
Ilustração para "Água na poesia". Edição da Câmara Municipal de Sintra
Nadia ouve
O pássaro acordou-a. Está deitada de costas de olhos fechados, a pensar
no que lhe resta para além da toalha que começou a bordar
e talvez termine.
Resta-lhe a vontade que a dor passe
e que tudo passe e deixe de a atormentar.
Jaz pr’ali como se, tendo deixado a rampa de lançamento, deslizasse
pela via lacteal e o planeta do qual descolou se tivesse afastado
e reduzido até se confundir com as miríades de outras estrelas.
Um pássaro pousado num ramo chama-a e Nadia está deitada
a apagar o bem e o mal, como uma mulher a acabar de lavar o chão,
a recuar com a esfregona de costas para a porta, só lhe resta limpar
as suas pegadas no chão molhado.
A dor ainda dorme: o corpo hostil, com os seus punhais,
não acordou com ela ao som do pássaro. Até a vergonha,
companheira de toda a sua vida, a largou. Deixou de a morder.
Tudo se desligou dela e Nadia desligou-se de tudo como uma pêra do ramo.
Não uma pêra que se colhe mas um fruto maduro que cai.
(…)
Amoz Oz, “
O mesmo mar”, edições
ASAIvone Ralha