolas no estrangeiro — a África do Sul, a Suazilândia, o Brasil, Portugal e o Reino Unido encontram- -se entre os destinos mais comuns —, a maioria deles completa a instrução básica nestas escolas privadas e internacionais. A maior parte destes jovens de elite desconhece em absoluto as escolas públicas, e as diferenças de classe em Maputo são claramente demonstradas pelo tipo de escola que se frequenta.
Uma vez que a educação é um dos pontos fundamentais da ideologia de modernidade da elite, as diferenças de acesso à mesma revestem-se de um poder tanto simbólico quanto real. A elite dominante de Moçambique obtém o seu poder por meio da sua ligação ao Estado e ao partido da FRELIMO. Sob este aspecto, desenvolveu algumas das características de algo a que se tem chamado burguesia estatal (Leys, 1982; Cohen, 1982). Todavia, a queda do socialismo abriu novas oportunidades aos membros desta elite, que se mostram cada vez mais propensos a ultrapassarem as fronteiras de Maputo e a expandirem-se para redes internacionais. A privatização dos bens do Estado permitiu à elite da FRELIMO adquirir empresas, propriedades e casas e o influxo de companhias multinacionais e de organizações de apoio ligadas à comunidade internacional proporcionou também novas e lucrativas oportunidades aos antigos membros do governo e suas famílias. Muitos dos membros da elite passam a sua vida profissional numa rotatividade entre o governo, a comunidade internacional e as empresas privadas. A educação de qualidade superior proporciona à elite as qualificações necessárias para tirar proveito destas novas oportunidades, as quais permanecem inacessíveis ao resto da população, ainda que se afirme que o sistema se baseia no mérito pessoal. Isto não significa que não existam divisões no seio da elite; muitos dos membros mais estudiosos desprezam os menos aplicados, alguns dos quais, pelo que se ouve dizer, passam sete anos na Cidade do Cabo a tentarem concluir um curso de três anos. Continuam a travar-se debates ferozes sobre a direcção futura do país. Porém, os membros da elite podem recorrer ao argumento de que a sua posição elevada se justifica plenamente, já que eles são os únicos que possuem as qualificações e a experiência necessárias para governarem uma nação moderna. Esta ideologia cria um «campo unificador» que garante a coesão das diferentes facções da elite e constitui o núcleo da sua identidade de grupo (Gledhill, 2002).
A educação e o estatuto de elite tendem a reforçar-se mutuamente, com a educação a fornecer as qualificações necessárias e a entrada na elite, o que, por sua vez, permite o acesso a redes sociais extremamente poderosas. Esta posição de domínio é expressa pelos membros da elite através de determinados padrões de consumo e de auto-apresentação. O facto tornou-se-me evidente durante uma conversa com uma mulher cujos pais são membros destacados da FRELIMO. Na opinião desta moçambicana, a RENAMO não tem capacidade para dirigir o país, já que os seus membros não passam, de acordo com as suas palavras, de camponeses incultos. A mulher ilustrou as suas afirmações com o seguinte exemplo:

"Lembro-me do que se passou em 1992, quando foi declarada a paz e a RENAMO saiu do mato. Deram-lhes casas — pelo menos aos sujeitos mais importantes do partido. Era um dos termos do acordo de paz. Quando eles [RENAMO] aqui chegaram, não faziam ideia de como se vive numa cidade. Costumavam estender a roupa nos relvados à frente das casas, imagina! E esta gente acha que consegue dirigir um país. É uma anedota; eles nunca tinham saído do mato."

Perguntei-lhe se as coisas não teriam sido similares quando a FRELIMO «saiu do mato» pela primeira vez, terminada a guerra da independência. Ela retorquiu, surpreendida: «Claro que não. Os da FRELIMO lutavam no mato, mas sabiam viver numa cidade, não eram ignorantes.» Assim, a auto-apresentação com base no consumo de bens de prestígio — automóveis, roupas ocidentais e uma educação cara e de alta qualidade — constitui um factor crucial da expressão de modernidade e de poder social (Bourdieu, 1984; Vom Bruck, 2005). Trata-se de uma afirmação de superioridade em relação à maioria da população moçambicana, bem como de uma afirmação de igualdade em relação ao mundo exterior. Estas afirmações de estatuto e poder são reconhecidas pela população de Maputo em geral, ainda que as pessoas contestem a justiça das mesmas. Certa ocasião fui abordado num café por um homem que procurou convencer-me de que eu, como estrangeiro, tinha a obrigação de o ajudar a financiar a sua revolução contra o injusto estado de coisas actual. Quando lhe perguntei o que resultaria da sua revolução, o homem sorriu e replicou: «Nessa altura serei eu a andar de Mercedes.» Embora afirmasse desejar uma revolução, o homem apresentava uma lógica semelhante à das elites. Não defendia argumentos de redistribuição da riqueza, limitando-se a argumentar que os símbolos de poder social (no caso, um Mercedes, o automóvel usado pelos ministros do governo) estavam nas mãos das pessoas erradas. A sua revolução garantiria que esses objectos passassem para as pessoas certas — neste caso, ele próprio.

domingo, 13 de junho de 2010

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (6)




