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quarta-feira, 12 de maio de 2010

O dia em que meu pai foi Ringo Starr


(Desenho João Neves)

Quando o JSP aqui homenageou o Roberto Carlos e o Barroca, fez referência ao Clube Roberto Carlos da Mafalala e lembrei-me de mais esta história. Por inabilidade minha, da qual não são culpados, para a entenderem ajudaria, para quem não viveu esses tempos, ler A Curva do Rio, do Naipaul, e qualquer dos Coetzee, que descreva a África do Sul.
O Barroca era um português de gema. Um Oliveira da Figueira na figura e na capacidade adaptativa. Era um bravo. Na adolescência tinha sido mandado, de castigo, para a metrópole, fazer o equivalente ao 9º ano, num internato de padres, no Norte de Portugal. Não o vergaram. Na tropa (só dois do grupo do meu pai lá foram parar) perdeu a arma durante a recruta. Foi mandado noutro castigo, agora não familiar, para a guerra no Norte de Moçambique. Debaixo de um ataque, ganzado e bêbado, foi o único a responder ao ataque inimigo. Apocalypse Now avant la lettre. Nestas andanças cafrealiza-se. Recusa a cultura do colonizador. Celebra a vida onde ainda ela faz sentido. Entra pelos compound e descobre que há uma grande festa moçambicana enquanto o caldeirão não rebenta. Arrasta os amigos e leva-os a essa enorme descoberta. Uma espécie de Os últimos dias de Saigão. Um dia desafia-os para irem a uma festa no Clube Roberto Carlos. Música do melhor. Dilon Djindji , rock e claro, música do patrono. Mal saíram do carro foram muitíssimo bem recebidos. Com tombazanas e tudo. Todos, eram seis, ficaram com os nomes de um dos Beatles, mesmo que repetido. Mesmo o meu pai, i.e. o Ringo, o Ninito, i.e. o George, e o Luís Filipe. Esse mesmo Luís que entrava, em 1978, sem camisa, nas tascas da Almirante Reis, em Lisboa, a berrar que era o Sandokan e a passar por cigano (e que na Mafalala era o Paul). Essa festa, com muito de tudo e do bom, acabou com uma carga da brigada da polícia montada que se desviou dos Beatles e varreu os outros à bastonada. Penso que terem vivido isso implicou escolhas fortes. Não terá sido o primeiro momento, também não foi o último, mas foi um dia decisivo na conversão deles à democracia e ao multiculturalismo em liberdade. O Barroca, como vos disse o JSP, morreu no Brasil. Os outros andam por aí no samba-rock. É do fado. Gilberto Freire tinha razão.

Josina MacAdam




(Fotos dos Beatles da Mafalala)

quarta-feira, 24 de março de 2010

O TREMOÇO NO GOTO AUSTRAL

Agora que vou para quase velho
Vejo que não prestei a devida atenção
Ao modo como o tremoço
Me cai no goto
Não esse do engasgar
Mas o outro
O goto dos afectos
Primeiro o respeito da pele
Da casca entre os dedos
Num movimento simples de descascar
Levado no tempo de o fazer
Assim como observar a imobilidade da cadeira
Que ali está e estará até que perca a utilidade

Mas mais que o tremoço e a casca
E o miolo
Já que o essencial também não deve esquecer-se
Quando o acessório se torna visível
É poder seguir as nuvens
De um ponto absolutamente único
Na janela do quarto mais oriental da casa
- Oriental nas contas feitas de geografia instintiva –
Pois aí
Elas passam de um modo que é mais cinético do que todos
Passam mais esguias
Pondo-se a jeito para o meu cinema
E para a minha expectativa de águas ainda não passadas

Toda esta prática
É de amores com a terra que nos pariu
Ou assim me parece
Como me parece sê-lo
O modo como uma árvore se inclina quando um velho passa
Na saudação primordial
- diálogo mais que ecuménico -
Creio que o vento que a sopra o adivinha
E leva as folhas na prosa que a brisa escreve

E mais do que estas práticas
Gosto de linhas do rosto
E de as escutar no silêncio que toca
No Outono amarelecido da foto

O sorriso ter permanecido
Diálogo fundo
O que persiste
Certo é que as balizas lá estão
Na Sá de Miranda
Nos mesmos portões metálicos
Simétricas e ali postas para o nosso futebol
Cósmico de 10 metros entre as linhas extremas
E do mesmo modo
A parte não cimentada do passeio lá está
À espera da cova longa do paulito

