sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Os acontecimentos em Moçambique (2)
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Os acontecimentos em Moçambique
- Moçambique e o Outro Lado da Mesma História - No A Minha Mosca (autor anónimo).
- Confrontos chegaram à Beira - notícia da TSF, que dá conta de quatro mortos na segunda maior cidade de Moçambique.
- Moçambique, a Voz da Fome - por Francisco Louçã no Facebook.
- Da Sociologia Apressada - por jpt, no Ma-Schamba.
- Também no Ma-Schamba, uma reportagem fotográfica sobre as manifestações.
quinta-feira, 17 de junho de 2010
Sobre o tráfico de droga em Moçambique
Também em 1995, um laboratório para a produção de mandrax foi descoberto no bairro Trevo, na cidade da Matola. As pessoas que lá trabalhavam atearam-lhe fogo, mas esta tentativa de destruir as provas não deu certo, e os policiais concluíram que o equipamento existente era para a produção em massa de mandrax, uma droga para a qual existe um grande mercado na África do Sul. Os dez trabalhadores asiáticos presos no Trevo, na sua maioria recrutados nas ruas de Bombaim, foram liberados pelo procurador provincial de Maputo, Luis Muthisse, apesar de um juiz se ter recusado a conceder-lhes fiança. A intervenção do Muthisse (que perdeu seu trabalho neste escândalo) foi um dos muitos indícios de conluio de alto nível com os traficantes.
Os dez asiáticos, apesar de serem paupérrimos, foram capazes de contratar os serviços de um advogado de topo, Maximo Dias, que se recusou a dizer aos repórteres quem lhe estava pagando. Coincidentemente, Dias é agora o advogado de Mohamed Bachir Suleman. Os equipamentos para a fabricação do mandrax tinham sido importados através da empresa de pesca Afropesca. O director-geral da Afropesca, o empresário espanhol Luis da Costa Virott, foi preso, sob suspeita de tráfico de haxixe do Paquistão para Moçambique. Como os dez asiáticos, ele foi misteriosamente libertado após a intervenção de um advogado português de renome. A liberação foi condicionada a Virott permanecer no país - mas alguns dias depois ele estava num avião rumo a Lisboa e não houve nenhuma tentativa para detê-lo.
Em Agosto de 1997, 12 toneladas de haxixe foram apreendidas a partir de um esconderijo em Quissanga, na província nortenha de Cabo Delgado. Um empresário conhecido, Gulamo Rassul, foi preso em conexão com este caso. Esta foi a sua segunda prisão em conexão com drogas - ele já havia sido nomeado em conexão com o tráfico de haxixe para a América e Europa a partir do porto de Nacala, em recipientes onde a droga era disfarçada como chá. Quando este caso foi a julgamento no ano seguinte, intervenientes menores – pescadores de Quissanga e proprietários de embarcações – receberam longas sentenças, mas os homens que a acusação considerava como os barões da droga, Rassul e um certo Momade Bachir (nenhuma relação com Bachir Suleman), foram absolvidos. Assim, o motorista de Rassul apanhou uma pena de cadeia de 12 anos, mas o juiz levou o público a acreditar que Rassul não sabia nada da actividade do seu motorista. Tráfico ocorre também de barco pelo Canal de Moçambique, em águas territoriais de Moçambique. Isso veio à luz dramaticamente quando um barco que transportava haxixe encalhou nas rochas ao largo da costa da província de Inhambane, em Junho de 2000. Cerca de 16 toneladas de haxixe acondicionado em latas deram à costa. Os nove paquistaneses que escaparam do naufrágio foram condenados a longas penas de prisão. Mas nada de novo foi revelado sobre o destino do haxixe ou os seus proprietários. Aqueles que têm investigado o tráfico de drogas, chegaram a algumas conclusões surpreendentes. Com sede em Londres, o jornalista Joseph Hanlon escreveu, num artigo publicado em 28 de Junho de 2001, no “Metical” editado por Carlos Cardoso, que “o valor das drogas ilegais passando por Moçambique é provavelmente mais do que todo o comércio externo legal combinado, de acordo com peritos internacionais” (Isso foi antes da fundição de alumínio Mozal, a base das exportações de Moçambique, ter atingido a sua produção de cruzeiro). Esses peritos (que não foram nomeados) “estimam que mais de uma tonelada por mês de cocaína e heroína estão agora passando por Moçambique”. Aquele tráfico de drogas mensais tinham um valor de retalho estimado em cerca de 50 milhões de US dólares.