DISTINÇÃO PELA EDUCAÇÃO

Em Moçambique a educação é imensamente respeitada, em parte talvez devido ao péssimo historial do Estado colonial nessa matéria, como é atestado por um dito popular entre a geração mais velha de Maputo: «As antigas colónias britânicas tiveram escolas, estradas, caminhos-de-ferro e hospitais, ao passo que os portugueses só serviam para construir igrejas.» Ainda que exagerada, esta acusação encerra um fundo de verdade. Mesmo pelos padrões coloniais, geralmente baixos, Portugal investiu uma insignificância na educação da população africana, delegando normalmente essa responsabilidade na Igreja Católica (Cruz e Silva, 1998 e 2001; Pitcher, 2002). Na década de 1960, o Estado colonial aumentou drasticamente as oportunidades educativas ao dispor da população africana, num esforço para conquistar «o coração e o espírito» do povo, para o dissuadir de lutar pela libertação, ainda que com escassos resultados práticos: «Apenas 1% da população — cerca de 80 000 pessoas — tinha ido além dos quatro anos de ensino básico e a maioria destes eram colonos portugueses. Em 1973 apenas 40 dos cerca de 3000 estudantes universitários eram africanos» (Minter, 1996, p. 22).
De acordo com as estimativas, a taxa de analfabetismo aquando da independência do país ultrapassava os 90% (Hanlon, 1990; Munslow, 1983). Durante o período colonial, a melhor instrução a que a maioria da população podia aspirar não ia além de alguns anos de catecismo na missão católica local a troco de emolumentos e de trabalho manual (Cruz e Silva, 2001; Gómez, 1999). Devido à sua raridade, o acesso a uma educação adequada tornou-se um sinal de distinção, funcionando como uma entrada simbólica numa modernidade mais ampla (8). O facto não deverá surpreender-nos, já que um indivíduo teria de pertencer a uma família de estatuto relativamente elevado para ter acesso à educação, a qual lhe permitia reforçar o seu estatuto como membro da elite. Por meio da educação, um indivíduo podia obter emprego no funcionalismo público, nos caminhos de ferro, ou abraçar uma carreira de enfermeiro, professor ou tradutor. Estes empregos, quer através da sua relativa importância, quer através dos seus adereços simbólicos — um fato e uma gravata, uma casa num bairro de assimilados e, acima de tudo, um automóvel —, tornavam bem evidente o lugar de destaque que os seus detentores ocupavam na hierarquia social. A educação permitia a uns poucos afortunados progredir (tanto quanto possível) no sector «moderno» e predominantemente urbano da economia colonial, e é precisamente aqui que podem ser encontradas as raízes da ideologia de modernidade. Não pretendo com isto afirmar que todos os assimilados aderiam inteiramente ao sistema ou que esta forma de entrada no conceito colonial de modernidade eliminava tudo o que existia previamente — porém, não há dúvida de que o modificava. Um excelente exemplo pode ser encontrado numa história que ouvi contar. Durante o período colonial, um assimilado mais velho, compreendendo que já não poderia exigir o lobolo pelo casamento da filha, pediu, em vez disso, como pagamento simbólico, uma gravata, caso o pretendente fosse aceite. Com isto, o homem não só contornava as restrições impostas pela assimilação, como também reforçava o seu estatuto social, já que a gravata era um símbolo da sua integração na economia «moderna». Para os assimilados, uma gravata era praticamente um distintivo de posto (comunicação pessoal de Granjo). Outros ex-assimilados disseram-me que, quando frequentavam escolas portuguesas de elite durante o período colonial, muitos dos seus colegas deixavam de os ver como negros. A educação conferia estatuto e autoridade a um indivíduo, não só aos olhos da população africana em geral, como também, tanto quanto possível, perante a minoria portuguesa. Não deixa de ser muito revelador o facto de Eduardo Mondlane, o primeiro líder da FRELIMO, ter sido também o primeiro negro a concluir um curso universitário em Moçambique.
Quando tomou o poder, a FRELIMO estava determinada a introduzir grandes melhorias no sistema educacional da sua nova nação. Isto porque a vasta maioria da população portuguesa tinha abandonado o país, o que decapitara virtualmente a classe profissional e administrativa de Moçambique, mas também porque a educação seria um dos alicerces de um novo sentido de identidade nacional. Por meio da educação, os ideais da FRELIMO poderiam ser disseminados entre sectores da população que tinham participado pouco ou nada na luta da libertação — as escolas formariam um novo tipo de cidadão, o homem novo baseado na ciência e na «racionalidade» (Gómez, 1999). Foram empreendidos esforços no sentido de alargar o sistema educativo a todo o país, mas a falta de recursos e de pessoal habilitado dificultava o estabelecimento do sistema nas zonas rurais. Assim, os esforços do governo concentraram-se sobretudo nas cidades, particularmente em Maputo, o coração do regime. Naema, actualmente professora, descreveu do seguinte modo o sistema de educação revolucionário durante os primeiros tempos da independência:

"Era tudo muito empolgante. Antes da libertação não sabíamos grande coisa sobre a FRELIMO. Eu lembro-me de ter visto a palavra FRELIMO escrita numa parede, mas o meu tio disse-me que nunca a repetisse a ninguém, caso contrário podia meter-me em sarilhos. Quando a FRELIMO chegou e expulsou os portugueses, toda a gente festejou, em especial os mais novos. Íamos construir um novo Moçambique. Eles [a FRELIMO] vinham às nossas escolas para nos ensinarem coisas sobre o nosso país. Havia muitas manifestações, as pessoas pegavam em cartazes e, todas juntas, formavam uma bandeira, como fazem os norte-coreanos, sabe. Aos domingos fazíamos serviços de limpeza voluntários na cidade; eles queriam que fôssemos bons cidadãos. Era uma maravilha. Hoje em dia a cidade está imunda e ninguém faz nada. Muitos dos meus alunos nem sequer sabem a letra do hino nacional. O patriotismo já não significa nada, e eles já nem tentam ensiná-lo como antigamente."