O meu tempo intocado ali
Porque o tempo que se lhe seguiu
Nada tinha com este que cresceu comigo
E nossos
Restam dos maços de Caravela
Grandes fumaradas
Pelas barreiras abaixo acima
Fumados colectivamente
Assim como caminhadas
Intermináveis até aos mares da Xefina
Nunca lá chegados
Caminhando o mar salgado entre tubarões imaginados
Sob o mar encrespado de pequena vaga e areias revoltas

Do que hoje me lembro
É que por muito que se tenham somado promessas de novos mundos
Nada vivi mais absolutamente igualitário
Que o mundo daquela rua
De goeses changanes híbridos e lusos ibéricos

Outros mundos havia
Por certo
Como certo era existirem ainda mais
Do que esses outros e piores e melhores
E certo é também
Como diz o outro
Tudo ser relativo

f. arom

segunda-feira, 15 de março de 2010

Da Capital do Império

Eu sei que a memória tem a sua própria verdade. Selecciona, elimina, altera, exagera, minimiza, glorifica e claro está calunia. Há quem diga que o acabado de publicar “calhamaço” do Sérgio Vieira é bem exemplo disso.
Mas de qualquer modo acho que Pedro Pires, antigo maquisard, hoje presidente devia escrever as suas memórias. Digo isto porque outro dia, quase que despercebidamente Pires falou no seu país e abordou aquilo que em meados da década de 1970 deixou pasmado os revolucionários (entre aspas talvez?) que tinham tomado o poder no Maputo e em Luanda.
Ao fim e ao cabo o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo verde, o PAIGC, tinha-se apresentado na luta de libertação nacional como um partido seguindo uma linha política de combate e ideologia semelhante à da Frelimo em Moçambique. Contudo após a tomada do poder em Cabo Verde o PAIGC seguiu uma via que causou inquietação entre os revolucionários ( entre aspas talvez?) mas que resultou hoje tantas décadas depois em que o país saído oficialmente da lista internacional de países pobres. Um dos poucos países africanos em que na verdade se avançou
Pois Pires disse a semana passada que quando o PAIGC assumiu o poder em Cabo Verde cedo se apercebeu que o país “reunia todas as condições para que não desse certo” tanto em termos de “condições materiais, como em termos de factores objectivos e naturais”.
“Naquele momento depois da independência precisávamos para a direcção do país de homens do estado,” disse Pires para depois acrescentar:
“Há uma diferença entre o chamado revolucionário e o homem de estado.”
Recordando que ele e os outros dirigentes do PAIGC tinham “chegado pela via revolucionária” Pires descreveu depois o revolucionário como alguém “impaciente e que tem um mal de fundo”.
“É um irrealista. Não pensa nas consequências dos seus actos ou se os seus desejos mais nobres são realizáveis ou capazes de execução,” disse.
Para Pedro Pires o verdadeiro estadista é aquele que é “paciente, realista e sensato” e ainda “persistente”.
Para Pires havia pois uma diferença entre que aqueles que pensavam “ que é possível mudar o mundo de um dia para o outro” e aqueles que sabem que “é preciso construir o futuro passo a passo, degrau a degrau com desafios acrescidos todos os dias”.
Pedro Pires recordou que o PAIGC era “uma elite política” mas cedo se apercebeu que tinha que ir “buscar a parte técnico/operativa” para poder pôr o país a funcionar.
“Só havia um sítio onde a ir buscar: na administração colonial,” disse o actual presidente.
“Daí a nossa opção de guardar no país todos os funcionários públicos que quisessem cá ficar. Se não tivéssemos feito isso teríamos o estado mas não teríamos a administração do estado. São esses quadros que estão na base da construção do estado de Cabo Verde e principalmente da administração pública,” acrescentou.
Pedro Pires foi diplomata quanto aos outros PALOP.
“Cada processo é um processo. Não somos donos da verdade,” disse ele.
Para Pedro Pires a pergunta a fazer é “se descobrimos em Cabo Verde homens de estado” que conseguiram dar prioridade “aos interesses comuns”.
Boa pergunta. Que talvez se deva estender a outros PALOP. É por isso que estou desejoso de ler o “calhamaço” do Sérgio Vieira para ver o que é que ele revela a este respeito sobre si mesmo.
Abraços,

