Não é óbvia a matriz religiosa no pensamento liberal. Como chamar religioso a um pensamento que põe no “indivíduo” a tónica? Para a entendermos, mais uma vez teremos de “levantar o véu” e reconhecer os subterrâneos do texto liberal. A religiosidade no liberalismo assenta em três dogmas: 1- A perfeição das organizações: para os liberais, o modelo organizativo da sociedade humana actual, longe de ser circunstancial ou determinado, resulta da prossecução do projecto essencial do Homem. É o “ímpeto” imparável da Evolução. Os liberais são darwinistas dentro do sistema, porque entendem que este se regenera através da competição, em que sobreviverão os melhores, mas são hegelianos fora dele, uma vez que são incapazes de aplicar o seu darwinismo à estrutura geral do modelo organizativo. Daqui resulta do seu discurso que só aparentemente é adaptável- o modelo vêm-no como fixo. 2- A infalibilidade do individuo: é claro que os liberais não supõem que os actos de cada indivíduo são infalíveis, mas julgam reconhecer a infalibilidade nas acções do conjunto geral das formas organizativas do indivíduo. Daí que o seu projecto seja permitir a livre competição entre indivíduos, ou organizações de indivíduos, uma vez que o resultado final dessa competição será sempre positivo. Imersos nesta semi-religiosidade, os liberais são incapazes de entender que nas organizações humanas a estrutura de poder é assimétrica. 3- A positividade da empresa: É curioso, mas os liberais vêm a perfeição nesse modelo que é a “empresa”, quando falam das “empresas” adoptam um tom divinatório, convencidos de que as “empresas” irão resolver “os problemas” se puderem simplesmente “ser empresas”, operar. Isto é a ontologia da empresa, assim mesmo com estas palavras. Os liberais estão sempre convencidos que o mercado, a acção das suas “empresas”, irá encontrar a justa via. Pouco lhes importam os exemplos que se repetem que contrariam este dogma: ainda ontem se descobriu que as farmacêuticas estavam a cartelizar o mercado português. Pouco lhes importam as Enrons e quejandas, para os liberais estes são ramos podres da árvore. Como não reconhecem a assimetria da estrutura de poder, não percebem que isto é toda a árvore. É que, como o exemplo das farmacêuticas permite mais uma vez compreender, o interesse das empresas só circunstancialmente pode coincidir com o interesse geral; de qualquer modo, não é esse o seu objecto. Mais, sem o Estado que abominam não haveriam investigações e responsabilização destas práticas que a todos prejudicam, o que não é problema para os liberais, que devido à sua fé cega no mercado, julgam que do desaparecimento do Estado surgiria uma “ética” empresarial responsabilizadora que por si só nos levaria ao Paraíso.
16 comentários:
Algumas reflexões sobre o post:
• quando há objectivos a atingir, a “perfeição” da organização é fundamental, não se pode escamotear tal facto. Não gostaria de falar em perfeição, mas em “ elevado índice de qualidade “. O famoso símbolo Q não deve somente reflectir a qualidade do produto final. Há muitos outros itens que conferirão a perfeição ( e isto não é retórica de blogue). Sei lá, são também, por exemplo, as relações de trabalho, a formação e motivação dos agentes, a protecção ambiental se for caso disso, etc. etc. Um verdadeiro certificado de Qualidade “ não deve ser passado “ de forma leviana ( e aqui estará aqui o calcanhar de Aquiles da apregoada “ perfeição”). A Qualidade tem que ser diferenciadora, justiça lhe seja feita!
• Já em relação ao darwinismo, há muito que se lhe diga, na tentativa do seu paralelismo com o Homem…Os chamados mais capazes, “ que sobreviverão”, beneficiam muitas vezes de sistemas viciados, com Legislação e Justiça à medida. Se o mais capaz é aquele que consegue viciar o sistema, e por via disso sobrevive, então direi: NÃO OBRIGADO, porra para o vosso darwinismo!
• Sobre a positividade da empresa e, em caso limite, a globalização, “ só é boa quando não nos toca a nós”…Quando há dumping social, empresas que se transferem para a China ou Vietnam, porra, que Não…Como as farmacêuticas, com o medo da concorrência. E depois “ Aqui del Estado “. O liberalismo é muito bonito, mas é tão bom continuar a viver num Estado-Nação…
Eu receio tanto o fundamentalismo liberal, como o estado excessivamente protector …
É PRECISO NÃO CONFUNDIR "liberal" COM "Liberalismo Selvagem".