Naema apoiou com entusiasmo as tentativas de construção da nação e, enquanto adolescente, foi contagiada pela euforia desses tempos. Outras pessoas, porém, puseram em dúvida a qualidade do muito ampliado sistema educativo, inclusivamente em Maputo, onde as instalações eram geralmente de qualidade superior. Uma jovem mulher descreveu do seguinte modo a educação que recebeu pouco depois da independência:

"Foram tempos estranhos. Os antigos guerrilheiros apareciam nas escolas e davam aulas. Muitos deles nem sequer tinham recebido qualquer tipo de instrução, mas, uma vez que tinham acabado de libertar a nação, estavam convencidos de que isso era o suficiente. Sentavam-se em frente às turmas e falavam das suas vidas. Pensavam que era assim que se ensinava. Mesmo os outros professores quase não tinham experiência nenhuma. Muitos deles eram muito jovens, com apenas alguns anos de escola. Os meus professores e eu aprendemos a ler juntos."

Muitos membros da FRELIMO fazem eco desta apreciação bastante desfavorável. Um antigo oficial contou-me o seguinte:

"Foram tempos de grande entusiasmo. Estávamos convencidos de que podíamos fazer um melhor trabalho do que os portugueses. Eles eram estrangeiros e queriam explorar o nosso país para seu próprio benefício. Nós íamos dar uma vida melhor ao nosso povo. Éramos muito ambiciosos e muito jovens; para pessoas da nossa idade, tínhamos enormes responsabilidades. Era aí que estava uma parte do problema, julgo eu. Queríamos educar a nação, mas nós próprios não tínhamos educação praticamente nenhuma."

De início, a revolução social da FRELIMO visava modernizar toda a nação e a educação era a pedra angular dessa política. Contudo, este ambiciosíssimo plano tinha de ser posto em prática com recursos mínimos e muito pouco pessoal habilitado. Aquilo que começou por ser um grande esforço em benefício de toda a nação em breve começaria a ser restringido à população urbana, em geral, e à elite, em particular. Embora pretendesse eliminar por completo o antigo sistema de diferenciação social, a FRELIMO começou a reproduzir determinados aspectos do mesmo.

(8) Havia diferenças em relação às missões protestantes suíças que operavam no Sul, se bem que muitos dos seus alunos pertencessem também a famílias relativamente abastadas. Para mais pormenores, v. Teresa Cruz e Silva (1998 e 2001).

terça-feira, 8 de junho de 2010

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (5)

