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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Immanuel Wallerstein - China e Estados Unidos: bem além dos mitos


As relações entre a China e os Estados Unidos são uma grande preocupação dos que se preocupam com política (jornalistas, blogueiros, políticos, burocratas internacionais). A análise tradicional vê uma superpotência em declínio – os Estados Unidos – e um país que emerge rapidamente – a China. No mundo ocidental, a relação normalmente é definida como negativa, sendo a China vista como uma “ameaça”. Mas uma ameaça a quem, e em que sentido?
Alguns vêem a “emergência” da China como a retomada de uma posição central no mundo – que o país já teve e estaria retomando. Outros enxergam um processo mais recente: Beijing estaria desempenhando um novo papel nas relações geopolíticas e económicas no sistema-mundo moderno.
Desde meados do século XIX, as relações entre os dois países tem sido ambígua. Por um lado, naquele momento os Estados Unidos começaram a expandir suas rotas de comércio com a China. Enviaram missionários cristãos. Na virada do século XX, proclamaram a Política das Portas Abertas, menos dirigida para a China do que para outras potências europeias. Pouco tempo depois, participaram, com outros países ocidentais, na campanha que sufocou a rebelião Boxer, contra imperialistas estrangeiros. Dentro dos Estados Unidos, o governo (e os sindicatos) procuraram evitar a imigração de chineses.
Por outro lado, havia um certo respeito – com algumas marcas de inveja – pela civilização chinesa. O extremo leste (China e Japão) eram os locais preferidos para trabalhos de missionários, à frente da Índia e da África, com a justificativa na suposição de que a China era uma civilização “mais avançada”. Talvez a isso estivesse relacionado ao fato de nem a China, nem o Japão, terem sido directamente colonizados, na maior parte de seus territórios. Por isso, nenhuma potência colonial europeia tentou reservar os dois países para seus próprios missionários.
Depois da revolução chinesa de 1911, Sun Yat-Sen, que viveu nos Estados Unidos, tornou-se uma figura simpática no discurso estadunidense. E na época da Segunda Guerra Mundial, a China era vista como uma aliada na luta contra o Japão. De facto, foram os Estados Unidos que insistiram para que a China tivesse uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Quando o Partido Comunista Chinês conquistou a maior parte do território e estabeleceu a República Popular da China, os dois países pareciam terem-se tornado inimigos mortais. Na guerra da Coreia, estavam de lados diferentes; e foi a participação militar activa da China, ao lado da Coreia do Norte, que garantiu que a guerra terminasse num impasse.
No entanto, após um tempo relativamente curto, o presidente Richard Nixon foi a Pequim, encontrou-se com Mao Tse Tung (ou Mao Zedong) e estabeleceu uma aliança de facto contra a União Soviética. A situação geopolítica parecia dar uma reviravolta. Como parte do acordo com a República Popular da China, os Estados Unidos quebraram suas relações diplomáticas com Taiwan (apesar de continuarem garantindo que a China não a invadisse). E quando Deng Xiaoping tornou-se líder da China, o país entrou num processo de lenta abertura para operações de mercado e integração nas correntes comerciais da economia-mundial capitalista.
Embora o colapso da União Soviética tornasse irrelevante a aliança China-EUA contra a União Soviética, as relações entre os dois países não mudaram realmente. Se algo aconteceu, foi uma aproximação ainda maior. Na situação em que o mundo se encontra hoje, a China tem um superávit significativo no balanço de pagamentos com os Estados Unidos. Mas investe muito deste saldo nos próprios títulos do Tesouro norte-americano, o que permite a Washington continuar a investir grandes recursos em suas múltiplas actividades militares no mundo todo (principalmente no Oriente Médio), assim como ser um bom consumidor de exportações chinesas.