Da Capital do Império

Jota Esse Erre

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Da Capital do Império

Olá,

Tennessee Williams chamava-lhe “o anjo das cinco horas”. O “drink” que ele bebia ao fim da tarde num período da sua vida em que todos diziam que a sua capacidade criativa tinha acabado.
Five O’ clock angel. I think of you . How you always get me through.
Não era uma gaja, não. Era talvez aquilo que o Keith Richards gosta de beber no Bemelmans Bar no Hotel Carlyle de Mannhattan e a que ele chama de “lixo nuclear”. Pois outro dia estava a olhar para umas fotos antigas. Estavam lá caras que já não existem. Eles. Elas. Tinha comigo o meu “five O’clock angel”, neste caso um “cuvée” australiano. Não mau. O que não é de admirar. Isto porque durante meses meses e meses tentei encontrar um vinho australiano que fosse mau. Tenho a dizer-vos que é difícil. Australianos não sabem fazer zurrapas. Nesses meses todos encontrei um (1) vinho australiano … zurrapa.
Pois com o “five o’clock angel” “cuvée” australiano olhei para as fotos e lembrei-me:

Empty space
Where once I saw a face
Memory stands by me now

I feel the passing of the years
Bitter teardrops
I see shadows everywhere
But I still carry on
Though there’s a lot of good ones gone

Peter Wolf

Abraços,
Da capital do Império

Jota Esse Erre

terça-feira, 1 de abril de 2008

"a carolina michaëlis fica onde nós quisermos, nomeadamente ao canto da boca"

"também eu vou atirar uma posta de pescada sobre a polémica do vídeo na carolina michaëlis, mas já agora de pescada zero, que costuma designar aquela que se coze em água e sal para desesfaimar, palavra que acabo de inventar, o gato lá de casa, coitadinho. das minhas memórias do ensino secundário, e estas podem fornecer pistas sobre a situação patética que é a minha vida adulta, guardo com especial fervor as 'visitas de estudo' programadas pela professora de matemática, personagem a dar para o blasé, na versão amigável, totalmente tresloucada-chique, na versão maldosa, que muito gostava de laurear com os seus alunos sob a capa do interesse complementar ao plano de estudos. para tal pagava-se inscrição e alugava-se a camioneta, o motorista sempre o mesmo, os destinos mais ou menos variáveis, sempre rumo a norte, vila real, por exemplo, local onde conheci de perto as potencialidades dos garragões de vinho levados para o quarto da residencial, ou covilhã/serra da estrela, em que certa e determinada ressaca me fez perder a viagem de camioneta à zona da torre, razão pela qual fiz esse trajecto à boleia numa carrinha de caixa aberta em pleno janeiro, rodeado de laranjas, por forma a não perder as dinâmicas de grupo da turma durante o resto do dia. e o estudo incluído na vistia, claro. pois bem, numa dessas viagens de grande instrução acabei por receber de forma enviesada uma série de informação com que nunca sonhei, nomeadamente em termos estéticos, uma vez que, em determinada altura em que foi necessário bater à porta da professora para combinar algum plano das festas, a senhora aparece à ombreira da dita [porta] com o ar mais natural do mundo, secundada na penumbra pelo motorista do machibombo, sempre o mesmo, sempre fiável. presa ao colete de forças mental das equações de segundo grau, da fórmula resolvente ou dos casos notáveis a nossa interlocutora esqueceu-se de supervisionar ao espelho a figura com que iria aparecer aos seus instruendos de 16/17 anos, observadores implacáveis, e como tal ostentava um comprometedor pintelho ao canto da boca, enquanto perorava acerca do cumprimento dos horários das visitas, ou coisa que o valha. na altura telemóveis nem vê-los. youtube muito menos. poupou-se no enxovalho imediato, ganhou-se na hilariedade privada, liberta aos borbotões entre os nossos grupos de amigos ao longo de anos a fio. obrigado stora. obrigado sistema educativo. telemóveis nas aulas? isso é coisa para meninos."
pedro vieira, Irmão Lúcia, 1.4.08



Recordações da Casa Amarela, João César Monteiro

Uma genuflexão perante o Irmão Lúcia e o
Sinusite Crónica.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Da Capital do Império

Olá!

