quarta-feira, 26 de abril de 2006


Pintura de Luís Ralha

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira

4 comentários:

Armando Rocheteau disse...

Hoje acordei a pensar no meu amigo Tonas.
Sei que ele apreciaria este post.

Anónimo disse...

Virgindade

Anónimo disse...

Publica aquela do RK " será miopia, será cio" das Mangas verdes com sal. Tenho a ILHA DE PRÒSPERO autografado.

Madalena disse...

O poeta a inventar uma morte linda. Mas o certo é que a estética e a dor nunca se encontram. Gostei de reler este poema!