Na época em que tomou o poder, a FRELIMO gozava de um formidável grau de apoio popular, pelo que os seus líderes acreditavam ser capazes de mobilizar a população para o esforço heróico da modernização do país. Como se pode ver no estudo de Donham (1999) sobre os derg da Etiópia, grande parte do poder de atracção do comunismo para os movimentos radicais africanos não estava na eventual utopia prevista por Marx, mas nos exemplos concretos da URSS e da China, onde uma pequena mas determinada elite assumira o poder em nações agrárias «retrógadas», convertendo-as em potências industriais à escala mundial no espaço de poucas décadas. A maioria da população moçambicana acolheu com júbilo a conquista da independência, mas mostrar-se-ia mais ambivalente com a revolução social modernizadora da FRELIMO. No entanto, alguns segmentos da população acreditavam verdadeiramente no projecto da FRELIMO — sobretudo os mais jovens e, ironicamente, os mais ricos —, o que legitimava o poder do partido. Outros, porém, eram-lhe totalmente hostis. Apenas dois anos após a guerra da independência Moçambique mergulhava numa nova guerra. A FRELIMO apoiava o movimento de libertação da vizinha Rodésia e, em retaliação, o regime rodesiano dominado pela minoria branca constituiu um exército rebelde, a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), composto por dissidentes moçambicanos. Após a queda do regime rodesiano e a declaração de independência do novo Zimbabwe, a África do Sul tornou-se o patrocinador da RENAMO e a guerra civil devastou o país, causando a morte de 1 milhão de pessoas numa população de cerca de 16 milhões. Muitos dos progressos reais do governo da FRELIMO em termos de educação e saúde foram destruídos. Apesar da sua brutalidade, a RENAMO conquistou apoios nas regiões mais hostis à revolução social da FRELIMO. Em algumas zonas, a RENAMO foi inicialmente recebida como uma força de libertação; noutras, porém, a população não tomou qualquer partido, mantendo-se indiferente a ambas as forças em conflito (Geffray, 1991; Hall e Young, 1997). Com base nas ideias de Cahen, Geffray defendeu que a FRELIMO habitou em grande medida um «país imaginário» construído sobre um sonho ideológico de futuro e que as tentativas de implementação deste sonho alienaram profundamente uma grande parte da população, permitindo à RENAMO — um movimento que começara por ser uma agressão financiada por fundos estrangeiros construir uma base social e embarcar em algo que viria a transformar-se numa verdadeira guerra civil (Geffray, 1991). Embora o trabalho de Geffray tenha suscitado um grande número de críticas, existe muita verdade nas suas ideias fundamentais(7). Contudo, há sempre o risco de se levarem demasiado longe tais ideias; temos de reconhecer que determinados elementos da ideologia de modernização da FRELIMO exerceram também algum poder de atracção sobre alguns sectores da população do país.
Independentemente do poder de atracção das duas visões em conflito, a verdade é que a nação moçambicana estava em crise. Em 1984, a elite do partido começou a compreender a gravidade da situação e a tentar distanciar-se das suas posições mais radicais — mas por essa altura era já demasiado tarde, pois a FRELIMO tinha já perdido o controlo sobre uma grande parte do país, mantendo-se firme apenas nas principais cidades. As tentativas de afastamento da ideologia socialista, iniciadas em 1983 e 1984, ganharam alento a seguir à morte do primeiro presidente, em 1986. Após o colapso da União Soviética, e numa tentativa para desconcertar a RENAMO «anticomunista», a facção pró-capitalista da FRELIMO ganhou ascendência e o socialismo acabaria por ser abandonado em 1989 (Pitcher, 2002). A paz chegou, finalmente, em 1992 e foi baseada num acordo para abandonar o sistema de partido único e adoptar uma democracia multipartidária capitalista. Embora a FRELIMO tenha vencido todas as três eleições que se celebraram no pós-guerra, em 1992 a impressão preponderante era que a sua ideologia de modernidade jazia despedaçada entre as ruínas fumegantes da nação.
Todavia, apesar de todas as mudanças, da passagem de um Estado socialista de partido único para uma democracia capitalista liberal, a ideologia de modernidade sobreviveu e continua a funcionar como uma afirmação de poder, ainda que tenha mudado de forma. Como fizeram notar Hall e Young (1997, p. 219), após o fracasso do socialismo no esforço de modernização do país, a elite do partido decidiu seguir o outro grande caminho para a modernidade — o liberalismo. O capitalismo neoliberal possui similaridades raramente mencionadas com o socialismo revolucionário, no sentido em que ambos têm presunções messiânicas quanto à sua capacidade de reformarem profundamente a sociedade e de criarem algo de novo (West, 1997). Na prática, ambos assentam também numa intervenção estatal maciça com vista ao estabelecimento das condições para a sua implementação (Hall e Young, 1997, p. 221). Embora existam divergências entre as facções rivais da FRELIMO relativamente ao modo de implementação da sua ideologia de modernidade, esta continua a constituir uma das bases do poder da elite. A ideologia de modernidade da elite nasceu como uma grandiosa tentativa de redefinição do lugar de Moçambique dentro da comunidade internacional. Após a queda do socialismo, esta tornou-se progressivamente um importante indicador de status e uma persistente reivindicação e afirmação de poder social por parte da elite. A capacidade das elites de se verem a si mesmas como «modernas» — dentro de uma nação que, segundo elas, o não é — permite-lhes afirmar a sua diferença, criando um sentido de identidade e de coesão. Até mesmo certos elementos do antigo conceito de homem novo sobrevivem actualmente entre os membros mais jovens da elite, ainda que sob uma forma muito diferente. Para o exemplificar transcrevo de seguida uma conversa que tive com uma jovem mulher de uma família de elite, durante a qual ela me transmitiu a sua visão pessoal sobre os principais problemas que afligem Moçambique na actualidade. Em sua opinião, a causa fundamental das dificuldades do país não era de natureza política ou económica, antes radicava na própria população:
O problema é que nós, negros, continuamos duzentos anos atrasados Isso vê-se em toda a parte. Quando chegamos ao poder, a única preocupação é encher os bolsos. O mais importante é a tua posição e os teus contactos. Quando as coisas correm mal, culpa-se qualquer coisa de fora, o Ocidente, ou os espíritos, o problema é sempre dos outros. Os brancos e os indianos podem roubar este país à vontade, nós damos-lho de graça. Se um negro abre uma loja numa zona de indianos, os outros indianos unem-se todos para o obrigarem a fechar as portas. Nós não somos assim, limitamo-nos a pedir dinheiro. Depois, se alguma coisa corre mal, vão a um feiticeiro para tentar perceber o que aconteceu. E não é só em caso de doenças, quer dizer, eles percebem de ervas e nesses casos a coisa talvez funcione. Vão ao feiticeiro por razões estúpidas, como problemas sentimentais. As pessoas acham que a magia pode impedir o parceiro de as trair. Ficavas admirado se conhecesses essas pessoas, pessoas que andaram na universidade, que têm estudos e que deviam ter mais juízo.
Uma vez mais, os problemas da nação resultam do facto de os seus habitantes serem «supersticiosos», em vez de «racionais». De facto, os principais alvos desta crítica são as pessoas que deviam estar mais perto do ideal do homem novo — aquelas que têm estudos e que deviam ter mais juízo. Embora a retórica e os métodos tenham mudado, esta jovem mulher parece continuar a acreditar nos objectivos gerais da ideologia de modernidade, se bem que não esteja certa de que eles tenham sido alcançados. Na secção seguinte analisarei o modo como esta ideologia é inculcada através de práticas educacionais específicas e o modo como as suas afirmações de poder social são apresentadas através de determinadas formas de consumo, particularmente entre uma nova geração que nasceu após a independência e para a qual o socialismo não passa de uma memória de infância. A meu ver, a ideologia de modernidade, nas suas formas em mudança, tem sido fundamental no reforçar da coesão da elite, bem como na abertura de novas oportunidades de expansão desse mesmo grupo, cujo poder assenta na sua ligação ao partido e, por extensão, no seu controlo do Estado.

(7) Para uma crítica em profundidade de Geffray, v. Dinerman (1994).

