

Picasso
De quando os professores sabiam ler e escrever, tinham personalidade e opinião acerca das coisas. Havia teatro nas Escolas. Não havia Internet. E mesmo nas suas fases menos boas, os professores não eram alvo de processos disciplinares.
A notícia da representação da peça A Cantora Careca, de Ionesco, na cidade do Porto, rapidamente avivou na minha memória ocorrências de outras eras e outras vontades.
No final dos anos sessenta a cidade da Horta vivia um tempo sombrio, passados que haviam sido os anos estrangeiros dos cabos submarinos, os «Clipper» nas águas baía, festas e bom teatro, onde se distinguiram alguns notáveis da vida cultural da ilha, por exemplo, António Baptista, Amilcar Goulart, Constantino do Amaral, Ernesto Rebelo e Silva Peixoto, para citar apenas alguns nomes.
Despovoada e triste devido ao recrudescer da emigração após a erupção dos Capelinhos, a cidade arrastava-se na sua famosa má língua, sustentada de pequenos escândalos, e apenas o paquete Funchal, depois o Angra do Heroísmo, que não atracava, conseguiram alegrar, no «dia de São Vapor», uma doca sem navios.
Descoloridas ficavam pouco a pouco as molduras do Café Internacional e pouco a pouco envelheciam as conversas com saudades da antiga faina do porto, ou dos intermináveis bailes da Sociedade Amor da Pátria, ou do glorioso Angústias Atlético Clube.
António Duarte entregou-se à tarefa de recuperar a tradição faialense para os espectáculos de teatro e variedades tirando partido das condições existentes, concretamente a abertura marcelista, e uma sensibilidade própria para a representação, característica secular dos habitantes da cidade da Horta.
A primeira experiência de António Duarte no teatro foi a encenação da peça Óleo, de Eugene O’Neill. Seguiram-se alguns quadros dos Autos de Gil Vicente, um espectáculo inspirado na lírica de Camões que incluiu declamação e bailado, e uma adaptação da Ode Marítima. Cremos, sinceramente, não faltar à verdade se defendermos que o poema de Fernando Pessoa saiu engrandecido pelo aproveitamento das diversas vozes, alternando entre o solo e o coro, com registos diferentes, evidenciando as diversas fases desse fabuloso texto poético. Parece-me que ainda consigo ouvir essas vozes de forma ritmada, vigorosa: «Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens, / Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas». E por aí fora.
Mas foi com A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, que António Duarte confirmou os seus méritos de encenador valendo-se da prestável colaboração de outros residentes no Faial, como, por exemplo, Mora Porteiro e José de Freitas Diogo. Este espectáculo foi complementado e enriquecido com a declamação de poemas de José Gomes Ferreira e a interpretação de canções de José Afonso. Tudo isto nos tempos da outra senhora, no palco do Ginásio do Liceu. E pôde ainda este acontecimento incluir uma interessante originalidade: a exposição de pintura contemporânea, com destaque para as reproduções dos mestres do impressionismo.
Não era fácil a tarefa de levar à cena La Cantatrice Chauve, naquela época, numa pequena ilha. O dramaturgo romeno, autor da peça, caracterizou-se por um estilo inteiramente novo, introdutor do nonsense no teatro. No caso presente as personagens participam em conversas e diálogos absurdos com a solenidade de encontros entre pessoas da classe média mais tradicional. Muitos de nós ainda se lembram de ouvir a Odília, no papel de criada, a dizer: «Comprei um penico para o meu quarto». E contrariando todos os receios o espectáculo foi ovacionado pelo público.
Todavia, o aspecto mais relevante da intervenção cultural de António Duarte no Liceu da Horta, onde foi professor, terá sido, quanto a nós, o espaço aberto para a confraternização, a mobilização das qualidades, o despertar da nossa curiosidade para os mais diversos campos do pensamento. E com alegria, com humor, quando dirigia os ensaios. «Mais alto».«Mais devagar». «Não fales à moda dos Cedros».
E morreu a preparar a segunda parte de um espectáculo com Carlos do Carmo. De repente, de ataque cardíaco. No Teatro Faialense, o espectáculo continuou. O António morreu no Hospital da Horta.
Quando tanta vaidadezinha se passeia alegremente pelas cidades destas ilhas é sempre bom lembrar aqueles que morrem do coração.
Mário Machado Fraião
In Suplemento de Artes e Letras do «Diário Insular», 12.9.1996.
(título e subtítulo adaptados a este blogue)

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2 comentários:
Conheci bem o António Duarte.
No ano lectivo de 1981/82 fomos colegas no Liceu da Horta.
Homem de enorme talento e generosidade.
Convivemos e combatemos nesse tempo.
Aqui lhe deixo esta homenagem pela voz do Mário.
O ano lectivo foi o de 1980/81. Tenho uma imensa saudade do meu amigo e desse tempo.
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