sábado, 12 de novembro de 2005

A esquerda e a direita entre o céu e o inferno

Há muitas formas de abordar a questão francesa, mas todas elas tem de se reportar aos problemas reais que se vivem hoje. São fruto de um acumular de tensões e situações, que começaram timidamente há quatro décadas, com as descolonizações, e revelaram-se de forma mais nítida e com maior impacto, há pouco mais de duas. Actualmente, com a globalização, tudo se agravou, nas mais diversas vertentes. Por isso, considero que fazer uma análise do que se passou à luz dos acontecimentos do Maio de 68 é tão desactualizada como as músicas do Engelbert Humperdinck. Mais coisa menos coisa. E porque hoje é sábado, um dos dois dias de preguiça que o Estado-Providência me concede semanalmente, socorro-me de um artigo de opinião para o debate. Tem o título "França e a cartilha do Ocidente", e é assinado pelo Henrique Monteiro. Agora que os fogos estão a passar rapidamente e em força para as lareiras dos lares franceses.
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(...) A forma mais simplista de contar a história é afirmar que esta é uma revolta da juventude, nomeadamente pelo facto de Sarkozy ter chamado «escumalha» aos jovens dos subúrbios. Mas, verdadeiramente, ninguém acredita que isto mesmo não acontecesse, mais dia menos dia, sem a colaboração destemperada de Sarkozy. Outro modo simplista de encarar a história é, concordando com Sarkozy, achar que todos estes jovens são, de facto, «escumalha».
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Ambas as versões são, em parte, verdade e, em parte, mentira. Há uma revolta latente e, como em quase todos estes acontecimentos, há uma «escumalha» que se aproveita. Perante isto, a sociedade olha com algum espanto. Logo em França, que enche a boca com o seu modelo social e a sua integração exemplar - a pátria da liberdade e da igualdade. Logo em França, onde chovem subsídios para tudo e mais alguma coisa: para a integração de africanos e magrebinos; para a alfabetização das minorias; para o acolhimento aos imigrantes.
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Escapa-nos, porém, o essencial. Escapa-nos que esta segunda geração, já educada na Europa, não tem a mesma motivação dos pais. Estes imigraram para fugir à miséria (à verdadeira miséria e não ao que se chama miséria dentro da Europa). Trabalharam e trabalham como cães, nos empregos mais difíceis e mais desqualificados, conseguindo, com o pouco dinheiro que ganham, mandar parte para a terra e sonhar com um futuro melhor para os filhos. Os portugueses bem conhecem esta saga; «mutatis mutandis» foram parte dela em França.
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Mas a segunda geração, educada entre nós, ouviu a cartilha cultural pós-moderna. Uma cartilha contra o «melting pot», a favor da afirmação da diferença; uma cartilha de irresponsabilidade pessoal e de dependência social do Estado; uma cartilha que coloca todos os benefícios no tempo presente e todos os sacrifícios como dispensáveis. É esta nossa cultura que contribui decisivamente para a tribalização da sociedade e para o fim da ideia da recompensa diferida.
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O que os jovens dizem na rua é que não se sentem franceses, nem belgas, nem alemães, em parte porque lhes ensinaram que nada havia de maravilhoso em se ser europeu; pelo contrário, hoje em dia, ser-se europeu é sinónimo de pertencer a um continente que fez coisas terríveis na história (apesar de isso ser tão verdade para a Europa, como para a Ásia ou a África). O que hoje os jovens pensam é que não é necessário trabalhar duro para mais tarde terem uma recompensa. Apenas sabem que não têm o que lhes prometeram - um reino de facilidades sustentadas pelo Estado e repleto de assistentes sociais e ONG que velam por eles.
Claro que também não é apenas isto que conduz os jovens à violência. Mas é também isto. E este talvez seja o aspecto de que menos falamos; a culpa que menos assumimos; a responsabilidade que menos reconhecemos.
Henrique Monteiro, in"Expresso" 12.11.05

7 comentários:

Anónimo disse...

" Je sais que vous les comptez pour rien,parce que la cour est armée; mais je vous supplie de me permettre de vous dire que l´ on doit les compter pour beaucoup, toutes les fois qu´ils se comptent eux-mêmes pour tout. Ils sont là: ils commencent eux-mêmes à compter vos armées por rien ". Cardeal de Retz, Memórias. O "Expresso" de Lisboa não quer mesmo Maio 68: nem nas palavras, nem no texto, nem nas premícias de uma nova forma de protesto nihilista.Quer a paz dos cemitérios e dos impotentes.
Reproduzimos neste Blogue os melhores debates sobre os acontecimentos deste Novembro 2005 muito quente. Os grupos trotskistas e m-l franceses, como o Bloco de Esquerda em Portugal,não esboçaram ainda uma reacção aos acontecimentos. Os anarquistas exprimem-se agora no " Canard Enchainé " e no " Charlie Hebdo "
para venderem melhor o seu peixe.
Mas o poder de Estado está à rasca: o NYTimes dizia anteontem que o facto de Chirac ter muitas nódoas judiciais no curriculum não facilita mesmo nada as coisas, pois o sentimento de irresponsabilidade parte de cima. Sharkozy trava um braço-de-ferro com Chirac e Villepin ( putativo candidato presidencial de Chirac)e
sem retenção nem cautela protocolar, lançou a faúlha que incendiou o tenebroso campo de forças da política francesa, onde não existem por ora alternativas ao " pesadelo climatizado " que a mutilação estéctica e ideológica
manietam e manipulam.FAR

Anónimo disse...