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (4)

Grande parte dos fundamentos da ideologia de modernidade da FRELIMO provinha das experiências daqueles que a lideraram durante o colonialismo e as cisões da luta de libertação. Assim, entrava frequentemente em choque com outras correntes nacionalistas que prevaleciam em África, já que a FRELIMO aliava o nacionalismo a uma ideologia socialista universalista, em detrimento de valores mais comuns, como o afro-nacionalismo e a «autenticidade». Porém, a formação desta ideologia assentava também em aspectos que tinham inspirado muitos outros movimentos nacionalistas e revolucionários. A FRELIMO esperava que uma experiência partilhada de opressão colonial pudesse criar a base para um sentimento de cidadania comum (Mondlane, 1969; Pitcher, 2002). Como nas teorias de Frantz Fanon, pensava-se também que a participação na luta de libertação e o combate ao jugo colonial através de actos de violência «purificadora» pudessem ajudar a criar um homem novo (Fanon, 1963; Museveni, 1971). Foi com base neste sentido heróico da luta de libertação que os líderes da FRELIMO procuraram criar os alicerces de uma nova cidadania, enfrentando desse modo um problema que aflige frequentemente os movimentos nacionalistas. O nacionalismo é legitimado através de um sentido do carácter único da nação; porém, não é invulgar que os modernizadores nacionalistas pareçam de certo modo emular aqueles que anteriormente os oprimiam (Chakrabarty, 1997; Chatterjee, 1986).
A criação de um sentido partilhado de identidade nacional era uma preocupação central para os líderes da FRELIMO, como é atestado pela ênfase dada ao conceito de homem novo. Embora a participação na luta de libertação devesse lançar os alicerces desta nova cidadania, só uma pequena minoria de cidadãos da nova nação tinha participado efectivamente nela. Relativamente ao resto da população, o partido enfrentava o dilema de construir uma identidade nacional ao mesmo tempo que tentava destruir os vestígios da velha sociedade. A abordagem adoptada pela FRELIMO foi extremamente ambiciosa, tendo em conta a falta de recursos e a fragilidade da nação que procurava criar. Uma das principais bases da identidade nacional seria a oposição a qualquer tipo de tradição «primordial». Certas formas culturais, como a dança e as artes, eram encorajadas, já que demonstravam uma identidade nacional única; porém, os comportamentos culturais «tradicionais» deviam ser abandonados (Mondlane, 1969). Agostinho Neto, o líder do MPLA angolano, definiu o tipo de posição que a FRELIMO viria a assumir ao afirmar o seguinte sobre o objectivo cultural do seu partido: «Estamos a tentar libertar e modernizar o nosso povo através de uma dupla revolução: contra as suas estruturas tradicionais que já não lhe são úteis, como o separatismo étnico, a crença na feitiçaria, a opressão das mulheres — e contra o domínio colonial» (cit. por Davidson, 1984, p. 800).
A FRELIMO estava também empenhada em esmagar as estruturas tradicionais que, na sua opinião, já não serviam o povo. Todavia, esta perspectiva sobre a tradição era profundamente influenciada pelos antecedentes sociais dos líderes revolucionários, que aspiravam à modernidade e se ressentiam profundamente do facto de o colonialismo lhes ter negado o acesso total à mesma. Para esta elite, um regresso à «cultura tradicional» não era uma opção realista. A cultura tradicional estava associada à derrota e à humilhação; era a causa da fraqueza que possibilitara a subjugação de Moçambique pelos portugueses. Como fizeram notar Hall e Young, «a elite da FRELIMO e os estratos sociais que a apoiavam estavam profundamente convictos da superioridade da civilização moderna e da necessidade de evoluir até ao seu nível. A única forma de resolver estes dilemas era ver o «povo» como um vazio, mas possuidor de potencial para o desenvolvimento » (1997, p. 65). Obviamente, «o povo» não era um recipiente vazio; no entanto, para que houvesse desenvolvimento era necessário destruir as suas estruturas tradicionais. Assim que assumiu o controlo das estruturas do Estado, a FRELIMO utilizou o seu poder para cumprir esse objectivo. Pouco depois da independência, o novo governo emitiu uma enorme abundância de decretos. A autoridade tradicional foi abolida, o lobolo (dote pago pela família do noivo à da noiva) foi declarado ilegal, os homens polígamos estavam impedidos de se filiarem no partido, as cerimónias tradicionais foram proibidas, as instituições religiosas passaram a ser olhadas com desconfiança e os praticantes de «feitiçaria» corriam o risco de serem enviados para campos de reeducação. Ao mesmo tempo, empreenderam-se esforços no sentido de transferir os camponeses dos seus pequenos agregados residenciais dispersos para aldeias comunais centralizadas, que se tornariam «cidades no mato». A FRELIMO travou uma intensa batalha contra aquilo a que chamava superstição ou «obscurantismo», procurando substituí-lo pela racionalidade e pelo socialismo científico. A enorme ambição dos seus propósitos era limitada, na prática, pela fraqueza do Estado no período que se seguiu à independência. O partido monopolizara o poder, mas o país estava efectivamente na bancarrota e havia poucos recursos ou pessoal habilitado para levar a efeito os planos do novo regime. Com o esmorecer do entusiasmo entre alguns sectores do campesinato, a FRELIMO viu-se cada vez mais forçada a recorrer a métodos coercivos como forma de combater a resistência popular aos seus planos de modernização.
A reacção aos planos modernizadores da FRELIMO variou de região para região. Em algumas zonas, os planos foram relativamente bem sucedidos. O trabalho de Norman (2004) na província de Gaza, no Sul, dá testemunho de como, após uma cheia que destruiu as antigas casas e devido a uma desconfiança prévia resultante do papel da autoridade tradicional no recrutamento de trabalhadores forçados durante o período colonial, os planos da FRELIMO para transferir os camponeses para aldeias comunais e abolir a autoridade tradicional gozaram de grande popularidade. Na província nortenha de Cabo Delgado, um dos bastiões da FRELIMO, os efeitos foram desiguais. De acordo com o estudo de West (2001) no planalto de Mueda, alguns aspectos do programa das aldeias comunais foram bem acolhidos pela população e a concentração de grandes grupos de pessoas criava novas oportunidades de sociabilidade; porém, verificaram-se também numerosas acusações de bruxaria, já que as sanções contra a feitiçaria se revelaram ineficazes quando aplicadas a uma população tão vasta. Noutras áreas ainda as medidas da FRELIMO destruíram formas de organização social muito subtis, sem proporcionarem um modelo de substituição coerente. O trabalho de Geffray (1991) no distrito de Erati descreve a fúria popular contra a destituição dos líderes tradicionais e os esforços empreendidos para transferir a população para aldeias comunais. O sucesso ou fracasso da revolução social modernizadora da FRELIMO dependia frequentemente de condições locais, que raramente eram tomadas em linha de conta pelos líderes em Maputo.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

terça-feira, 1 de junho de 2010

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (3)