Dado que Moçambique é essencialmente uma via de trânsito ao invés de um consumidor de drogas ilícitas, a maior parte do dinheiro das operações acaba fora do país. Mas Hanlon sugeriu que talvez 10 por cento fosse a quota dispensada aos traficantes locais - o que seriam 60 milhões de dólares por ano. Hanlon sugeriu que “o dinheiro da droga deve ser um dos factores dos crescimentos recorde de Moçambique nos últimos anos”. Este artigo identificou duas rotas da droga. Hanlon escreveu que a heroína se movimenta do Paquistão para o Dubai, em seguida, para a Tanzânia e Moçambique, antes que seja eventualmente canalizada para a Europa. A rota da cocaína está noutra direcção “da Colômbia para o Brasil, depois para Moçambique a caminho da Europa e da Ásia Oriental”. Hanlon alegou que o dinheiro destas drogas duras, mas também do haxixe e mandrax, é lavado por meio de bancos e casas de câmbio. A explosão do número de casas de câmbio (41 no momento do artigo de Hanlon) é certamente difícil de explicar, dado o tamanho relativamente pequeno da economia legal. O artigo de Hanlon, não suscitou qualquer desmentido indignado. Nenhuma fonte oficial tentou refutar as afirmações de Hanlon. E Hanlon estava longe de estar sozinho no alerta para os perigos do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e o crime organizado.
Num discurso feito num seminário internacional realizado em Coimbra em 2003, o juiz Augusto Paulino, agora PGR, assinalou muitos dos mesmos pontos. Ele concordou que Moçambique se tornou uma zona de trânsito no tráfico de cocaína e que uma segunda rede “activa desde 1992, constituída principalmente por cidadãos paquistaneses e moçambicanos de origem paquistanesa, se está concentrando em haxixe e mandrax”. No topo disto, vem a rota da heroína, a partir do Paquistão para a Tanzânia e Moçambique e depois para a Europa. “As várias redes de tráfico de drogas são empresas bem organizadas”, disse Paulino, “talvez mais organizadas do que as estruturas do Estado, envolvendo importadores, exportadores e transportadores de drogas, operadores no terreno e informantes”. Paulino não tinha dúvidas de que isso só foi possível com a conivência de funcionários corruptos dentro do Estado moçambicano. “Os funcionários aduaneiros são subornados para deixar as drogas passarem, os oficiais de imigração facilitam documentos de identificação e de residência, os policiais são pagos para olhar para o lado, e é ainda dito que os magistrados recebem subornos para ordenar liberações ilegais”, observou ele. Os lucros da droga foram lavados, e o resultado foi a proliferação de “mansões e carros de luxo” - mas parte do dinheiro seria “reinvestido” em negócios legais para dissipar suspeitas no futuro”.
Nos sete anos desde que Paulino falou, nenhum traficante significativo foi preso, mas há poucas dúvidas de que Moçambique continue no mapa dos traficantes. Regularmente serviços policiais e aduaneiros anunciam a apreensão de cocaína nos aeroportos de Maputo e Beira, muitas vezes transportada no estômago de jovens mulheres moçambicanas que viajam a partir do Brasil. Em nenhum caso, as mulheres revelaram quem as contratou. O medo de represálias é claramente maior do que o medo da prisão. E por todos aqueles que estão presos - quantos mais passam os aeroportos sem serem detectados? Um dos parlamentares mais experientes no Partido Frelimo, Teodato Hunguana, em 2002, advertiu que se o Estado não tomar medidas contra os bandidos, serão os bandidos a capturar o Estado. “A única maneira de impedir que o Estado caia definitivamente nas malhas do crime é desencadear uma guerra sem quartel contra os senhores do crime”, disse Hunguana. Se a guerra fôr limitada apenas aos homens do gatilho e aos peixes pequenos, deixando de fora o que os americanos chamam de “barões” intocáveis, isto permitirá que eles” se tornem cada vez mais poderosos e capazes de tomarem o próprio Estado”.