Hoje quero falar-vos de quatro medalhas. Lado a lado unidas por uma pequena barra cilíndrica. Perderam a cor por falta de limpeza e são hoje todas acastanhadas, cor de bronze.
Pertenciam a um velho que conheci. Quatro medalhas que me confirmam as histórias que me contou. Força aérea no norte de África em luta com as forças de Rommel que avançavam. Levantavam voo de uma pista no deserto bombardeavam as unidades alemãs em avanço da blitz krieg e quando regressavam horas depois já tinham que ir aterrar noutra pista mais atrás devido ao avanço rápido das tropas de Rommel.
“Era como ir ao serviço,” disse-me ele. “Bombardeávamos voltávamos, enchíamos os tanques bombardeávamos, voltávamos”. Falava dos egípcios em termos politicamente incorrectos. “The Gypos”.
Depois foram as missões de apoio à resistência de Malta em que a maioria não voltou. Ele voltou. Teve sorte. Sorte que o levou depois à campanha de Itália. O seu enorme respeito senão mesmo adoração por esse carácter dúbio que foi Montgomery transbordava das suas palavras, referindo-se ao general britânico sempre como Monty. Já Patton o americano era um “cowboy”. Recordava com um sorriso a máxima do americano: “Nunca nenhum filho da puta ganhou uma guerra por morrer pelo seu país. Ganhou por fazer os outros filhos da puta morrerem pelo pais deles.”
“I am one of those bastards,” disse ele um dia.
Em Itália Monte Cassino e outras tantas batalhas até ao empurrão final das forças nazis. Depois os bombardeamentos punitivos sem misericórdia contra alvos na Alemanha até à derrota final do nazismo.
Ficou visivelmente irritado quando lhe perguntei sobre Dresden e as bombas incendiarias; a ofensiva aérea de “bomber Harris” que numa só cidade matou mais alemães do que a atómica de Nagasáqui. A guerra é assim, faz se para ganhar, disse-me. Estranhamente não tinha qualquer ressentimento contra os alemães. A sua guerra foi feita do ar, onde a única coisa que conheceu dos alemães foi o fogo antiaéreo que a si por milagre, sorte, perícia, nunca o afectou. Odiava e temia o fogo antiaéreo, não os “Jerrys” que o disparavam. “Ainda hoje tenho medo e tremo só de pensar nas explosões da flak,” dizia-me ele
Ganhou quatro medalhas. Todas elas dadas no fim da guerra. Estranhamente nunca as tinha mencionado. Muitas vezes - isso sim - tinha falado dos seus aviões, dos seus motores – como ele amava aqueles motores – e da camaradagem e esforços para se arranjar bebidas alcoólicas no meio da guerra.
Morreu há uns meses. Poucos notaram. Menos ainda choraram Dei com as medalhas outro dia. Fechadas num saco de plástico transparente. No fundo de uma gaveta. Olhei-as e não sei porque fiquei embasbacado a olhar para aquilo.
Uma guerra. Brutal. Justa. Em troca quatro medalhas. Esquecidas num saco de plástico. No fundo de uma gaveta. Faz pensar.