De tempos em tempos, a retórica que cada governo usa em relação ao outro é um pouco dura, mas não chega nem perto da retórica da Guerra Fria entre os Estados Unidos e União Soviética. Ainda assim, nunca é sábio prestar muita atenção à retórica. Em assuntos globais, a retórica normalmente é usada para produzir efeitos políticos dentro de cada país, e não para expressar a política realmente em relação ao país ao qual se destina.
Deve-se prestar mais atenção às acções dos dois países. Em 2001 (pouco antes do 11/09), um avião chinês colidiu com um avião estadunidense, nas vizinhanças ilha Hainan. O avião dos EUA provavelmente estava espionando a China. Alguns políticos norte-americanos pediram uma resposta militar. O presidente George W. Bush não concordou. Ele desculpou-se razoavelmente com os chineses, e o avião foi devolvido junto, com os 24 militares capturados por Beijing. Nos vários esforços feitos pelos Estados Unidos para conseguir que a ONU apoiasse suas operações, a China discordou algumas vezes. Mas nunca vetou de fato uma resolução patrocinada por Washington. A precaução dos dois lados parece ser a forma de acção preferida, apesar da retórica.
Então, onde estamos? A China, assim como todas as potências de hoje, tem uma política externa multifacetada, envolvendo-se em todas as partes do mundo. A questão é: quais são as prioridades do país? Penso que a número 1 é a relação com o Japão e com as duas Coreias. A China é forte, sim, mas seria incomensuravelmente mais forte e se fosse parte de uma confederação do nordeste asiático.
A China e o Japão precisam um do outro – primeiro, como parceiros comerciais; além disso, para assegurar que não haja confrontações militares de nenhum tipo. Apesar de surtos nacionalistas ocasionais, eles estão se movendo nessa direcção. O movimento mais recente foi a decisão conjunta de realizar as operações comerciais entre as duas partes com suas próprias moedas – eliminando o uso do dólar americano, e protegendo-se das flutuações da moeda norte-americana, cada vez mais frequentes. Além disso, o Japão começou a considerar que o guarda-chuva do exército dos Estados Unidos pode não durar para sempre; e que portanto precisa de um acordo com a China.
A Coreia do Sul enfrenta os mesmos dilemas do Japão, e ainda precisa lidar com o problema espinhoso da Coreia do Norte. Para a Coreia do Sul, a China é a força de detenção crucial sobre os norte-coreanos. E para a China, a instabilidade da Coreia do Norte colocaria uma ameaça imediata para sua própria estabilidade. A China pode desempenhar, para a Coreia do Sul, o papel que os Estados Unidos já não têm condições de exercer. E nos termos complicados da colaboração que China e Japão desejam, a Coreia do Sul (ou quem sabe uma Coreia unida) pode jogar um papel essencial de equilíbrio.
Como os Estados Unidos percebem esses desenvolvimentos, não é razoável supor que o estejam tentando fazer chegar a um acordo com esse tipo de confederação do nordeste asiático, enquanto ela se constrói? Pode-se analisar a postura militar dos Estados Unidos no Nordeste, Sudeste e e Sul asiáticos não como construção de uma posição militar – mas como uma estratégia de negociação no jogo geopolítico que está em curso e que se desenrolará na próxima década.
Os Estados Unidos e a China são rivais? Sim, até certo ponto. São inimigos? Não, eles não são inimigos. São colaboradores? Eles já são mais do que admitem, e serão muito mais no desenrolar da década.