Quando Paulino ou Hunguana fizeram soar as suas advertências, eles foram amplamente aplaudidos pelos meios de comunicação do país - os mesmos media que hoje levantam as mãos horrorizados por o presidente norte-americano e o Departamento do Tesouro terem dado um passo sério na luta contra o crime organizado. É claro que teria sido muito melhor se os departamentos moçambicanos encarregues da aplicação da lei e ordem moçambicana estivessem dispostos e aptos a identificar e trazer à justiça os barões da droga. Porque não fizeram isso, é perfeitamente razoável que os americanos tenham decidido tomar medidas para proteger o seu sistema financeiro de dinheiro sujo de Moçambique, assim como eles fazem quando o dinheiro vem da Colômbia. Obama merece elogios pela sua acção, e não um coro abusado de antiamericanismo barato.
Sérgio Santimano, via Ponte Moçambique-Suécia
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (8 e final)
quarta-feira, 16 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (7)
domingo, 13 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (6)
terça-feira, 8 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (5)
(7) Para uma crítica em profundidade de Geffray, v. Dinerman (1994).
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (4)
terça-feira, 1 de junho de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (3)
Os assimilados que constituíam a facção radical da FRELIMO eram sobretudo oriundos do Sul, em particular da capital e da região interior vizinha (Minter, 1996). Embora os críticos do partido usassem este facto para afirmar que a FRELIMO sofria de um «domínio sulista», o problema talvez esteja mais relacionado com a economia política colonial, os antecedentes sociais e as oportunidades educacionais do que com laços étnicos ou regionais específicos. Devido à localização da capital no Sul e à proximidade desta região com os mercados da África do Sul, verificavam-se aqui mais oportunidades de envolvimento no comércio e na migração laboral e de acesso ao sector governamental, de base urbana (Pitcher, 2002). Além disso, os sulistas beneficiavam do acesso às escolas das missões protestantes, que tinham sido impedidas de trabalhar no Centro e no Norte do país. Estas escolas proporcionavam a melhor educação disponível aos negros (Cruz e Silva, 1998 e 2001; Pitcher, 2002). Os sulistas eram, pois, maioritariamente oriundos de contextos urbanos ou periurbanos e, embora muitos deles procedessem de famílias com origens nobres ou de alto estatuto no período pré-colonial, estavam já profundamente integrados na economia colonial e o seu estatuto assentava na posição que ocupavam dentro da hierarquia colonial. Contudo, tornou-se visível que a sua mobilidade social seria sempre limitada e o aumento da imigração portuguesa após a Segunda Guerra Mundial deixou-os numa situação precária. Muitos sentiam uma forte atracção pelos aspectos do progresso que o colonialismo afirmava representar; porém, devido às restrições do sistema, a modernidade à qual aspiravam parecia estar sempre para lá do seu alcance (Hall e Young, 1997). O descontentamento cresceu entre os assimilados, que se uniram na defesa de causas comuns a outros grupos igualmente insatisfeitos com o sistema colonial — brancos radicais, mulatos (miscigenados) e indianos. Durante a luta pela libertação, estes grupos, aliados aos comandantes das guerrilhas do Norte, formaram a facção radical da FRELIMO. Isto não significa que todos os assimilados tenham aderido à FRELIMO. De facto, muitos deles não o fizeram, e a liderança da FRELIMO olhava-os com profunda desconfiança, pois não tinham sido «purificados» pela sua participação na luta (Hall e Young, 1997; Pitcher, 2002). A própria pequenez deste grupo — uma minoria dentro de uma minoria — contribuía para a sua unidade e coesão, mas causou também muitos problemas no período após a independência. Como me foi dito por um professor universitário moçambicano: «O nosso problema era que tínhamos uma elite suficientemente grande para formar um movimento, mas não suficientemente grande para governar o país.» Porém, as origens comuns dos membros deste grupo, oriundos da classe assimilada sobretudo urbana ou não agrícola, ajudaram a criar uma visão específica sobre a criação de uma nova nação após a obtenção da independência, que ocorreria em 1975. Tratava-se de uma visão grandiosa de modernização construída com base nas raízes e preconceitos do grupo, que tendia a ver os camponeses, a grande maioria da nação, como tabula rasa, ou seja, algo que podia ser completamente remodelado de acordo com os seus planos para o futuro (Geffray, 1991; Hall e Young, 1997; O’Laughlin, 2000).