Abraços

Jota Esse Erre

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Joaquim Pinto de Andrade

"Ontem, ao fim do dia, eu estava a escrever esta crónica. Era sobre Aznavour que cantava em Lisboa. Eu escrevia sobre um rapaz baptizado Shahnourh, filho de arménios, que virou Charles e símbolo de França, porque nasceu num porto, num cruzamento do mundo, em Paris. E dali parti para a canção de há quarenta anos, Le Métèque, que não era dele, era de Georges Moustaki. A canção do meteco, do grego metoikos, como os atenienses chamavam aos que não eram da cidade, que viviam nela mas tinham vindo de longe. Meteco como Moustaki, filho de Alexandria, e que desaguou em França para a inundar de belas canções. Meteco como Aznavour. Esta crónica deveria ir por aí fora, com Yves Montand (de facto, Ivo Livi), com Serge Reggiani (nascido na italiana Reggio Emília), Brel (nascido na impronunciável belga Schaerbeek). Era uma crónica sobre os grandes da canção francesa quando ela foi grande. Os grandes, afinal, metecos. E, afinal, ensino isso a Atenas, os melhores dos cidadãos, porque trazem à cidade o mundo.Ontem, ao fim do dia, eu estava a escrever essa crónica. Telefonaram-me: "Morreu o Joaquim." Morreu Joaquim Pinto de Andrade. No meio da crónica. Da sua crónica. Vão dizer: ele era angolano. E era-o. Ninguém conheci, dos pais da nacionalidade angolana, que pudesse dizer o mesmo que ele: não feri o meu país. Ele foi a coragem serena que lhe valeu prisões durante a Angola colonial, ele foi a fraternidade angolana quando o país se dilacerou em guerras civis, ele foi a honestidade quando Angola se ofuscou de falsa riqueza. Ele foi o angolano perfeito em tempos terríveis. E eu sei porquê: ele era um meteco. Um cidadão do mundo.Eu era um adolescente e o Joaquim Pinto de Andrade era um padre exilado, colocado sob vigilância em Vila Nova de Gaia. No Verão, o pobre diabo da PIDE, de fato escuro, seguia-nos até aos areais da praia e tentava ouvir-nos as conversas. O Joaquim falava de Camilo ou de Ramalho, dos "portugueses de língua tersa", que ele aprendera quando era menino em Ambaca. O português PIDE perceberia a admiração daquele "terrorista" (então, presidente de honra do MPLA) por escritores portugueses? O Joaquim falava de Roma, onde estudara, e encarreirava-me para escritores de liberdade: Ignazio Silone, Italo Calvino… Falava-me de Paris, onde estivera no primeiro congresso de escritores e artistas africanos (com o seu irmão Mário) e metia, no meio da conversa, a necessidade de ouvir Brel. Há quase 40 anos, em Setembro de 1969, eu saí de Portugal com uma carta de Joaquim Pinto de Andrade no bolso. Isso, escondido. Nos olhos eu levava a vontade de ver que o homem a quem mais devo me emprestou."
Ferreira Fernandes. Diário de Notícias, 24/02/2008

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Explosão (2)


No jogo inicial a Maio explosão do Estádio verificara-se aos doze minutos da segunda parte quando Vicente apontou o golo da vitória do Atlético. Porém o que mais me impressionaria, foi a invasão do campo no final do segundo encontro, favorável aos madeirenses, por uma margem que lhes garantia a passagem da eliminatória, em circunstâncias que indignaram a maioria dos espectadores. As interrupções da partida – que mais tarde, em conversas, me esclareceram com pormenores – quando os jogadores alvi-negros protestaram o primeiro golo do Marítimo, alegadamente marcado com a mão, ou quando o árbitro marcou a grande penalidade decisiva, também contestada, gota de água que fez transformar o final de um desafio de futebol numa espontânea revolta popular, tudo isso, ainda que de forma difusa, consigo recordar agora.
O resto pude saber através dos jornais consultados, Correio da Horta e O Telégrafo: o Atlético protestou o jogo e a Associação de Futebol da Horta deliberou não homologar o segundo encontro, argumentando que o árbitro não entregara o respectivo relatório. Tiveram lugar então diversas actividades cívicas que pretendiam homenagear o Angústias Atlético Clube, as quais contaram com a presença de dirigentes dos restantes clubes locais e representantes das actividades cívicas.
Eis uma notícia desses tempos: «Na noite da passada quarta-feira, após entusiástica homenagem prestada pelos faialenses ao popular clube das Angústias, os seus corpos gerentes, jogadores com o estandarte, centenas de simpatizantes, numa romagem de agradecimento, acompanhados pela filarmónica “União Faialense”, percorreram as ruas da cidade.» Permanecia um sentimento de grande injustiça causado pelas opções do árbitro. Mas a vida continuava.
Os navios demandavam o porto. Eram os dias do “Cedros” e do “Arnel”, os “carvalhinhos”. Chegavam mercadorias e donativos. As actividades económicas, com dificuldade resistiam. Na doca, nesse mês de Abril aprontavam-se as traineiras para a campanha da albacora. A rua Serpa Pinto, ou “rua direita”, continuaria a viver o seu bulício matinal com as mercearias atulhadas de sacas de batatas, sementes, feijões. Sobre o balcão havia frascos de azeitonas. Circulavam misturados os cheiros de antigos temperos. E muita gente afluía ao Mercado Municipal, fornecido com apreciável variedade de frutas e legumes. Aglomeravam-se as mulheres em volta das pesagens. Alguém regateava.
No Teatro Faialense e no Cine-Salão prosseguiam as sessões de cinema, numa época de sucesso e afirmação dos realizadores italianos, Visconti, Rosselini, Vitorio de Sica, não obstante a turba apenas delirar nas fitas em que sobressaíam, entre outros, Errol Flynn, John Wayne ou Sara Montiel. No Café Internacional, por entre cortinas de fumo, continuaram renhidas, as partidas de dominó. Mesmo ao lado, no seu silêncio branco, o Infante escutava os rumores do jardim: correrias de crianças, segredos de namorados, assobiadelas da malta quando passavam as flausinas. No mês de Junho haviam de florescer as manchas vermelhas em todos os metrosíderos.
Mário Machado Fraião, CARTA DE MAREAR

