domingo, 19 de março de 2006


In memoriam
Teixeira de Sousa


É uma terra agreste, a ilha do Fogo, penúltima do Sotavento, no arquipélago de Cabo Verde. Aí cresceu a «mui nobre e altaneira vila de S. Filipe». Em frente a ilha Brava. O céu sem nuvens. O mar imenso. Nesse lugar de expressão portuguesa nasceu o médico e escritor Henrique Teixeira de Sousa.

Permanece ainda hoje um desconhecido entre nós. Todavia, o seu romance Ilhéu de Contenda inspirou o filme do mesmo nome, exibido nos cinemas do nosso país.

Contra Mar e Vento, reeditado agora pela Europa-América, é um surpreendente livro de contos do referido autor. Nessa obra, o que mais nos impressiona desde as primeiras páginas, é o facto de uma pequena ilha, pobre e pouco povoada, se transformar num autêntico universo onde será possível apreciar os mais curiosos tipos de habitantes. E o calor de endoidecer, a fome, as rixas, o corpo sensual da mulher crioula.

Nesse escasso território, cercado, esquecido, onde numa carta de Setembro alguém lembrava que «Rebocador vem fim de Oitubro», a vida pode surgir colorida, alegre ou trágica, engrandecida pela criatividade rara dos narradores cabo-verdianos. Como Teixeira de Sousa.

Acontece de tudo um pouco: o avô que «estava passando leve da cabeça», porque o velho teimava que a chuva devia chegar quando o vento sopra de madrugada; Aniceto Brasão, viúvo, com as suas quatro filhas casadoiras, falava todas as noites com a defunta mulher supostamente sentada na sua frente. Mais tarde as filhas haviam de o chorar e guardariam para sempre a recordação da formosa casa. «As buganvílias encostavam os seus ramos às paredes da capela e o roseiral enchia-se de rosas sem par».

E sempre a poeira das estradas, os campos ressequidos, a gente implorando a chuva que devia chegar pelo S. João. Ou chegaria quando chegasse. Restava fugir, tentar a sorte.

O capitão Fortunato era proprietário de uma pequena embarcação de carga, um palhabote da Praça do Fogo, Cape Verde Islands. Fortunato era aventureiro, mas desejava acima de tudo, desejava ardentemente regressar a S. Filipe onde o aguardavam a mulher, que lhe pedira uma máquina de costura, e o filho, que sonhava com a bicicleta da América. Fundeara em Providence. Investiu o dinheiro disponível em reparações, carregou o barco de mercadorias sem esquecer a máquina de costura mais a bicicleta. Largou no final de Novembro, na esperança de safar as Bermudas, evitar os temporais do Golfo, chegar a casa pelo Natal. O barco, afinal um palhabote, afundou-se nos mares do Golfo. Salvo por um cargueiro grego, iria trabalhar dois anos, pagar as dívidas, comprar outro barco, regressar a casa pelo Natal. A consoada. A Missa do Galo.

Nos restantes textos, o que sentimos a cada instante é ainda o sufocante calor tropical, a sede, as doenças, a grande solidão de um povo miserável. «A vila enchia-se de gente que abandonava os campos sem água. Vinham esfarrapados, magros, com chagas enormes fedendo a podridão. As mulheres traziam os filhos pequenos à cabeça, em grandes balaios». Os momentos hilariantes surgem como a face luminosa de uma existência mestiça, mas também ameaçadora, brutal e selvagem.

Era dia da procissão do Senhor dos Passos. Segundo a tradição, a imagem do Senhor, transportada ao longo do trajecto pelos homens mais possantes da localidade, deveria encontrar-se com a Virgem-Mãe, igualmente suportada por gente robusta. Porém, por antigos ajustes de contas que entenderam saldar nesse dia de comunhão, os homens pousaram as imagens em plena calçada envolvendo-se numa batalha campal de criar bicho. Mulheres fugiam espavoridas, as crianças gritavam. O Senhor dos Passos e a Virgem ali se mantiveram, inalteráveis, silenciosos, sobre as pedras do caminho. Sós, em frente um do outro.

E sempre as tardes de um céu desgraçadamente limpo, a longa espera das águas. Até que subitamente o vento entendeu mudar de madrugada, trouxe as nuvens densas, e o céu pesado se desfez em chuva torrencial sobre os telhados da vila, sobre a terra sedenta, enquanto o ribombar dos trovões anuncia a festa das águas que haviam de florescer as plantas, encher os poços, sossegar a gente. Por algum tempo.

Essa tradução dos dias da ilha do Fogo, com todas as tonalidades, o garrido, o grotesco, o suave, o sombrio, essa limpidez da escrita merece o mesmo nome de uma revista literária de grande significado em Cabo Verde: Claridade.

Teixeira de Sousa é seguramente um dos melhores representantes dessa escrita da portugalidade, negra e esplendorosa.

Texto publicado no jornal Correio da Horta em 16/11/99. Título adaptado.

Mário Machado Fraião

2 comentários:

Anónimo disse...

Não podemos ter textos mais recentes do M M Fraião?
Que tal uns poemas?

H. Sousa disse...

No que me diz respeito, como filho que sou de Teixeira de Sousa, agradeço esta divulgação e homenagem, creio que se trata de uma das melhores notícias vindas a público sobre o meu pai.
Muito obrigado.