terça-feira, 22 de novembro de 2005

Chuva e half jack numa noite de Maputo

Os engenhosos cultores do terrível vício de consumir aguardente caseira, de melaço ou solução de bateria, deram-lhe um nome bonito, sugestivo e por demais poderoso: half jack!
O half jack é uma medida de um quarto de litro de aguardente de primeira - tem de ser de primeira (sndere) - senão nada - que, normalmente, se bebe sem companhia, contrariamente ao que é norma para as outras medidas, sejam de primeira, segunda ou terceira. Nos quintais da zona urbana da cidade de Maputo, um half jack custa dois contos. Na periferia, um conto e meio.
Pois bem: naquela madrugada de sexta para sábado choveram canivetes: cats and dogs.
A chuva caía em catadupas, as gotas de água feitas projécteis que embatiam no asfalto e no cimento dos passeios com um impacto seco, metálico e lívido de ira.
Tomado de insónias e atraído pela grandeza do espectáculo, enfiei a minha velha camisola de algodão e fui à varanda ver: nem carro, nem peões, nem bêbedos tresnoitados, nem prostitutas crepusculares, nem meninos da rua: apenas o silêncio gritado da chuva a cair. Por volta das seis da manhã, a chuva abrandou.
Continuava, porém, o impetuoso rio das suas águas descendo avenida abaixo, berma a berma, rumo ao subúrbio das Lagoas, à Mafalala, ao Stala Mati. Senti-me deprimido, imaginando o trágico e cíclico destino dos milhares de seres iguais a mim, àquela hora, naqueles bairros.
Iguais a mim não propriamente: eu estava no resguardo da minha varanda de primeiro andar, agasalhado, se desse uma volta iria para o aconchego das minhas mantas, o halo quente da minha consorte, um chá, em querendo, o What a Wonderful World de Louis Armstrong, em querendo!
Voltei em pontas dos pés para o quarto, ela ronronava auave e compassadamente, meti-me num par de calças de flanela pretas, botas, a camisola seria a mesma. Abri a porta e fui, quase a correr, para as Bananeiras. Bananeiras é o nome de um sub bairro que fica entalado entre as avenidas Acordos de Lusaka, Marien Ngouabi e a rua Milagre Mabote. É uma espécie de zona tampão, anexamente com a defunta e de má memória Praça da Paz.
A água chegava-me aos joelhos. A terra, barrenta e saturada de água que já não pode, de há muito, absorver, escorregava sob os meus pés. Tinha que caminhar devagar, os pés o mais afastados possível para aumentar o eixo do equilíbrio.
À volta, o espectáculo miserável do destino miserável de centenas de famílias entregues à tarefa ingente e inglória de acarretar em latas, em bidões sem o tampo, em jarras de plástico, a água que se tinha infiltrado para dentro do casebres. O quintal dela era uma lagoa de águas barrentas, suadas.
Cheguei de sorriso triste, mas ela estava vivaz e firme. Tinha que transmitir confiança aos seus clientes, confortá-los. Estavam sentados sobre grandes ou pequenos blocos de pedra, em pequenos grupos, como sempre, mas em silêncio, tiritando, contrariamente ao que era norma, no meio de cada grupo uma garrafa de exportação ou média, o maquinista a distribuir o álcool, que se bebia pelo mesmo copo, de plástico que ia passando da boca para o maquinista, das mãos deste, depois de cheio, para o consumidor seguinte. Ninguém me olhou. Ali ninguém presta atenção a ninguém.
De pé, disse-lhe: - Vô Matilde: dá-me lá um hâfo jâck.
- Certamente, filho. Não te sentas ? A água está a correr, ainda és capaz de cair.
A Matilde, com mais anos de cheias do que o Sahara de seca, tinha, ao longo do tempo, montado zonas altas nos cantos do quintal com recurso a entulho de origem diversa. Era nessas ilhas que se acomodavam os seus clientes naquela manhã de borrasca. Embuti uma taça de hâfo jack, de pé e senti como que um esticão provocado por uma elevação repentina do corpo, por efeito de um gancho sob a nuca, enfiado numa roldana. A coluna distendeu-se, os músculos ficaram tensos como um arco com a flecha pronta a varrer o ar. Embuti o segundo e tudo voltou gradualmente ao estado de relaxamento total.
Half jack!...
Circunvaguei então o olhar pelo quintal: velhos aposentados que à noite fazem de guardas na cidade de cimento para disfarçar o complexo de inutilidade social, estivadores na eterna espera do barco das Américas a caminho das Ásias, jovens desactivados da sociedade depois de fazer - ou mesmo antes - o ensino secundário e não caberem no mercado do emprego, velhas e desencantadas viúvas a quem os filhos, com formação superior, renegam por analfabetas e desconhecedoras de como se usa o garfo e a faca à mesa - “Senhor doutor, como está a senhora sua mãe ?“. “Ah! Não soube? Ela morreu.” - na verdade essa está morrendo a cada momento no quintal da vô Matilde, de cirrose, com doses diárias industriais de tontonto:
- Vô Matilde. Dá lá mais um hâfo. Daqui a meia hora tenho que estar na oficina.
Cheguei à oficina, assinei o ponto, arranjei um canto e fui dormir, sonhando chuva!
*
Fernando Manuel
in “SAVANA, semanário independente”, Maputo 11.11.05

5 comentários:

Anónimo disse...

Folgo muito em ver aqui um texto do meu dilecto amigo Fernando Manuel. Venha lá mais uma rodada de half jack à saúde dele. Um abraço, Fernando!

José Pinto de Sá

Anónimo disse...

um hâfo Jack também p'ra mim; Muito boa «história», super imagem e uma Moçambicana com muito estilo...

Anónimo disse...

Gostei. Da crónica, da chuva...
O 'hâfo jâck' quero provar, um dia, LÁ!

Anónimo disse...

Um bravo para este ternurento/sombrio «hâfo jâck». Saravá.

Anónimo disse...

conheço as Bananeiras, ia lá às vezes no Verão beber uma bebida de ananás muito doce...e alcoólica, mas soft. E enquanto lia o artigo viajei para lá, e revi a cena toda agora à chuva e com trovoada!!! foi bom !!!!!!!!