Os assimilados que constituíam a facção radical da FRELIMO eram sobretudo oriundos do Sul, em particular da capital e da região interior vizinha (Minter, 1996). Embora os críticos do partido usassem este facto para afirmar que a FRELIMO sofria de um «domínio sulista», o problema talvez esteja mais relacionado com a economia política colonial, os antecedentes sociais e as oportunidades educacionais do que com laços étnicos ou regionais específicos. Devido à localização da capital no Sul e à proximidade desta região com os mercados da África do Sul, verificavam-se aqui mais oportunidades de envolvimento no comércio e na migração laboral e de acesso ao sector governamental, de base urbana (Pitcher, 2002). Além disso, os sulistas beneficiavam do acesso às escolas das missões protestantes, que tinham sido impedidas de trabalhar no Centro e no Norte do país. Estas escolas proporcionavam a melhor educação disponível aos negros (Cruz e Silva, 1998 e 2001; Pitcher, 2002). Os sulistas eram, pois, maioritariamente oriundos de contextos urbanos ou periurbanos e, embora muitos deles procedessem de famílias com origens nobres ou de alto estatuto no período pré-colonial, estavam já profundamente integrados na economia colonial e o seu estatuto assentava na posição que ocupavam dentro da hierarquia colonial. Contudo, tornou-se visível que a sua mobilidade social seria sempre limitada e o aumento da imigração portuguesa após a Segunda Guerra Mundial deixou-os numa situação precária. Muitos sentiam uma forte atracção pelos aspectos do progresso que o colonialismo afirmava representar; porém, devido às restrições do sistema, a modernidade à qual aspiravam parecia estar sempre para lá do seu alcance (Hall e Young, 1997). O descontentamento cresceu entre os assimilados, que se uniram na defesa de causas comuns a outros grupos igualmente insatisfeitos com o sistema colonial — brancos radicais, mulatos (miscigenados) e indianos. Durante a luta pela libertação, estes grupos, aliados aos comandantes das guerrilhas do Norte, formaram a facção radical da FRELIMO. Isto não significa que todos os assimilados tenham aderido à FRELIMO. De facto, muitos deles não o fizeram, e a liderança da FRELIMO olhava-os com profunda desconfiança, pois não tinham sido «purificados» pela sua participação na luta (Hall e Young, 1997; Pitcher, 2002). A própria pequenez deste grupo — uma minoria dentro de uma minoria — contribuía para a sua unidade e coesão, mas causou também muitos problemas no período após a independência. Como me foi dito por um professor universitário moçambicano: «O nosso problema era que tínhamos uma elite suficientemente grande para formar um movimento, mas não suficientemente grande para governar o país.» Porém, as origens comuns dos membros deste grupo, oriundos da classe assimilada sobretudo urbana ou não agrícola, ajudaram a criar uma visão específica sobre a criação de uma nova nação após a obtenção da independência, que ocorreria em 1975. Tratava-se de uma visão grandiosa de modernização construída com base nas raízes e preconceitos do grupo, que tendia a ver os camponeses, a grande maioria da nação, como tabula rasa, ou seja, algo que podia ser completamente remodelado de acordo com os seus planos para o futuro (Geffray, 1991; Hall e Young, 1997; O’Laughlin, 2000).

Como fez notar Fry, o período marxista-leninista de Moçambique (1977-1983) seguia, de facto, uma lógica assimilacionista:

"Apesar do discurso anticolonial do centro e da FRELIMO, em geral, é impossível deixar de observar que o projecto socialista em Moçambique era acima de tudo mais «assimilacionista» do que os portugueses jamais se atreveriam a imaginar e é tentador sugerir que esta é uma das razões pelas quais a elite moçambicana considerava tão atractivo o programa socialista. Em termos estruturais, havia pouca diferença entre um Estado autoritário capitalista governado por um pequeno grupo de portugueses e assimilados «esclarecidos» e um Estado autoritário socialista gerido por um igualmente reduzido e esclarecido grupo de vanguarda" [2000, p. 129].

Fry sugere que, a partir do fim da guerra civil, a elite da FRELIMO começou a reconceptualizar o seu lugar no tecido nacional e a defender uma perspectiva mais local e menos elitista. Esta evolução acompanha a mudança da lógica de poder em Moçambique, pois torna-se agora necessário à FRELIMO distanciar-se das suas raízes assimiladas e alargar a sua base de apoio. Assim, para Fry, é como se a FRELIMO, que desde sempre desprezara o quadro cultural da maioria da nação, tivesse, finalmente, de se submeter a ele, ou pelo menos de o respeitar (2000, p. 135).

