domingo, 14 de maio de 2006

Mesa

Gelados Chile

no mesmo passo
entre o odor a formigas estalando nas narinas
como pedra portuguesa em fogo
passam as nuvens
tardias

a caminho de outros poentes
outros poemas
e poentes
a mesma perfumada mancha na paisagem dos neurónios

mas a estes
impregnados de contemplativa retroprospectiva
alguém os escreve sobre toalhas de papel
num gesto deslizando
soprado de vida
como o pão acontece

ali
na cadeira exígua
olhar debruçado para a bica
o corpo dobrado a memórias
está gentil e silencioso
são letras num arame
em equilíbrio menos que precário
da perna do A de antónio ao O de mora
cada respiração
a tecla de um piano sem cauda
navegando súbito na infinita língua da costa Indica
a pulmões plenos


à força do branco marfim teclado
a negras batidas
as menores
sonoras
abrem solos para crepúsculos de arcos íris utopicamente entrepostos
súbitos como paisagens em aceleração
aos olhos de uma derradeira visão
crepúsculos de odor a glicínias de Maio
no Tejo à mão
e na Brito Camacho
também no porto a Catembe de lá

o chapéu pousado
os ossos encavalitados
circo da vida esse malabarismo das articulações
desaprendidas já do tempo das acácias florindo
sepultadas com os poemas mais físicos
para os lados da ponta vermelha

e não acontecem

e isso foi na altura em que fizemos o pião com o DKW
na moamba
e lá vem ela
a MOAMBA
escrita com arbustos rasteiros
recortados e adornando a encosta
- à moda do Minho sabe-se lá
e que tínhamos nós com o Minho?-
no mesmo passo de antes


agora a velha posição na mesma mesa e a mesma respiração
a tinta nos dedos mais que a leitura
malaca é hoje uma palavra vaga e só é para aqui chamada porque nos chega a maresia de uma saudade intensamente bebida nas crónicas
prolongamento de especiarias num odor a quinhentos

quantas vezes apesar de tudo se viveu o caril
silves
marvão
inhambane
namaacha
salvador
bahía
goa

vultos em uma esquina ao dobrar a folha da vida

e também uma prospectiva para as criaturas
e esse dom de pensar um mundo descomerciado
de gente livre
singular e único

f.arom

3 comentários:

Anónimo disse...

com saudades de África?
De difícil leitura mas perceptível no conteúdo. Muito bonito!
Pana

Anónimo disse...

Sobretudo um poema muito bonito e um apelo a "esse dom de pensar um mundo descomerciado/ de gente livre/ singular e único". Produto de uma memória que me toca. Parabéns!

Kane disse...

Gostei.
Pelos odores e os sabores na mestiçagem desta Tropicália. Pela procura de manchas perfumadas nos neurónios, de sensações de bem-estar. Do mundo, não aquele que nos é contado, mas aquele que queremos fazer...