Fotos Júlio Vitorino da Silveira

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Explosão (1)


As recentes proezas da equipa de futebol do Santa Clara, na sua meteórica subida à I Divisão Nacional, hoje Superliga, proporcionaram-me recordações de um tempo já distante. Ainda não completara seis anos de idade. No entanto, jamais aquelas imagens se me apagariam da memória. A euforia do peão no Estádio da Alagoa, ostentando uma das maiores enchentes de sempre, no dia 11 de Abril de 1958, com guarda-chuvas, casacos e chapéus lançados ao ar, em transbordante aclamação, quando o Angústias Atlético Clube marcou o golo da vitória sobre o Marítimo do Funchal na primeira mão da eliminatória Açores-Madeira a contar para a Taça de Portugal. Nofinal do encontro, Atlético 3, Marítimo 2.
No mês de Abril de 1958 o vulcão dos Capelinhos ainda expelia os seus jactos de lava e cinzas que oscilavam entre os duzentos e os seiscentos metros de altura. Seguiam-se horas de acalmia, por vezes total, para recomeçar novamente a actividade vulcânica com igual ou maior intensidade. No dia 12 o Correio da Horta noticiava: “A nuvem de vapor atinge os 2000 metros de altura.” Acrescentava que o Instituto de Assistência à Família distribuía peças de vestuário aos sinistrados do Capelo e Norte Pequeno, oferta da Igreja Adventista dos Estados Unidos da América.
Nessa mesma altura o mundo encontrava-se em plena “guerra fria” e na luta pela conquista do espaço iniciada com o lançamento dos Sputniks. Por esses dias John Foster Dulles informara o Presidente Eishenhower dos preparativos para a Conferência de chefes de governo das grandes potências mundiais. A França debatia-se com o problema da guerra na Argélia, questão que arrastaria o país para uma profunda crise política. Em Cuba continuava a guerrilha e as autoridades cubanas anunciaram o prémio de 100.000 dólares, ou seja, dois mil oitocentos e sessenta contos a quem capturasse o chefe rebelde, Fidel Castro. O governo indonésio confirmava que as tropas governamentais tinham capturado Buki Tingi, capital de Samatra Ocidental, última grande fortaleza rebelde.
Na Índia, o “Congresso Nacional de Goa”, suspende o movimento dos sritiagrah e inicia uma nova fase da sua luta contra a administração portuguesa. Em Portugal, enquanto o último plano de Fomento continuava a entusiasmar os incondicionais do regime, avolumavam-se as divergências entre diversas personalidades da situação, e que, associadas a diversos condicionalismos, levariam à candidatura do general Humberto Delgado à Presidência da República.
Na ilha do Faial o dia a dia continuava a ser marcado pela actividade eruptiva do vulcão dos Capelinhos que arruinara muitas famílias da Praia do Norte enquanto se multiplicavam as iniciativas de solidariedade. O Jornal Português, de Oaklande, Califórnia, organizou uma subscrição a favor das vítimas, a qual, no dia 4 de Abril atingia vários milhares de dólares. E foi neste momento de adversidade que o Angústias Atlético Clube, equipa de pescadores e homens da doca – nessa altura orientado por Costa e Melo, irmão do fundador do jornal A Bola – venceu pela quinta vez o Torneio Açoriano de apuramento para a taça de Portugal, recebendo por isso o representante da Madeira, o Marítimo do Funchal, em dois jogos que se disputaram no Estádio da Alagoa.