Uma sugestão do Paulo Ferreira, retirado daqui.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

“O Deus da Carnificina” - Um happening retardado, ou a vingança de Polansky?


Desde a minha juventude que Polansky é uma figura incontornável do meu imaginário cinematográfico. Embora os seus últimos filmes não me fizessem colar às cadeiras do cinema como sucedia habitualmente, nem por isso deixavam de ter um nível acima da média (caso, por exemplo de O Pianista e do excelente The Ghost Writer ) e, apesar dos seus quase 70 anos, via-o como um génio maldito que iria resistir às amarguras da idade. O seu último filme, acabado de ver, suscitou-me algumas interrogações que conduziram a este breve (!) ensaio. O argumento do filme é muito simples: a partir de um desentendimento entre duas crianças num jardim nova-iorquino (?) em que uma delas acaba por sair algo machucada, todo o resto do filme desenrola-se numa troca de explicações entre dois casais muito civilizados da classe média americana, com vista sobretudo a encontrar uma forma pedagógica de responsabilizar/ culpabilizar o jovem agressor do seu irresponsável acto; todo o tempo fílmico desenrola-se no espaço algo limitado do apartamento dos pais da criança maltratada (algures num prédio central de Nova York!), onde as relações e tensão entre os casais se vão deteriorando gradualmente, transformando uma situação aparentemente simples de resolução num exercício masoquista de dissolução entre os quatro elementos (não faltando inclusive uma pequena guerra de géneros, sobretudo na fase mais alcoólica, transformando imprevisivelmente os maridos em aliados casuais face às respectivas esposas, aparentemente mais vulneráveis aos poderes do whisky de 18 anos). Trata-se, em certa medida, de um regresso à técnica do happening, que fez história nos anos 60 no cinema, e principalmente no teatro e na literatura (as peças teatrais de Sartre, que na altura fizeram grande furor, assentavam todas elas na estratégia do “huis-clos”); inspirada nas ideias terapêuticas de um psicólogo famoso na época, Jacob Moreno, e vista como alternativa à decadente e “burguesa” psicanálise freudiana, uma das técnicas do happening consistia em encerrar os actores em espaços mais ou menos fechados onde, a partir de situações imprevisíveis e espontâneas, se despoletava um psicodrama que os fazia sair das suas mascaras/defesas e, normalmente num contexto de tensão crescente, exporem as suas verdadeiras naturezas psico-motoras e sociais. Se no âmbito da prática clinica ela tinha em vista uma catarse libertadora de tensões reprimidas (Moreno foi o inspirador das psicoterapias de grupo), na cena artística dos anos 60 tinha por alvo principal desmascarar a moral burguesa, ridicularizando as suas falsas e reaccionárias (em linguagem revolucionária da época) convenções. Polansky, no início da sua carreira, e sem ser um ortodoxo, recorria com frequência a aspectos de este tipo de técnica, casos de “Faca na Água”, “Beco”, “Inquilino”, “Repulsa”.
A questão que se coloca agora, a propósito do filme em causa “Deus da Carnificina”, e quando tal técnica entrou há muito em desuso, trata de saber se, passado 40 anos dos libertadores anos 60/70, será ainda muito premente fazer da desconstrução da moral burguesa um grande alvo de ataque. Creio que não, e que a verdadeira intenção do filme oculta uma pequena maldadezinha pessoal do realizador em relação à América e ao seu sistema judicial, que não desiste de o trazer de volta, a fim de cumprir a pena por um acto praticado há mais de 40 anos num contexto social e de mentalidades completamente diferente do de hoje, transformando-o num bode expiatório dos seus vícios privados. Ainda há pouco tempo foi alvo de um processo vexatório na Suíça aquando da mais recente tentativa de o extraditar para os EUA, onde seria com certeza atirado aos bichos. Logo no início do filme intrigou-me um aspecto, para o qual não vi ainda qualquer referência da crítica: estando há muitas décadas proibido de pôr os pés na América, vivendo e trabalhando em países (França e Inglaterra sobretudo) fora da alçada de uma eventual e persistente extradição judicial, é estranho que toda a acção do filme se desenrole numa cidade do país que o remeteu à condição de acossado até morrer. Apesar da cena inicial das crianças localizar-se visivelmente num parque nova-iorquino, julguei que rapidamente a trama do filme fugiria para paragens mais acolhedoras ao realizador (creio que não mais filmou nos States depois do rocambolesco processo judicial); mas enganei-me, o filme continuou até ao fim na mesma cidade/território americano, apesar de ser perfeitamente indiferente à história em causa desenrolar-se aí, ou noutra qualquer cidade da Europa . É impossível que este aspecto não deva irritar solenemente as autoridades mais zelosas dos EUA, e daí ver neste filme uma vingança subtil de Polansky para com aqueles que fizeram dele o inimigo das publicas virtudes americanas. Estaria também assim explicada a opção pela referida técnica do happening (tudo se desenrolar num espaço minúsculo e fechado, facilmente concretizável em qualquer estúdio do mundo).*Quanto ao filme propriamente dito: vê-se com agrado, tem alguns momentos conseguidos de sarcasmo, mas sem deslumbrar, não acrescenta nada à sua longa e extraordinária filmografia, porventura o menos importante. Julgo que a intenção era outra.


*Quanto ao filme propriamente dito: vê-se com agrado, tem alguns momentos conseguidos de sarcasmo, mas sem deslumbrar, não acrescenta nada à sua longa e extraordinária filmografia, porventura o menos importante. Julgo que a intenção era outra.


Paulo Ferreira