A Cauda e a Europa
Há uma clara aversão à cauda no imaginário político português. É o estamos na cauda por oposição a estar no pelotão da frente. Da metáfora animal passamos ao ciclismo sem descarrilar, obra de grande e criativa desconexão referencial. Nunca entendi tanto desprezo pela cauda, por qualquer cauda, já que à cauda, não se juntando o animal específico, apenas podemos pensá-la palavra sonora, dita para dentro, gozando as mais que estimulantes ressonâncias sensuais.
Experimente, diga baixinho, só para si, cauda, ouviu? O que sentiu?
Repita um pouco mais alto, diga mesmo cauda ao espelho, na casa de banho, enquanto pisca o olho. Que tal? Não sentiu algo a puxá-lo para baixo, uma respiração mais ofegante, vontade de embarcar para a Caudilândia e cantar com os plenos pulmões dos ?
Para além desse desprezo difuso, injustificado e provavelmente só jornalístico, a palavra cauda, identificada em contextos verbais concretos, pode, de facto, ser o clic que porventura falta a uma vida, o início de uma nova aventura, o fim de uma triste conjugalidade de sofá.
Comecemos pela cauda de um piano, de um piano de cauda, de um piano de meia cauda, já imaginou com que tristeza um piano é vertical?
Não lhe parece que um piano de cauda é evidentemente um valor cósmico, mais ainda se estiver de cauda subida e o pedal no fundo, as teclas a saltar-lhe da alma num jazz definitivo e orgiástico, copulando inadvertidamente, sem camisa nem vénus, no pleno voo inebriante de um sax soprano?
E agora outras: já sentiu a cauda sonora de uma cascavel? Que me diz?
Já pensou num leão sem cauda, num macaco sem cauda, num épico vestido de noite sem cauda? Que seria da noite!
São tristes amputações da realidade, um pudim sem ovos, um mar sem água, uma amor sem amor, ou mesmo uma presidência sem fitas.
Não me diga que já claudicou e aderiu à visão vulgar, aquela que gramsci distinguia do senso comum, visão de alguma lucidez, mesmo que empírica?
Tenho feito um esforço e não chego ao busílis da questão. Não durmo a pensar nas caudas que por aí andam, de beiça triste, tão maltratadas são por todos os olhares, mesmo pelos mais atentos ou sobretudo por esses, habilmente disfarçados de míopes, topam tudo.
Há mesmo, diria, uma xenofobia baseada no ódio às caudas, que as atira para essa posição terrivelmente frustrante e que qualquer cauda sonha em pesadelo e que é ser-se: a cauda de uma cauda, um limite indesejado e trágico.
Se nos dissessem que estamos no traseiro da Europa, embora também discutível pois nesta matéria há olhares variadas e não posso plebiscitar o meu sem mais nem ontem, creio que poderíamos aceitar que há mundos talvez melhores. Repito que esta tese é controversa, não pensem portanto que não respeito a diversidade com toda a correcção política necessária, de acordo com a letra e espírito da constituição, a primeira, sem revisão nenhuma.
O que é verdade é que me parece mais feliz, para dizer o que diz, a expressão cú do mundo que a expressão cauda da Europa. Aliás, talvez seja a hora de esperar uma síntese satisfatória. Vejamos: Que será que se vê de qualquer cauda, que é uma fenda e que, mesmo fechada, pode prejudicar qualquer nariz aberto? Esta adivinha, como repararam, de dificuldade um numa escala de dois mais dois igual a cinco, podia ser objecto de análise nas quartas classes. Creio que resolveria a nossa inexorável caminhada, nossa, de portugueses, em direcção à ciclotimia nacional, essa bandeira sem cores, nem verde vermelha, nem vermelha verde, que nos torna campeões do atraso, mas campeões, dado que é justamente interessante estar na cauda por se estar perto do cú e que mais vale ser consensual que colocar cú e cauda em concorrência desleal. Lá viria a Alta Autoridade e nem cú nem cauda, tudo para o xadrez. O que talvez educasse o pessoal e o tornasse competitivo ou qualificado, como se diz para não dizer letrado, cultivado, palavras miseráveis, em desuso, caudíófilas.
Mas vírgula meus caros outra vírgula meus caros digam-me: o que é que tem assim de tão desastroso ser a cauda, ou estar na cauda, da Europa, que é aliás uma moça redonda e gosta de raptos?
O problema, a meu ver, é que não estamos na cauda, porque nela estando estaríamos no corpo, no corpo da Europa e isso é que é uma profunda inverdade. Na realidade estamos em nenhures, num litoral prenhe de interioridades, na falésia invejando gaivotas e grilos, definitivamente continentais e porventura sem os tomates do padre Bartolomeu de Gusmão, o da passarola.
f.arom
4 comentários:
Grande texto!
Bela prenda! Hilariante de tanta verdade contida!
Melhor explicação para um país em desnorte não existe de facto! Parabéns e continue a brindar-nos com as suas intervenções.
Armando,
Tens um fraco pela cauda...Será uma obe sessão ou apenas desejo reprimido de levar com o marsápio???
Jimbras
Enviar um comentário