segunda-feira, 1 de maio de 2006


Desenho de Luís Ralha


Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.

Eugénio de Andrade

4 comentários:

Anónimo disse...

PEQUENA FÁBULA

«Ah», disse o rato, «o mundo cada dia fica mais apertado. A princípio era tão grande que até me metia medo, depois continuei a andar e ao longe já se viam os muros à esquerda e à direita, e agora - e não passou ainda assim tanto tempo desde que comecei a andar - estou no quarto que me foi destinado e naquele canto já está a armadilha em que vou cair.» «Tens de inverter o sentido da marcha», disse o gato, e comeu-o.

Franz Kafka

Anónimo disse...

UMA MENSAGEM IMPERIAL

O imperador - ao que se diz -, foi a ti, ao súbdito solitário e lastimável, à sombra ínfima que perante o sol imperial se refugiou na mais remota distância, foi precisamente a ti que, do seu leito de morte, ele, o imperador, enviou uma mensagem. Mandou o mensageiro ajoelhar-se ao pé da cama e sussurrou-lhe a mensagem ao ouvido. Assentindo com a cabeça, confirmou a exactidão das palavras. E, diante de todos quantos assistiam à sua morte - haviam derrubado todas as paredes que constituíam estorvo, e na escadaria lançada em anfiteatro amplo e elevado, dispostos em círculo, estavam os grandes do império -, diante de todos, despachou o mensageiro. Este pôs-se logo em marcha, homem vigoroso, incansável; estendendo ora um braço, ora outro, abre passagem entre a multidão; quando encontra um obstáculo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmente, como ninguém. Mas a multidão é enorme; os quartos não têm fim. Estivesse o terreno livre, como voaria, breve ouvirias na porta o golpe magnífico do seu punho. Mas, em lugar disso, como são inúteis os seus esforços; continua ainda a forcejar por entre as salas do palácio interior; jamais conseguirá passar além delas, e se conseguisse, nada estaria feito, teria de bater-se para descer as escadas; e, se as vencesse, nada estaria feito; teria de percorrer pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novas escadas e pátios; e mais outro palácio; e assim por milénios; e quando finalmente escapasse pelo último portão - mas isso nunca, nunca poderia acontecer - teria apenas chegado à capital, o centro do mundo, atulhado até cima com toda a sua ganga. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu imagina-la, enquanto a noite cai.

Franz Kafka

Anónimo disse...

A princípio é simples anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebem-se as certezas num copo de vinho
vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que leva a peito
bebe-se come-se e alguém nos diz bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vem cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se um descanso por curto que seja
apagam-se as dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
outra maré cheia virá da maré vaza
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida


Sérgio Godinho

Anónimo disse...

Lisboa Antiga em duas "penadas". De Mestre.