domingo, 11 de setembro de 2005

Crawford, Texas

Vai ver se chove, disse ela.
Não me fales na Duras, retorquiu ele, mergulhado na leitura do “Ciclone na Jamaica”, a perguntar-se como é que a pequena Emily fora capaz de ter aquele relampejo da consciência de si, aos setes anos, tão mórbida a miúda a pensar já na morte dos pais e ela sozinha no mundo.
Sweet Heart, esta Emily tem alguma coisa a ver com a Dickinson?
Os olhos juntinhos piscavam, matreiros.
George! exclamou ela. O “ Ciclone na Jamaica” é do Richard Wright.
Tens a certeza? E os olhinhos, enviesados, batiam na cana do nariz; uma cana espertaça que disfarçava bem a saliência da arcada supraciliar encimada por um alpendre aberto a que os mais chegados chamavam testa.
First Lady, insistiu, esse Wright não era um escritor negro e homossexual, ainda por cima cheio de outras manias?
O menino está a perguntar ou a afirmar?
Afirmo, claro. Quer dizer, I mean, pensava de que…
Tens razão, George. Enganei-me, disse ela.
Pronto, assim fico mais descansado. E achas, também, que a garota não tem nenhuma relação com a Dickinson? That’s for sure?
Laura, fingindo desatenção, temperava com sal e ervas aromáticas os bifes para o churrasco. Estava agastada com tanta pergunta.
O menino deve seguir à risca o programa de leituras que lhe foi preparado pelo departamento de educação. E lembre-se do que lhe disse o Karl…
O Marx?
Não, o Rove, my little donkey... Quando voltarmos à Casa vou dizer-lhe que já sabes pronunciar “Duras”, “Dickinson” e “Jamaica”. Tenho a certeza de que o Karl vai bater palmas de contente. O sorriso de Laura era tão maternal que ele deu um pulinho na cadeira de baloiço e inclinou a cabeça para a frente, à espera da festinha no cabelo, o livro aberto entre as pernas. Mas Laura permaneceu onde estava.
E porque é que ele me indicou este livro, com um título tão ventoso?
Laura deu uma gargalhada, grávida de compreensão e ternura.
Então, o menino não viu o boletim meteorológico?
Era preciso? Ninguém me disse para o fazer. Mas, prontos… Quando achares que já li o suficiente deste aqui, passas-me esse, tá?
Não fiques impaciente. Já sei que estás há quatro dias…
…Cinco!
… Ok, cinco, a ler.
Tem sido de mais, Laura! Olha ali, o carrinho do golfe a enferrujar…
Não percebeste nada, little boy…
Não me fales na bomba atómica, Laura! Olha que estamos de férias!
Pronto, disse ela. O Karl, previdente como é, está a preparar-te para o que vem aí…
Vem aí alguma coisa?
Se tivesses lido o boletim meteorológico já sabias.
Estou com fome.
Vem aí um ciclone, George.
Ah, já percebi: um ciclone na Jamaica!
Antes fosse…
Em Crawford?! Laura, não me faças rir. Achas que a segurança deixava?!
Sabes, George, continuas a ser um menino da mamã…
Yah, Yah, mammy, mammy, mammy!..
Laura encara-o com a severidade de uma mestre-escola. Martela as palavras.
Um ciclone no Louisiana, Mississipi, New Orleans, Bâton Rouge.
Laura, please, não me venhas com mais nomes. Não me estragues as férias.
Ouviste bem os nomes que acabei de pronunciar?
Olha, tu!... Julgas que não sou capaz, é?!... Lá porque foste bibliotecária e trabalhaste…
Se calhar vamos ter que interromper as férias, George. As previsões são as piores. O Karl até já está a preparar o discurso …
Agastado, George levanta-se.
Já sabia! Deixo-te fazer o churrasco e o resultado é sempre este!
Bate com a mão na testa, contendo a fúria.
George!
As sombras do crepúsculo desciam sobre Crawford, Texas, enquanto a figura bamboleante de George se recolhia sob o alpendre.

Luís Carlos Patraquim

"Savana"/ À esquina do tempo

1 comentário:

Anónimo disse...

Que finura de pena!
Gostei.