sábado, 10 de dezembro de 2005

Senhor Aprígio (2)

E, com efeito, Aprígio ganhou novos, por assim dizer, contornos. Passou a querer copiar em tudo o seu ídolo.
Deixou, por exemplo, de se peidar, como era seu hábito, enquanto subia as escadas que o conduziam ao seu apartamento num 3º andar suburbano; sempre que se sentia na iminência de largar um gás, galgava os degraus dois a dois, abria a porta num ápice e dava uma breve corrida até à casa de banho onde se aliviava estrepitosamente, evitando olhar-se ao espelho.
O senhor Aprígio considerava, no mais fundo da sua alma simples, que o prof. Cavaco não se peidava, nem nas escadas, nem em parte alguma. Para o senhor Aprígio estava fora de questão que alguma vez na vida o prof. fora capaz de cometer tão indecoroso acto. Aquelas descargas das ventosidades que se acumulavam nos intestinos eram próprias de gentes sem moral nem bons costumes.
Baseado neste pensamento e na análise atenta das imagens do prof., que Aprígio guardava religiosamente num álbum, desenvolveu toda uma teoria: o prof. Cavaco, como as imagens revelavam cabalmente tinha a pose e o ‘ríctus’ facial de quem, estando à beira de largar uma flatulência, se contém no último instante e evita, assim, o estampido sonoro, normalmente acompanhado de um odor fétido. Olhando aquele esgar de sorriso, o senhor Aprígio, apreciava a contenção do prof. Cavaco num esforço quase homérico para reter o gás, matéria volúvel e difícil de segurar, como todos sabemos. Ao constatar esta evidência, banharam-se de lágrimas sinceramente comovidas os olhos de Aprígio.
« Só um espírito superior poderia submeter-se a tal esforço... », considerou ele fechando, lacrimejante, o álbum.

No sábado seguinte, a casa de massagens/relax que o senhor Aprígio agora frequentava foi sacudida por uma terrível discussão.
O senhor Aprígio exigia, num alto e desusado tom de voz, à dona Matilde o seu dinheiro, pago antecipadamente, de volta. Atarantada, a pobre senhora tentava acalmá-lo enquanto consultava com um olhar fuzilante a Vanessa, uma brasileira recém-chegada.
« Tive culpa não, siôra... Ele veio pidindo aqueli négócio di bunda e eu dei prá ele.. Só qui ná hora di eli botá, eu, sabi cum’é qui é... , respirei fundo e aquilo mi saíu... E num é qui o cara começa a mi xingar... Não fiz nada dimais, não... Um peido é coisa natural, óxente!... »
O senhor Aprígio não se conteve e declarou alto e bom som:
« Pois fique a menina sabendo que o senhor professor nunca o faria!»
E saiu, esquecido dos 30 euros que tinha desembolsado, de peito erguido. Nessa mesma tarde visitou a sede da candidatura e lá deixou os seus contactos « para o que fosse preciso... ».

À noite, no remanso do seu apartamento, folheou o álbum com um sorriso recatado, porém firme: a sua teoria estava certa – um homem como o prof. Cavaco jamais seria capaz de se peidar. Havia de escrever uma longa carta ao prof. na qual explanaria de forma pormenorizada toda a sua teoria e havia ainda de propor-lhe o lançamento de uma dieta alimentar que excluísse todos os produtos alimentícios susceptíveis de causar ventosidades. Imaginou-se mesmo no lugar de um Conselheiro para as Questões de Ventosidades e Afins.
O senhor Aprígio chegou mesmo a sorrir de uma forma franca quando passou pelas sentinelas do Palácio de Belém, dirigiu-se para a cama em passo firme e decidido e sonhou que comia pastéis de Belém nos jardins do Palácio com a primeira-dama.

(Há-de continuar)

Fernando Rebelo-Dez.05

3 comentários:

André Carapinha disse...

O Sr. Aprígio deu de finados no dia da 2ª volta. Vestia um fato creme, bebeu bica e pastelinho de bacalhau. Votou, voltou para casa, e iniciou um processo de autofagia: ele não conseguia ter a certeza da vitória do Prof. Cavaco. Morreu pouco tempo mais tarde.

(grande Fernando)

Anónimo disse...

" O mundo possui já o sonho de um tempo de que ele deve possuir agora a consciência para o viver realmente ", Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo. pág.157.
Gostei mais do Occi Dentais, manifesto pleno de beleza e violência. FAR

Anónimo disse...

Caro Fernando

Sinceramente o Diário Socrático para mim era muito mais interessante. Gostava de poder ter o seu contacto até porque gostaria de conhecer um pouco mais da pessoa que já foi paciente do meu tio Francisco a quem já transmiti os seus agradecimentos