Fry defende um ponto importante ao reconhecer algumas das continuidades ideológicas entre o sistema da assimilação e o projecto socialista pós-independência. Ao contrário do que se passava no período colonial, em que os benefícios da assimilação eram restritos a alguns poucos que serviam de exemplo aos seus irmãos mergulhados nas trevas da ignorância, a elite da FRELIMO pretendia recriar toda a nação à sua imagem. Não pretendo afirmar, porém, que o socialismo em Moçambique tenha sido apenas um projecto mais ambicioso de assimilação. Embora o sistema assimilacionista possa ter fornecido uma base ao socialismo da FRELIMO, as diferenças entre ambos são muito reais. Para alcançar o estatuto de assimilado, um indígena tinha necessariamente de satisfazer determinados critérios legais, e a verdade era que esse seu novo estatuto não era mais do que uma entrada parcial no projecto de modernização colonial. Pelo contrário, o objectivo da FRELIMO era subverter inteiramente este sistema e criar a sua própria forma de modernidade.

Durante a fase inicial do período socialista, o âmago do programa da FRELIMO para a construção de uma nação moderna era a criação de um homem novo. Na perspectiva dos líderes revolucionários, este processo tinha já começado nas zonas libertadas que a FRELIMO tivera sob o seu controlo durante o período de luta armada contra os portugueses. O homem novo seria algo completamente diferente. De acordo com um dos principais teóricos da FRELIMO neste domínio específico, Sérgio Vieira, o homem novo representava uma ruptura decisiva com as suas encarnações anteriores — homem feudal, homem colonial e homem burguês (1977, p. 3). O homem burguês era de importância relativamente menor na análise de Vieira, já que em Moçambique, durante o período colonial, não se tinham desenvolvido as condições necessárias à criação em ampla escala de uma burguesia independente. Após a partida dos portugueses existia apenas uma pequena burguesia (ibid., p. 9). De muito maior importância eram o homem feudal e o homem colonial. O primeiro estava ligado à cultura e às estruturas de poder «tradicionais», descritas como desiguais, patriarcais, gerontocráticas, supersticiosas e estáticas. Todavia, de acordo com Vieira, este sistema não existia por si só, mas enquanto subsidiário do colonialismo, já que até o mais poderoso chefe indígena devia obediência ao mais subalterno dos funcionários coloniais (ibid., p. 11). A última categoria, a do homem colonial, correspondia aos assimilados: «[o homem colonial] é um pequeno-burguês que procura recuperar e integrar modelos tradicionais, feudais, na sociedade burguesa» (ibid., p. 9).

À excepção dos antigos assimilados, ninguém sabia ao certo o que seria este homem novo. Teria de se basear na ciência, na «racionalidade» e no trabalho colectivo, mas estava ainda em processo, era algo que não nascera ainda por completo (ibid., p. 25). Os assimilados tomavam como modelo a identidade nacional portuguesa; pelo contrário, o homem novo seria um ser universal, bem como a encarnação da emergente personalidade e cidadania moçambicana. De acordo com Cahen, este processo era uma criação de uma elite que não concebia a existência de um Estado sem uma nação e procurava, assim, criar uma nação à sua imagem (1992 e 1993). Ainda que esta ideia de uma recriação dramática da personalidade moçambicana pudesse ter interessado relativamente pouco à vasta maioria da população, o seu poder de atracção para os militantes da FRELIMO era bastante real. Como me foi dito por um antigo membro do partido: «Ser chamado um homem novo por Samora Machel era verdadeiramente emocionante. Nós íamos construir uma nova nação, parte de um novo mundo, era tudo urgente [...] vivíamos num estado permanente de exultação.» O homem novo seria a expressão concreta — ou, para usar a terminologia da época, a vanguarda — do grande projecto de modernização. Seria um novo tipo de cidadão, a verdadeira encarnação da ideologia de modernidade da FRELIMO.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (2)

AS ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS DA ELITE MOÇAMBICANA DOMINANTE


Existem em Moçambique diversos grupos que podem reivindicar o título de elite — os régulos (autoridades «tradicionais»), os líderes religiosos, os estrangeiros associados a organizações internacionais poderosas, os membros mais importantes da classe mercantil indiana e os altos membros da RENAMO, antigos rebeldes que constituem hoje o partido de oposição oficial. Neste artigo concentrar-me-ei num grupo específico que parece constituir a elite socialmente dominante, ainda que não incontestada, de Moçambique e que é essencialmente composto pelos membros do partido governante da FRELIMO e pelos seus familiares e associados próximos. Não pretendo afirmar que este grupo é completamente homogéneo; de facto, existem diversas facções e clivagens sociais no seu seio. Tais clivagens estão relacionadas com os diversos antecedentes sociais dos membros da elite e incluem a etnia, a região, a religião e o nível de instrução. Existem também fissuras entre a velha guarda revolucionária, que participou na luta pela libertação, aqueles que aderiram ao partido pouco depois e a nova geração de «tecnocratas» que assumiram posições de destaque na fase final do período socialista ou já depois do mesmo. Algumas das actuais facções dentro da hierarquia da FRELIMO resultam destas diferenças, ainda que tendam geralmente a emergir em torno de tópicos como o papel da economia de mercado, a democratização e outras grandes questões. Embora muitos membros da elite tenham sérias divergências de opinião e, em privado, possam manifestar verdadeira animosidade uns pelos outros, há que não exagerar a importância destas clivagens. Para a liderança baseada em Maputo, pelo menos até ao momento, essas diferenças tendem a ser limitadas por um conjunto mais alargado de interesses comuns. É frequente a pertença simultânea a diversas facções, com pessoas a juntarem-se a uma ou outra em função do assunto em causa (Sumich e Honwana, 2007; Sumich, no prelo). Grande parte da liderança baseada na FRELIMO mantém-se unida através de laços de lealdade mútua, de amizade e por vezes de parentesco, bem como por meio de um sentido de identidade partilhada, resultante de experiências similares e reforçada por uma base ideológica. Embora as fissuras internas sejam muito reais, a elite de Maputo tem conseguido apresentar ao mundo exterior uma frente mais ou menos unida. Passarei de seguida a explicar as origens desta ideologia partilhada e as razões pelas quais constitui uma característica tão marcante dos estratos mais destacados da elite de Maputo.