Como fez notar Fry, o período marxista-leninista de Moçambique (1977-1983) seguia, de facto, uma lógica assimilacionista:
"Apesar do discurso anticolonial do centro e da FRELIMO, em geral, é impossível deixar de observar que o projecto socialista em Moçambique era acima de tudo mais «assimilacionista» do que os portugueses jamais se atreveriam a imaginar e é tentador sugerir que esta é uma das razões pelas quais a elite moçambicana considerava tão atractivo o programa socialista. Em termos estruturais, havia pouca diferença entre um Estado autoritário capitalista governado por um pequeno grupo de portugueses e assimilados «esclarecidos» e um Estado autoritário socialista gerido por um igualmente reduzido e esclarecido grupo de vanguarda" [2000, p. 129].
Fry sugere que, a partir do fim da guerra civil, a elite da FRELIMO começou a reconceptualizar o seu lugar no tecido nacional e a defender uma perspectiva mais local e menos elitista. Esta evolução acompanha a mudança da lógica de poder em Moçambique, pois torna-se agora necessário à FRELIMO distanciar-se das suas raízes assimiladas e alargar a sua base de apoio. Assim, para Fry, é como se a FRELIMO, que desde sempre desprezara o quadro cultural da maioria da nação, tivesse, finalmente, de se submeter a ele, ou pelo menos de o respeitar (2000, p. 135).
Fry defende um ponto importante ao reconhecer algumas das continuidades ideológicas entre o sistema da assimilação e o projecto socialista pós-independência. Ao contrário do que se passava no período colonial, em que os benefícios da assimilação eram restritos a alguns poucos que serviam de exemplo aos seus irmãos mergulhados nas trevas da ignorância, a elite da FRELIMO pretendia recriar toda a nação à sua imagem. Não pretendo afirmar, porém, que o socialismo em Moçambique tenha sido apenas um projecto mais ambicioso de assimilação. Embora o sistema assimilacionista possa ter fornecido uma base ao socialismo da FRELIMO, as diferenças entre ambos são muito reais. Para alcançar o estatuto de assimilado, um indígena tinha necessariamente de satisfazer determinados critérios legais, e a verdade era que esse seu novo estatuto não era mais do que uma entrada parcial no projecto de modernização colonial. Pelo contrário, o objectivo da FRELIMO era subverter inteiramente este sistema e criar a sua própria forma de modernidade.
Durante a fase inicial do período socialista, o âmago do programa da FRELIMO para a construção de uma nação moderna era a criação de um homem novo. Na perspectiva dos líderes revolucionários, este processo tinha já começado nas zonas libertadas que a FRELIMO tivera sob o seu controlo durante o período de luta armada contra os portugueses. O homem novo seria algo completamente diferente. De acordo com um dos principais teóricos da FRELIMO neste domínio específico, Sérgio Vieira, o homem novo representava uma ruptura decisiva com as suas encarnações anteriores — homem feudal, homem colonial e homem burguês (1977, p. 3). O homem burguês era de importância relativamente menor na análise de Vieira, já que em Moçambique, durante o período colonial, não se tinham desenvolvido as condições necessárias à criação em ampla escala de uma burguesia independente. Após a partida dos portugueses existia apenas uma pequena burguesia (ibid., p. 9). De muito maior importância eram o homem feudal e o homem colonial. O primeiro estava ligado à cultura e às estruturas de poder «tradicionais», descritas como desiguais, patriarcais, gerontocráticas, supersticiosas e estáticas. Todavia, de acordo com Vieira, este sistema não existia por si só, mas enquanto subsidiário do colonialismo, já que até o mais poderoso chefe indígena devia obediência ao mais subalterno dos funcionários coloniais (ibid., p. 11). A última categoria, a do homem colonial, correspondia aos assimilados: «[o homem colonial] é um pequeno-burguês que procura recuperar e integrar modelos tradicionais, feudais, na sociedade burguesa» (ibid., p. 9).
