domingo, 15 de junho de 2008

Flor negra

"(...) um encontro fortuito com um transeunte que, após um choque forte, deixa nas nossas mãos, distraído, uma flor negra. E quando finalmente nos levantamos para a devolver já o transeunte, apressado, desapareceu. Começamos a correr com a flor negra na mão - não nos pertence, poderá fazer falta a quem a perdeu -, mas nada, nenhum rasto:o estranho transeunte desapareceu, evaporou-se. E nas nossas mãos está a flor negra. O movimento seguinte poderá até parecer um não movimento -a indecisão-, mas rapidamente o desconforto deixará de ser um pormenor e passará a ser o essencial: torna-se urgente desfazermo-nos daquela flor repelente. Pois bem, estamos a uns centímetros de um caixote de lixo público, levantamos a tampa e com a mão direita largamos a flor. Mas algo acontece: a flor preta não sai da mão, está colada, já não pode ser expulsa, só se deixares também cair o braço. Os dias seguintes deixarão entrar inúmeras tentativas de, primeiro, expulsar a flor preta, depois, de a esquecer. Porém, a certa altura, existirá, de uma ponta à outra, uma mudança no organismo, semelhante à mudança de moeda num país, que surge com outros valores, outras referências; e o homem resigna-se. Já não há flor preta; e os médicos chamam a esse conjunto de factos inverosímeis um nome lógico e antigo: doença. "
In: Aprender a rezar na Era da Técnica, Gonçalo M. Tavares

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