(continua)

Mário Machado Fraião, Carta de Marear

Fotos Júlio Vitorino da Silveira

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Da Capital do Império

Olá,

Hoje quero escrever-vos sobre algo que me aconteceu há mais de 40 anos e ficou-me gravado na memória para sempre.
Tenho no entanto em primeiro lugar dizer-vos que ao contrário de muitos eu não sou daqueles que tem grandes recordações da meninice. Sempre me espanta (e fico cheio de inveja!) quando ouço pessoas a recordarem coisas que se passaram quando tinham dez, oito ou mesmo cinco anos de idade. Eu praticamente não me lembro de nada do que se passou quando tinha essa idade, à parte marcos importantes como escola, casa, nomes de alguns colegas (da escola primária creio que só um!) e pouco mais. Dos professores da escola primária só me lembro do nome da Dona Deolinda, a professora porreira da terceira classe para onde fui transferido depois de ter apanhado um enxugo da palmatoadas da outra professora da terceira classe onde estava inicialmente, enxugo esse que me deixou as mãos inchadas que não pude esconder do meu pai que – para meu embaraço – foi à escola protestar junto do Professor Renato que era director, tinha pança grande e de quem toda a malta tinha um cagaço dos diabos. Eu ainda mais cagaço tinha dele porque um dia tinha sido levado à sua presença por estar a atirar pedras à mangueira frondosa que ficava na parte detrás da escola. Sei que fiquei acagaçado mas já não me lembro porquê.
O compromisso entre o Renato e o meu pai foi mandarem-me para a classe da Dona Deolinda. Não me lembro do nome da professora que me deu o enxugo de palmatoadas e já não me lembro também porquê. Tenho no entanto a dizer-vos que eu era assim um pouco pró burro com dificuldades em aprender tudo o que fosse com números e penso que foi isso que a irritou.
O facto de pouco ou nada me recordar da minha vida nessa altura pode ser um indicativo da importância que para mim teve o incidente aos 10 anos de idade e que sempre quis contar e que agora tenho a oportunidade e (penso eu) audiência para tal. Um dia estava sentado no passeio à beira da estrada, em frente à escola técnica Joaquim de Araújo à espera da boleia para casa que nesse dia o meu pai me tinha prometido.
É um passeio estreito esse, numa rua que sobe vinda dos bairros operários e da lata e caniço da cidade onde nasci, ali perto aliás do hangar dos machimbombos encarnados e brancos que não sei lá porquê me fascinavam e de onde eu já tinha aprendido para meu grande orgulho a saltar em andamento nos dias em que não tinha boleia do meu pai. E em que não usava a bicicleta, a que toda a malta chamava “burra”. A minha era uma Robin Hood, um pouco mais abaixo em categoria das Ralleighs mas sem dúvida uma “burra” bem boa. E além disso esta tinha mudanças. Três velocidades o que na altura era um luxo. Durou-me anos.
Pois nesse dia de nem “burra” nem machimbombo, creio que ao princípio da tarde de um Sábado, eu tinha deixado a minha pasta carregada de livros e cadernos que nunca abria, no passeio de cimento aos quadrados simétricos, afastada da berma da estrada e um pouco mais abaixo de onde eu estava sentado.
Lembro-me de ter olhado para baixo e de ver que um homem negro - que eu na altura considerei velho - a subir a avenida, um pouco vergado pelo calor e humidade da cidade pouco após a uma da tarde.
Corri para tirar a pasta do passeio a pensar que o “velho” ainda podia tropeçar na mesma. Cair. Magoar-se. Levantei a pasta. Vi o homem a olhar para mim. Corri de novo para o local onde estava sentado, agora com a pasta bem ao meu lado., a aconchegar-me a perna no meu assento à beira do alcatrão. Sem perigo de poder causar um acidente qualquer a uma qualquer pessoa menos prevenida.
Passaram-se uns segundos. Ou talvez um minuto. Não sei. Sei que o homem negro parou ao meu lado, olhou para mim com um ar de semi-irritado mas resignado e disse: “O menino tem muitos maus pensamentos”.
Eu pasmado, sentado à beira da estrada, agarrado à pasta, a olhar para cima para a cara irritada do homem. “Não vou roubar a sua mala,” acrescentou. Virou-me as costas e foi-se embora, chateado, talvez mesmo magoado.
Eu fiquei ali, nos meus 10 anos, ainda agarrado à pasta, sem palavras na boca. Espantado. Sem poder explicar.
Ainda hoje penso regularmente neste pequeno incidente. Não sei porquê.

Abraços,
Da capital do Império

Jota Esse Erre