À excepção dos antigos assimilados, ninguém sabia ao certo o que seria este homem novo. Teria de se basear na ciência, na «racionalidade» e no trabalho colectivo, mas estava ainda em processo, era algo que não nascera ainda por completo (ibid., p. 25). Os assimilados tomavam como modelo a identidade nacional portuguesa; pelo contrário, o homem novo seria um ser universal, bem como a encarnação da emergente personalidade e cidadania moçambicana. De acordo com Cahen, este processo era uma criação de uma elite que não concebia a existência de um Estado sem uma nação e procurava, assim, criar uma nação à sua imagem (1992 e 1993). Ainda que esta ideia de uma recriação dramática da personalidade moçambicana pudesse ter interessado relativamente pouco à vasta maioria da população, o seu poder de atracção para os militantes da FRELIMO era bastante real. Como me foi dito por um antigo membro do partido: «Ser chamado um homem novo por Samora Machel era verdadeiramente emocionante. Nós íamos construir uma nova nação, parte de um novo mundo, era tudo urgente [...] vivíamos num estado permanente de exultação.» O homem novo seria a expressão concreta — ou, para usar a terminologia da época, a vanguarda — do grande projecto de modernização. Seria um novo tipo de cidadão, a verdadeira encarnação da ideologia de modernidade da FRELIMO.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (2)
AS ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS DA ELITE MOÇAMBICANA DOMINANTE
Existem em Moçambique diversos grupos que podem reivindicar o título de elite — os régulos (autoridades «tradicionais»), os líderes religiosos, os estrangeiros associados a organizações internacionais poderosas, os membros mais importantes da classe mercantil indiana e os altos membros da RENAMO, antigos rebeldes que constituem hoje o partido de oposição oficial. Neste artigo concentrar-me-ei num grupo específico que parece constituir a elite socialmente dominante, ainda que não incontestada, de Moçambique e que é essencialmente composto pelos membros do partido governante da FRELIMO e pelos seus familiares e associados próximos. Não pretendo afirmar que este grupo é completamente homogéneo; de facto, existem diversas facções e clivagens sociais no seu seio. Tais clivagens estão relacionadas com os diversos antecedentes sociais dos membros da elite e incluem a etnia, a região, a religião e o nível de instrução. Existem também fissuras entre a velha guarda revolucionária, que participou na luta pela libertação, aqueles que aderiram ao partido pouco depois e a nova geração de «tecnocratas» que assumiram posições de destaque na fase final do período socialista ou já depois do mesmo. Algumas das actuais facções dentro da hierarquia da FRELIMO resultam destas diferenças, ainda que tendam geralmente a emergir em torno de tópicos como o papel da economia de mercado, a democratização e outras grandes questões. Embora muitos membros da elite tenham sérias divergências de opinião e, em privado, possam manifestar verdadeira animosidade uns pelos outros, há que não exagerar a importância destas clivagens. Para a liderança baseada em Maputo, pelo menos até ao momento, essas diferenças tendem a ser limitadas por um conjunto mais alargado de interesses comuns. É frequente a pertença simultânea a diversas facções, com pessoas a juntarem-se a uma ou outra em função do assunto em causa (Sumich e Honwana, 2007; Sumich, no prelo). Grande parte da liderança baseada na FRELIMO mantém-se unida através de laços de lealdade mútua, de amizade e por vezes de parentesco, bem como por meio de um sentido de identidade partilhada, resultante de experiências similares e reforçada por uma base ideológica. Embora as fissuras internas sejam muito reais, a elite de Maputo tem conseguido apresentar ao mundo exterior uma frente mais ou menos unida. Passarei de seguida a explicar as origens desta ideologia partilhada e as razões pelas quais constitui uma característica tão marcante dos estratos mais destacados da elite de Maputo.
A ideologia de modernidade defendida pelos membros da elite da FRELIMO está intimamente relacionada com os seus antecedentes sociais e a sua situação dentro do sistema colonial. A FRELIMO surgiu em 1962 como uma frente alargada que aliava três partidos de cariz mais regional (Mondlane, 1969; Newitt, 1995). Os primeiros anos do partido foram marcados pelo facciosismo e pela dissenção interna (Opello, 1975). Finalmente, entre 1968 e 1970, após uma série de lutas intestinas e do assassinato do primeiro líder, Eduardo Mondlane, as divisões internas atingiram o seu desfecho. A principal divisão do partido resultava da oposição entre as duas facções principais — uma radical e outra mais conservadora. A facção conservadora pretendia centrar os esforços na independência e, regra geral, seguia uma linha afro-nacionalista, enquanto a facção radical estava empenhada em universalizar a revolução social, vendo a independência apenas como um primeiro passo. O objectivo dos radicais era assumir o controlo do Estado e utilizar esse poder para remodelar completamente Moçambique e construir uma nova sociedade. Em 1970, a facção radical tinha triunfado sobre os seus adversários mais conservadores e unira o partido sob a sua liderança, ou, pelo menos, decidira adiar as divergências internas para depois da obtenção da independência (Vines, 1996). A facção radical assentava numa aliança entre uma pequena coligação de assimilados urbanos do Sul, mulatos, brancos e indianos, e uma elite emergente, mais rural, de moçambicanos do Norte educados em missões, excluindo frequentemente muitas elites do Centro do país que tinham antecedentes sociais diferentes (Hall e Young, 1997)(5). Embora os nortenhos, mais rurais, representassem uma secção importante da elite governante, concentrar-me-ei aqui nos assimilados do Sul, já que grande parte da ideologia da elite de Maputo é o resultado das experiências deste grupo, constituindo a base do «campo unificador» dentro do qual a elite tem operado. Os radicais do Sul eram não apenas comparativamente mais instruídos e mais empenhados na implementação da política geral da FRELIMO, como também desempenharam um papel central na formação da ideologia de modernidade, tendo deixado no partido e no Estado uma marca profunda que se manteve até ao período actual, mais tecnocrático.