1. A questão francesa não começou timidamente há quatro décadas.
Começou bombasticamente.

2. Não nos escapa nada, contrariamente ao que diz Henrique Monteiro. Os revoltosos não leram cartilhas. Foram vítimas de exclusão social. O espaço que habitam e o seu percurso escolar são disso exemplo.

Anónimo disse...

Os retornados da Argélia e das outras colónias francesas não são a origem dos problemas actuais da terra do Beaujolais. Estes têm a ver com a imigração e mais concretamente com a segunda geração. Onde estão os intelectuais nas universidades, onde estão os operários das fábricas, onde estão os radicais a pedirem mudanças estruturais na sociedade?

Hoje pede-se que não se esqueçam dos problemas dos jovens, a segunda geração pós-imigração, que são o desemprego, a educação, a formação, ou seja, as oportunidades de vida normais na sociedade francesa. Esta crise era previsível há décadas. Qualquer governo responsável teria tomado medidas em tempo devido para que este tipo de situações não acontecesse.

Os grandes problemas na Europa surgem cada vez mais com a globalização e com pessoas, que não têm culpa que os políticos europeus sejam uns merdas.

Entretanto, os neoliberais teimam em que o mercado deve ser capaz de resolver este imbróglio e quem estiver fora, rua. Fora das fronteiras. No entanto, basta olhar para a história e perceber que essa é uma responsabilidade do governo, que deve zelar também com a sua integração.

Porque os imigrantes são necessários, não como mão-de-obra barata, mas sim como trabalhadores fundamentais para colmatar as lacunas que uma população cada vez mais envelhecida é incapaz.

A história não se repete. Porque os protagonistas são diferentes, as relações de classe são diferentes e porque afinal passaram 37 anos, desde que o Maio de 68 aconteceu. É pouco dialéctico pensar que o tempo volta para trás e que hoje vive-se o 68. Já nem o António Mourão acredita nisso.

Há quem pense que o conhecimento é um processo de acumulação de informação, que deve ser tratada de forma inovadora. Neste caso, os protagonistas são necessariamente diferentes. A brigada do reumático do Maio de 68 sabe que não pode menosprezar as novas gerações. Vai contra a sua fé! Que é implacavél e pouco paternalista com os velhadas, de época.

Anónimo disse...

Acho que existem pessoas que não têm força ou mente para perspectivar a história... imediata. A Comuna- que influenciou tanto Marx como Walesa ou Zapata - tem o sentido histórico sobredeterminado, que ultrapassa as páginas do calendário ou das conversas de café...
" Aujourd´hui il n´ y a même plus de prolétariat exerçant sur lui-même une ditacture violente par despote interposé- il n´y a que des masses fluides et silencieuses, équations variables des sondages,objets de tests perpétuels qui tel un acide,les dissolvent. Tester,sonder,contacter,solliciter,informer- c´ est une tactique microbienne, tactique de virulence òu le social prend fin par dissuasion infinitésimale,où il n´a même plus de temps de cristalliser.(...) La question de la résistance possible à cette tactilité envahissante, d´un revers possible de simulation sur la base même de la mort du social reste posée ". Jean Baudrillard, in " La Gauche Divine ", Grasset.FAR

Anónimo disse...

AGENDA LX - Novembro
Michel Foucault - referência na crítica europeia ao capitalismo e à globalização e autor, com Michael Hardt, de EMPIRE.
Toni Negri estará em Lisboa dia 25 para participar no colóquio internacional MICHEL FOUCAULT: Lei, Disciplina e Segurança, que se realiza 30 anos depois da publicação de VIGIAR E PUNIR, a obra em que M. Foucault formaliza a sua filosofia do poder. Uma oportunidade para se falar do que se passa na Europa e em particular em França e em Portugal. ENTRADA LIVRE.

Anónimo disse...

Não a uma globalização selvagem!

Imigração, sim, com peso e conta, e à medida das necessidades. A velha esquerda ainda
tem preconceitos sobre esta matéria.

Guetos de imigrantes ou não-imigrantes, Não. Exclusão social, idem.

Sobre a citação tirada de “ La Gauche Divine” : para reflectir.

Anónimo disse...

Emmanuell Todd, o radical geógrafo-socio, que desvendou mundialmente os pés de barro do Império USA, no best-seller" Après L´Empire- Ensaio sobre a Decomposição do Sistema Americano", porventura o grande livro do início do séc.XXI, pela estratégia e pela ousadia da desmistificação( o livro de Negri-Hardt não usufruiu do impacto e da limpidez exaltante do Après...)
concedeu uma entrevista ao Le Monde, edição de fim de semana. Onde diz expressamente, em contra-a-corrente:" " Nada separa os jovens emigrantes do resto da sociedade. Leio a sua revolta como uma aspiração pela igualdade.
É uma total estupidez da parte de Sarkozy, ministro do Interior, insistir sobre o significado estrangeiro dos jovens amotinados.. Creio que esse fenómeno é típico da sociedade francesa.Os jovens etnicamente misturados de Seine-Saint-Denis inscrevem-se numa tradição de levantamentos populares que pontua a história da França. A sua violência traduz também a desintegração da família magrebina e africana em contacto com os valores da igualdade francesa.( ...) Estou optimista em relação aos valores políticos postos em plano ". A não perder. FAR