sexta-feira, 9 de setembro de 2005

7 de Setembro

Sete de Setembro de 1974. Nessa tarde, eu andava pela Baixa de Lourenço Marques, a passear, de máquina fotográfica na mão. Tinha voltado há pouco a Moçambique, estava desempregado e deambulava pela cidade em polvorosa. Quando o tiroteio começou, achava-me a meio da pequena rua que liga a ex-Avenida da República (actual Av. 25 de Setembro) à Rua Joaquim Lapa, com o Prédio Nauticus à direita. Os primeiros disparos soaram nas minhas costas. Elementos de uma companhia de comandos portuguesa, de passagem por Lourenço Marques, no processo de ser evacuados para Lisboa, andavam pela cidade, armados e em desmando total. Tinham-se entrincheirado por trás dos automóveis estacionados na Av. da República, diante do edifício colonial que hoje acolhe a Biblioteca Nacional, e abriram fogo sobre o prédio do jornal Notícias, ocupado pela Frelimo. De lá dos sacos de areia empilhados à porta, os guerrilheiros responderam ao fogo, de imediato, e a pequena rua transformou-se numa pista de tiro. De um lado, as G3, do outro, as Kalashnikov. Havia muita gente na rua àquela hora; as pessoas corriam em todas as direcções, várias foram atingidas e caíram. Atirei-me para baixo de um camião estacionado e tentei desaparecer pelo alcatrão dentro. Um homem negro juntou-se a mim, debaixo do camião. Andaria pelos cinquenta anos, seria contínuo de repartição. Não parecia particularmente assustado. Aproveitando uma pausa no tiroteio, queixou-se dos atrasos que antevia no regresso a casa. Os machimbombos iam estar ainda mais lotados que o costume, com toda a gente a querer fugir da Baixa. Depois o fogo recomeçou, e ele calou-se e tentou também fazer-se pequenino. Das rajadas, os estrondos ecoavam nas fachadas dos prédios, mas as balas só eram perceptíveis quando passavam a zunir aos ouvidos, faiscavam no alcatrão, ou estilhaçavam uma montra. De vez em quando, o tiroteio parava. Trocavam-se carregadores e insultos:
- Turra do caralho!
- Colonialista! Filho da puta!
As pessoas aproveitavam estas pausas para tentarem pôr-se a salvo. Às vezes, o tiroteio retomava, entretanto, e elas eram atingidas e ficavam caídas no meio da rua. A troca de tiros arrastou-se durante algum tempo, até que as autoridades portuguesas enviaram paraquedistas para o local e lograram convencer os comandos a retirar. As ambulâncias chegaram e começaram a recolher feridos e mortos. Eu tinha feito algumas fotografias, até o rolo se acabar, e decidi levá-las à revista Tempo, onde a minha irmã Maria era secretária da redacção. (Era a Tempo do tempo do Mota Lopes, do Mendes de Oliveira, do Ricardo Rangel, do Kok Nam...) Eles publicaram as fotos e perguntaram-me se queria ser jornalista. Eu, que sempre tinha querido ser pintor mas estava desempregado, disse que sim. Trinta e um anos depois, ainda é assim que ganho o Cerelac do puto. O 7 de Setembro marcou uma viragem na história de Moçambique, e na minha vida também. Trinta e um anos depois, tudo mudou, Moçambique e eu. E Moçambique em eu, como diria o Mia... Tudo mudou. Para ser honesto, nem sequer posso jurar que este tiroteio, ali, comigo presente, se passou a 7 de Setembro. Pode muito bem ser que fosse a 21 de Outubro, quando o Governo de Transição tomou posse e os colonos deram o derradeiro estrebucho, que ainda custou milhares de vidas. De facto, já não posso jurar se foi a 7 de Setembro ou a 21 de Outubro. Podia ir confirmar, remexer papelada, levantar pó... Deixa estar! Fica o relato factual. Um dia destes levanto-me daqui e vou confirmar a data. Depois digo.

José Pinto Sá

7 comentários:

Eduardo Pitta disse...

Foi a 21 de Outubro (eu estava no Djambu, ali a dois passos), ao fim da tarde.

Anónimo disse...

E é assim que as nossas decisões são tomadas e que a vida se (re)constrói...

Anónimo disse...

E adeus Ponta do Ouro, adeus Terras da Boa Gente, adeus micaias, acácias e tandos, adeus Gorongosa e sua cota, adeus águas que devolveram Lusíadas a Camões.
Adeus escola da vida, multiétnica e universal.

Ficou a língua e a amizade!

( ai essa terra ainda vai cumprir seu ideal...)

Carlos Gil disse...

Foi realmente a 21 de Outubro. Eu também estive na Baixa, quando começou o tiroteio estava numa cervejaria da Pinh. Chagas, frente à Ponto Final, e fui para lá na motorizada, cruzando-me com carros que fugiam da baixa em contra-mão. Vi a chegada da tropa que acabou o tiroteio, vi uns dois cospos na arcádia do pr. Nauticus, vi um 'comando' que estava escondido, ferido, numa casa comercial (a 'Bamvi'?) ser levado pela PM, vi o encontro dos da PM com os da Frelimo junto à antiga Imprensa Nacional, recordo-me bem desse dia.
Dia triste, por isso nunca o esqueci. Mas é preciso fazer a catarse.

Anónimo disse...

Têm razão. Fui remexer na papelada e confirmei que foi mesmo a 21 de Outubro.

José Pinto de Sá

Armando Rocheteau disse...

O José, agora blogger do 2+2=5, escreveu um texto, com a qualidade que imprime àquilo que faz.

Conheci-o, no 21 de Outubro, naquela rua, debaixo de fogo cruzado.

Ficámos amigos.

Anónimo disse...

Eu tambem estava lá, nesse dia. A companhia de comandos que provocou os disturbios era a 2021 e era composta por criminosos portugueses que tinham dido mobbilisados para a guerra em troca da cootação de penas. Estavam acampados no parque de campismo junto ao Miramar e eram todos os dias espicaçados pelos colonos brancos para se revoltarem.
Assisti ao começo dos tiros. Três comandos agarraram um guerrilheiro da Frelimo, em frente à Livraria Académica tiraram-lhe a arma e fuzilaram-no ali mesmo com uma rajada na barriga. Depois começou o tiroteio,eu fugi para trás de umas colunas na fachada da Biblioteca, julgo eu.