Para compreendermos os tipos de posições ideológicas defendidas pela liderança da FRELIMO teremos de recuar à fase tardia do período colonial (1930-1975). Os assimilados constituíam uma elite africana emergente, em grande medida criada pelo Estado colonial com vista a limitar o poder das velhas elites crioulas (Cahen, 1992 e 1993). Este grupo tinha, geralmente, laços muito mais fracos com as formas de poder «tradicionais», constituindo, durante o período colonial, uma espécie de pequena burguesia africana, que era uma reduzidíssima minoria dentro da população indígena de Moçambique. Uma das estimativas mais comuns contabiliza-os em cerca de 5000 indivíduos numa população que rondaria os 8 200 000 antes da libertação (Sheldon, 2002). A estimativa talvez peque por defeito, já que inclui apenas as famílias mais importantes da classe dos assimilados (6). No entanto, independentemente do seu número total, os assimilados exerceram até à abolição oficial do sistema, em 1961, uma influência desproporcionada em relação à sua pequena dimensão numérica.
Para se obter o estatuto de assimilado era necessário satisfazer determinados critérios legais. Os candidatos tinham de jurar lealdade ao Estado colonial, falar apenas português nas suas casas, adoptar hábitos «europeus», abandonar crenças «bárbaras» e obter um atestado de um funcionário português que garantisse a sua probidade. Quem cumprisse estes requisitos recebia, teoricamente, os mesmos direitos legais que os portugueses. Embora assim não fosse na prática, os assimilados obtinham de facto uma ampla variedade de privilégios, como a isenção de trabalhos forçados, o acesso facilitado à residência urbana, à educação e ao emprego, e um pequeno conjunto de direitos civis, passando a estar sob a alçada da lei civil, ao contrário dos indígenas, que estavam sujeitos à lei «consuetudinária» (Mondlane, 1969; O’Laughlin, 2000; Penvenne, 1982 e 1989). Os assimilados tinham a possibilidade de obter um emprego nos mais altos bastiões da economia colonial a que um indivíduo de cor poderia aspirar, tornando-se assim enfermeiros, professores, ferroviários e pequenos funcionários públicos. O sistema colonial tendia a concentrar o capital mercantil nas mãos de interesses estrangeiros, pelo que a burocracia era a única via acessível a esta elite colonial emergente (Cahen, 1993, p. 49). Graças a estes privilégios, os assimilados eram geralmente vistos como um grupo à parte, distinto dos portugueses, bem como do resto da população africana (Penvenne, 1982).
(5) Durante o período colonial, os assimilados constituíam uma categoria privilegiada e detinham «tecnicamente» os mesmos direitos que os colonos portugueses. Se bem que muitos destes direitos não tivessem expressão prática, estes indivíduos gozavam de vantagens significativas em comparação com os chamados indígenas, que constituíam a vasta maioria da população africana de Moçambique.
(6) De acordo com uma comunicação pessoal de Paulo Granjo, fontes primárias (AHM 1961) contabilizam 1658 pessoas, incluindo as crianças, que obtiveram o estatuto de assimilado em Moçambique desde o início de 1950 até ao final de 1960, último ano em que este vigorou oficialmente. Tendo este estatuto sido instituído em 1917, é plausível que o número global de assimilados fosse superior à estimativa citada, mas não de uma forma muito marcante.