A ideologia de modernidade defendida pelos membros da elite da FRELIMO está intimamente relacionada com os seus antecedentes sociais e a sua situação dentro do sistema colonial. A FRELIMO surgiu em 1962 como uma frente alargada que aliava três partidos de cariz mais regional (Mondlane, 1969; Newitt, 1995). Os primeiros anos do partido foram marcados pelo facciosismo e pela dissenção interna (Opello, 1975). Finalmente, entre 1968 e 1970, após uma série de lutas intestinas e do assassinato do primeiro líder, Eduardo Mondlane, as divisões internas atingiram o seu desfecho. A principal divisão do partido resultava da oposição entre as duas facções principais — uma radical e outra mais conservadora. A facção conservadora pretendia centrar os esforços na independência e, regra geral, seguia uma linha afro-nacionalista, enquanto a facção radical estava empenhada em universalizar a revolução social, vendo a independência apenas como um primeiro passo. O objectivo dos radicais era assumir o controlo do Estado e utilizar esse poder para remodelar completamente Moçambique e construir uma nova sociedade. Em 1970, a facção radical tinha triunfado sobre os seus adversários mais conservadores e unira o partido sob a sua liderança, ou, pelo menos, decidira adiar as divergências internas para depois da obtenção da independência (Vines, 1996). A facção radical assentava numa aliança entre uma pequena coligação de assimilados urbanos do Sul, mulatos, brancos e indianos, e uma elite emergente, mais rural, de moçambicanos do Norte educados em missões, excluindo frequentemente muitas elites do Centro do país que tinham antecedentes sociais diferentes (Hall e Young, 1997)(5). Embora os nortenhos, mais rurais, representassem uma secção importante da elite governante, concentrar-me-ei aqui nos assimilados do Sul, já que grande parte da ideologia da elite de Maputo é o resultado das experiências deste grupo, constituindo a base do «campo unificador» dentro do qual a elite tem operado. Os radicais do Sul eram não apenas comparativamente mais instruídos e mais empenhados na implementação da política geral da FRELIMO, como também desempenharam um papel central na formação da ideologia de modernidade, tendo deixado no partido e no Estado uma marca profunda que se manteve até ao período actual, mais tecnocrático.

Para compreendermos os tipos de posições ideológicas defendidas pela liderança da FRELIMO teremos de recuar à fase tardia do período colonial (1930-1975). Os assimilados constituíam uma elite africana emergente, em grande medida criada pelo Estado colonial com vista a limitar o poder das velhas elites crioulas (Cahen, 1992 e 1993). Este grupo tinha, geralmente, laços muito mais fracos com as formas de poder «tradicionais», constituindo, durante o período colonial, uma espécie de pequena burguesia africana, que era uma reduzidíssima minoria dentro da população indígena de Moçambique. Uma das estimativas mais comuns contabiliza-os em cerca de 5000 indivíduos numa população que rondaria os 8 200 000 antes da libertação (Sheldon, 2002). A estimativa talvez peque por defeito, já que inclui apenas as famílias mais importantes da classe dos assimilados (6). No entanto, independentemente do seu número total, os assimilados exerceram até à abolição oficial do sistema, em 1961, uma influência desproporcionada em relação à sua pequena dimensão numérica.

Para se obter o estatuto de assimilado era necessário satisfazer determinados critérios legais. Os candidatos tinham de jurar lealdade ao Estado colonial, falar apenas português nas suas casas, adoptar hábitos «europeus», abandonar crenças «bárbaras» e obter um atestado de um funcionário português que garantisse a sua probidade. Quem cumprisse estes requisitos recebia, teoricamente, os mesmos direitos legais que os portugueses. Embora assim não fosse na prática, os assimilados obtinham de facto uma ampla variedade de privilégios, como a isenção de trabalhos forçados, o acesso facilitado à residência urbana, à educação e ao emprego, e um pequeno conjunto de direitos civis, passando a estar sob a alçada da lei civil, ao contrário dos indígenas, que estavam sujeitos à lei «consuetudinária» (Mondlane, 1969; O’Laughlin, 2000; Penvenne, 1982 e 1989). Os assimilados tinham a possibilidade de obter um emprego nos mais altos bastiões da economia colonial a que um indivíduo de cor poderia aspirar, tornando-se assim enfermeiros, professores, ferroviários e pequenos funcionários públicos. O sistema colonial tendia a concentrar o capital mercantil nas mãos de interesses estrangeiros, pelo que a burocracia era a única via acessível a esta elite colonial emergente (Cahen, 1993, p. 49). Graças a estes privilégios, os assimilados eram geralmente vistos como um grupo à parte, distinto dos portugueses, bem como do resto da população africana (Penvenne, 1982).


(5) Durante o período colonial, os assimilados constituíam uma categoria privilegiada e detinham «tecnicamente» os mesmos direitos que os colonos portugueses. Se bem que muitos destes direitos não tivessem expressão prática, estes indivíduos gozavam de vantagens significativas em comparação com os chamados indígenas, que constituíam a vasta maioria da população africana de Moçambique.

(6) De acordo com uma comunicação pessoal de Paulo Granjo, fontes primárias (AHM 1961) contabilizam 1658 pessoas, incluindo as crianças, que obtiveram o estatuto de assimilado em Moçambique desde o início de 1950 até ao final de 1960, último ano em que este vigorou oficialmente. Tendo este estatuto sido instituído em 1917, é plausível que o número global de assimilados fosse superior à estimativa citada, mas não de uma forma muito marcante.