Excelente artigo!
Estimado, o liberalismo não defende que os individuos são infalíveis ou que o relacionamento entre individuos é necessariamente positivo. Apenas que se deve deixar ao individuo tomar as decisões que entender, e acarretar com as consequências das decisões, por oposição a uma estrutura centralizada de decisão. Ambas as soluções têm defeitos. O liberalismo nunca, ao contrário dos restantes ismos, afirmou ser a luz verdadeira da humanidade.
(excepção ao aviso, uma vez que o tom é cordial):
Caro comentador anterior: se observar a hermeneutica do discurso da ideologia actualmente dominante, verá nitidamente o discurso da "luz da humanidadade", como diz. O pensamento liberal actual (o "pensamento único") diz claramente que nã há soluções para além dele próprio. O que é isto senão messianismo?
Para mais, o liberalismo, e a minha crítca ao mesmo, vão (como se pode perceber lendo o post) muito para além de que «se deve deixar ao individuo tomar as decisões que entender, e acarretar com as consequências das decisões, por oposição a uma estrutura centralizada de decisão». Com isto estaria eu completamente de acordo, mas não é isto que se passa com o actual ataque ao Estado: trata-se do fim de toda e qualquer estrutura de regulação e arbitragem das relações entre os agentes económicos, que resulta na prática numa crescente assimetria e desigualdade entre aqules que têm poder (leia-se: capacidade económica) e os que não o tem, e isto provoca não só a clássica "injustiça" mas também a crise do próprio sistema, justamente pela ausência de mecanismos reguladores.
André...,(quer "Caro" ou "Estimado"), não me lixe com essa da ausência dos mecanismos reguladores! Não conheço nenhum que funcione bem. Esses "mecanismos" cheiram-me sempre à ditadura dos incompetentes! A melhor regulação, é o mercado em si. São de uma brutalidade e eficácia tremendas. Casos que provam isto não faltam. O importante é haver tribunais que funcionem bem, e que investiguem com eficácia as denúncias dos consumidores e clientes. Em suma, o Mercado.
Caro, ou estimado: mecanismos reguladores: FMI, BM, OMC (só estou a dar exemplos, não a concordar com a praxis desses organismos). Reguladores para controlar o mercado no sentido de este não provocar a bancarrota global!
Mercado como regulador? Não brinque comigo. Farmacéuticas a cartelizar o mercado, o BES a fugir aos impostos, Enrons e etc, e estes casos são a pontinha do iceberg. Preciso de lhe referir os milhões nas Caimão, Virgens, Madeira, etc. sem pagar impostos, enquanto o trabalho é taxado com mão pesada? Ou o prezado é a favor do mercado mas contra os off-shores? Curiosamente, p. ex. no caso das farmacéuticas, foi a alta-autoridade para a concorrência que detectou a fraude, e já ví várias vezes os liberais a criticarem o conceito de "altas autoridades". Quem iria descobrir então? O mercado por si mesmo? Os prevaricadores iriam auto-denunciar-se? Algum D. Quixote director de um hospital? E sem estas altas autoridades já viu como seria tão mais fácil a corrupção da outra parte, as administrações hospitalares? Ou acredita na "bondade intrínseca" ao homem, e é uma papa ideológica liberal-Rousseau do "Bom Selvagem"?
A verdadeira questão, contudo, é a confusão entre "mercado", "interesses particulares" e "interesse geral". Vejamos este exemplo: se eu tiver milhões a perder de vista, não preciso de polícia (tenho segurança privada), não preciso de segurança social (porque não preciso de reforma), de hospitais públicos (pago pelos melhores tratamentos), de escolas públicas (inscrevo os meus filhos em colégios de élite). Do que eu preciso é de uma coisa muito simples: tribunais (porque me podem sempre fazer um desfalque). É curiosa a coincidência com o programa liberal, para os liberais só precisamos de tribunais e mais nada. Mas se ganhar 500 € por mês preciso de todas as coisas acima descritas, e com a melhor qualidade possível, uma vez que não tenho dinheiro para as pagar. Chamem a isto discurso de classe, ou da luta de classes, porque é mesmo o que este discurso é. Agora pensemos no "interesse geral"; será do "interesse geral" acabar, p. ex., com as escolas públicas? Como, se a esmagadora maioria das pessoas não poderá pagar as privadas, ou se puder serão necessariamente as mais baratas, logo de pior qualidade? Ou, indo mais longe, será do interesse geral esse sistema em que as desigualdades são assim perpetudas, o que origina necessariamente maior conflitualidade social, quiçá sangrentas revoluções?
