sábado, 13 de maio de 2006

Da capital do Império

Olá,
Presumo que alguns de vocês estão chateados com a minha falta de regularidade e talvez mais ainda pelo facto de eu na minha última carta ter prometido que vos iria escrever dentro “de dois ou três dias” para finalizar as minhas impressões sur le Quebec. Foram dois ou três dias à… espanhola (ou à portuguesa?).
No Quebec isso seria razão, talvez, para me chamarem “meu hóstia”. Hóstia? É de fazer rir de espanto mas é verdade.. No Quebec não chame a alguém “hóstia” ou diga a palavra “tabernáculo” ou “cálice” ou mesmo “baptismo” em público. Essas palavras, todas elas vindas dos rituais da Igreja Católica, são insultos ou pelo menos palavras estilo “porra” a não dizer em boa companhia, portanto. Como por exemplo “mon ’sti” (meu hóstia) é o equivalente a dizer “meu sacana”.
“Ah mautadit tabarnac ’sti baptême”, seria como afirmar “Ah maldito sacana, porra, caraças”. (Note-se que o quebecois não diz “maudit”. Faz-lhe uma modificação ligeira só para dificultar a vida dos tipos como eu que por terem aprendido francês na escola pensam que vão compreender o que dizem os quebecois. Pois, pois…)
Isto para voz dizer que o uso de “cálice” e “hóstia” como pejorativo demonstra que o que em tempo era muito sagrado para os quebecois é agora algo a ser totalmente menosprezado. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, diriam alguns. O que é verdade mas neste caso reflecte, mais do que isso, a conturbada história desse pedaço francófono implantado na América do Norte em que a Igreja Católica jogou sempre um papel importante. Primeiro a “civilizar” os “sauvages” que habitavam essa zona a que chamavam Kebeq e depois a manter calmos os descendentes directos das ambições imperiais falhadas de la patrie française.
(Alguns dos indígenas chatearam-se mais rapidamente com os padres do que a brancalhada local. Fui informado que há uns “mártires” católicos - esqueço-me os nomes - que foram cozinhados vivos pelos índios. Não sei bem com que fim porque fui também informado que não os comeram.)
Após James Wolfe ter derrotado Montcalm em 1759 os “bifes” decidiram deixar os francófonos locais às suas instituições semi-feudais vindas de França e na qual a Igreja Católica jogava um papel predominante. O papel da Igreja Católica em governar os Quebecois aprofundou-se após uma falhada revolta em 1837 que levou à execução dois anos depois de 12 “patriotes” que se convenceram que poderiam derrotar o império britânico. (O que prova que o frio daquelas zonas congela não só as mãos mas também o cérebro. Explica também o misterioso “Je me souviens” escrito em todas as matrículas dos carros de Quebec. Não é - ao contrario do que pensam muitos Quebecois - “je me souviens… de les anglais” mas sim “Je me souviens… de les patriotes).
A partir dessa revolta a Igreja Católica assumiu-se como entidade protectora dos quebecois controlando TUDO na vida local. E quando eu digo TUDO não é tudo à la igreja portuguesa. É TUDO. Por exemplo só após a “ “Revolution Tranquille” dos anos de 1960 é que a Igreja Católica deixou de controlar a educação. Todos os quebecois do sexo masculino nascidos até aos anos 60 têm o primeiro nome de Joseph. Todas as mulheres nascidas até à “revolution tranquille” têm o primeiro nome de Marie. Mas ninguém toma atenção agora ao primeiro nome. Portanto quando for ao Quebec não peça para falar com a Marie. Embora o país esteja repleto de Marias ninguém sabe quem elas são. (De qualquer modo essa de dar a todos os machos o nome de Joseph fez-me lembrar aquela história do chefe de posto de Moçambique que no dia de registar nomes dava a todos os nomes de António ou Oliveira em honra do “patrão grande” em Lisboa).
No Quebec e após as revoltas fracassadas a Igreja Católica decidiu que o papel dos quebecois era o de não chatear os “bifes” que passaram a controlar o comércio e a indústria transformando os francófonos em agricultores, trabalhadores ou, os mais afortunados (poucos) em médicos e engenheiros mas nunca “businessmen”. Como dizia a igreja católica da região “On est né pour un petit pain”. O “grand pain” pelos vistos era para os ingleses…
Jean Lesage, o homem que lançou a “revolution tranquille” mudou – se calhar sem o querer – tudo isso. Deixou de haver canadianos francófonos, passou a haver quebecois: o “joual”, esse maravilhoso francês livre que se fala na província passou a ser honrado como tal, falado em peças de teatro, usado nos livros. A Igreja Católica foi para o galheiro. Igrejas há muitas mas a sua influência é nula. No “Oratoire St Joseph”, uma enorme igreja que me faz lembrar o Sacré Coeur de Paris, há sempre dezenas ou centenas de pessoas. Turistas a verem, imigrantes a rezarem. Quebecois? Só a acompanharem os turistas….
Pena que já me esteja a alargar demasiado mas tenho que voz dizer ainda que descobri porque é que o General de Gaulle em 1967 causou um “barraca” diplomática quando gritou da varanda da câmara municipal de Montreal: “Vive Le Quebec Libre”.
A umas poucas dezenas de metros da Câmara há uma estátua de Lord Nelson que foi ali colocada pelos ingleses antes mesmo de terem construído a famosa estátua colocada na praça de Trafalagar em Londres.
Eu creio que De Gaulle, da varanda olhou para a estátua e deve ter dito para consigo mesmo “Mautadit ’sti calice” e depois bem alto para todos ouvirem:
“Vive le Quebec … Libre”. Tomem lá ó “bifes” que é para aprenderem. “Baptême! Calice!”
Estou ainda convencido que como prémio os quebecois lhe ofereceram depois um “peido de freira” (Pet de Soeur), um bolo de receita local.
Do vosso amigo
Jota Esse Erre

PS – O Boulevard St Laurent (conhecido por todos como “La Main”) divide a cidade na parte inglesa e quebecoise. Uns para um lado outro para o outro. Os imigrantes de língua inglesa (indianos por exemplo) vão para o lado inglês. Os de língua francesa (Haiti por exemplo) para o outro. As lojas dos tugas estão no meio, ao longo do Boulevard St Laurent, à “beira Main” plantados portanto. As ruas dos generais Wolfe e Montcalm estão lado a lado a indicar senão uma reconciliação um andar paralelo de vizinhos. E no livro de visitantes da Câmara Municipal houve um canadiano inglês que escreveu em inglês: “O meu Canadá inclui o Quebec porque sem vocês não seríamos canadianos – seríamos americanos insignificantes”. Bonito…

Jota Esse Erre

3 comentários:

Anónimo disse...

Hoje vou a correr para Fátima a penitenciar-me por ter lido, hoje, este texto.

Deixo um beijinho para o Jota Esse Erre

Anónimo disse...

Ganda J S R

Apesar de tudo, nao perdeste a veia...

Anónimo disse...

Blogue de 5 estrelas.