André, se o seu horizonte é Portugal, dou-lhe toda a razão; mas felizmente o mundo não começa e acaba em Portugal. Só em Portugal,( isto é de filme, André ), é que as farmacêuticas é que reunem na entidade reguladora, o Infarmed, para cartelizar os preços, como recentemente aconteceu. As entidades que referiu, não regularizam,( isto é se percebi todas as siglas ), algumas estão lá para impôr modelos de desenvolvimento aos países e fazer negócio. Ninguém dá nada a ninguém. Por vezes perdoam-se dívidas ao 3º mundo, mas com contrapartidas debaixo da mesa que são inarráveis...Quanto à Enron e outras, foram pelo cano porque uma coisa simples, chamada fiscalização. Houve denúncias várias, e a entidades que que fiscalizam a actividade, mas não regulam, actuaram. André, para terminar vou-lhe contar uma pequena história que muito provávelmente não é do seu tempo, e pode ajudar a perceber melhor o que eu pretendo transmitir. No tempo do "Flower Power", "Hippies", "Scot Mackenzy/São Franscisco", etc, alguns destes companheiros decidiram já no final "oficial" do movimento,( quando já tinham mais "ácido lisérgico" no sangue, do sangue própriamente dito ), ir viver para zonas muito remotas dos EUA, viver nas célebres comunidades hippies, que floresceram nos finais dos anos 60, princípios de 70. O aconteceu foi muito simples, porque muitos dos hippies eram e são pessoas com níveis culturais muito elevados, filhos de boas famílias, etc, e conhecedoras das leis, etc, a primeira coisa que fizeram foi requesitar um telefone quando chegaram ás ditas zonas remotas. Este simples gesto, quando os " sem fios " eram uma miragem, quase provocaram a falência da Pacific Bell e a ATT, porque quando as estas companhias foi dada a concessão do mercado de telecomunicações, quando assinaram o contrato com o governo dos EUA, umas das cláusulas dizia que qualquer cidadão dos EUA, americano ou lá legalmente residente, tinha direito a um telefone, independentemente do sítio onde vivessem. A concessão dependia do respeito integral do contrato, visto também ser um serviço público, não punha limitações à criatividade das empresas para ganharem dinheiro a venderem com os serviços que vendiam aos clientes, sempre em grande concorrência com outras operadoras, ( Portugal ainda é a PT Telecomlândia ), mas como você sabe talvez melhor que eu, existem nos EUA empresas colossais de advocacia, que vivem quase exclusivamente deste tipo de casos, pelo que a entidade ou agência que fiscaliza o bom cumprimento contratual, teve que agir, e negociar com as operadoras, cliente e advogados, a forma mais rápida e eficaz de por telefones nos acampamentos hippies, porque os processos que estavam em tribunal eram de tal forma destruídores, que o pagamento das indeminizações levariam à falência essas empresas. Estava de visita aos EUA, quando foi dada uma célebre sentença contra a McDonalds, porque uma velha de setenta e tal anos, com Parkinson, etc, se queimou toda, quando o "balde",( como sabe,eles bebem canecas de "café" ), de café se entornou no regaço dela. Moral da história, os advogados conseguiram provar, que se a pega do "balde", fosse desenhada de outra forma, este acidente nunca teria acontecido. A velha foi para casa com 900.000 contos,( à data ), e a McDonalds teve que alterar toda a fabricação dos recipientes onde vendiam café...Imagine as indeminizações que estavam a pedir ás operadoras telefónicas por incumprimento contratual...Moral da história, se fosse em Portugal, os hippies só comunicariam com o aparecimento dos primeiros telemóveis analógicos, a Anacom diria que a culpa era deles e que se deixassem de "freakisses", e voltassem para as cidades, etc. O problema André, é simples, CULTURA , no seu sentido mais lato e abrangente....Em Portugal procura-se....
Sobre o comentário acima tenho quatro observações a fazer:
1- Os modelos locais só relativamente são (ainda) importantes. O processo é o mesmo. Claro que as nuances existem, mas cada dia que passa se esbatem, no sentido do modelo único ultraliberal. É óbvio que aqui em Portugal as nossas caracteristicas prórprias (p. ex., o compadrio e o desenrasque, a corrupção e o miserabilismo) condicionam as nossas respostas à transformação sistémica. Mas isso não passa de um pormenor.
2- Se julga que a cartelização é um exclusivo português está redondamente enganado. E se julga que é pelo facto de o caso Enron ter sido descoberto que não há muitos outros que continuam encobertos, é porque é ingénuo.
3- As características do modelo judicial anglo-saxónico, que têm como auge o modelo americano, são de facto bizarras. Mas isso não tem nada a ver com o objecto do post.
4- «quando as estas companhias foi dada a concessão do mercado de telecomunicações, quando assinaram o contrato com o governo dos EUA, umas das cláusulas dizia que qualquer cidadão dos EUA, americano ou lá legalmente residente, tinha direito a um telefone, independentemente do sítio onde vivessem»- isto foi na pré-história do liberalismo moderno, quando ainda existia bem vincada a noção de "serviço público". Tal clausula hoje seria impossível, e se tentasse ser aplicada seria atacada por todos os lados, com os argumentos de que "distorce o mercado", "é contra as leis da concorrência", "não promove a produtividade", etc.
André, o importante é uma boa defesa do consumidor, e óbviamente uma boa fiscalização das condições contratuais com as quais as empresas ganharam os seus alvarás de produção e comercialização de qualquer tipo de produto ou serviço, ( os EUA deram um violento pontapé de saída mundial, com o Ralph Nader ), e opinião pública com um mínimo de cultura e consciente dos seus direitos. É óbvio que, e como os brasileiros dizem, "maracutáias" existem em todo o mundo, mas vou-lhe deixar uma dica para ver como funciona o que eu lhe escrevi; siga o processo do anti-inflamatório Vioxx, da Merck-Sharp-Dhome, que está em tribunal neste momento, e com uma primeira condenação num estado onde raramente acontecia em casos similares, o Texas. Vale a pena "perder" um pouco de tempo e ver a força do "consumidor-mercado", e as ferramentas formidáveis ao dispôr deles, para combater lobbies tradicionalmente intocáveis, como a indústria farmacêutica, com a toda poderosa FDA a ter que rever uma série d critérios de validadação de medicamentos.
O processo é dialético. A reacção dos "consumidores" corresponde aos mecanismos de defesa que (ainda) têm. Não é esse o projecto liberal. Esses movimentos de resistência à livre accção das empresas é o contrário do que defendem. Simplisticamente, o que eles acham é que devemos deixar as empresas operar à vontade, que os consumidores irão escolher as "boas" e prejudicar as "más", e assim fazer a famosa "selecção natural" das empresas. Os liberais não acreditam na possibilidade de cartelização. De qualquer modo, volto a insistir: aquilo que ainda vai permitindo a defesa do interesse comum contra o interesse das empresas (porque, convenhamos, o interesse das empresas é lucrar o mais possível) são os mecanismos estatais que os liberais combatem: entidades reguladoras, altas autoridades e mesmo os tribunais (ou estes não fazem também parte do "estado"?).
Apesar de tudo isto, o que acho mais importante não é a questão da "defesa do consumidor" ou das "entidades reguladoras", mas as da escola pública, hospitais públicos, segurança social pública. Porque não é só na questão dos limites à acção das empresas que se processa o actual ataque ao Estado; isso não é suficiente, e o que se pretende é que os negócios se estendam a todas as áreas que um dia (oh, saudade...) se definiram como de "interesse público".
André, os "mecanismos de defesa" vão sempre existir, enquanto entre os governos liberais e o povo, existir uma constituição, a democracia e a oposição. Em suma, a civilização. Por enquanto não acredito na derrocada dos valores que em cima enunciei. Não tenho a visão da ditadura do liberalismo. Acredito no Homem.
Este blog dá gosto, muito gosto.
Só se serve "filet".
André (não é pirraça), porque não fazes numas 10 folhas A5, atadas com um cordel ao meio e dobradas, um "Manual do Bom Liberal" (mesmo que seja mau).
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o que acho mais importante não é a questão da "defesa do consumidor" ou das "entidades reguladoras", mas as da escola pública, hospitais públicos, segurança social pública.
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