
Banho V
O ENCANTAMENTO DAS DORES ENCOBERTAS
A pintora, suspensa da sua condição solitária e da memória de outros sonhos – África longe, teatro, cinema de ensaio, experimentações várias – vive uma espécie de inconfessável lucidez em torno das suas sempre sentidas práticas da linguagem plástica. Ela assume uma espécie de inconfessável lucidez, algo que absorve as coisas de estados depressivos ou de melancolias onde muitos contentamentos perdidos parecem ressuscitar através de sonhos surreais, de circos impossíveis, personagens quase sempre grotescas de uma efabulação do mundo caótico e excessivo em que vivemos. Dessas obsessivas representações, nas quais alguns monstros reaparecem com a notícia das catástrofes naturais, desprende-se uma ironia sarcástica, a mistura das coisas e das pessoas, o anacronismo capaz de geminar épocas diferentes, rostos da abundância e da fome, um riso falso na cor saturada que transforma o mundo em abóbada azul, em finitude do que não tem fim. Então o espaço pode por vezes distender-se, multiplicar-se em trípticos, a fim de sustentar as cenas de narrações caricaturais, tão expressionistas quanto surrealistas, ou aproximação disso, absorvidas que foram as principais fases da revolução artística do século XX.
A autora destes cenários impossíveis, e contudo quase realistas de certa maneira, tem dentro de si a enorme quantidade de memórias e símbolos, coisas que, como diria Juan Gris, atestam a qualidade da arte produzida, em aprendizagens que comportam o vómito das derivas pelas terras dos outros e o valor intrínseco dos personagens sgnificantes espalhando-se pelo espaço da tela, na imitação da aldeia ensandecida proposta por Dürrenmatt em «A Visita a Velha Senhora». As pessoas compram-se e vendem-se, a natureza erótica de muitos conjuntos alia-se a um enorme comprazimento do ver, esgaravatando intimidades, tapetes e sombras por baixo dos canapés, divas decadentes reclinadas na simples espera, mulheres balzaquianas também, mas sem literatura, só boquilha, retratos por vez emblemáticos das noites de prazer e da juventude acabada. Juventude, em todo o caso, refeita na vida urbana que a Velha Senhora comprou e tutela, uma sociedade de lazer, súbita e absurda, onde senhores de chapéu de coco vogam em bicicletas de alta roda fronteira, ou esquecem as mulheres velhas e solitárias que se deitam em longas banheiras de esmalte, pés retorcidos. Em certos casos, uma dessas personagens, mulher rasurada, nudez tombada, donzela de grande cabeleira, salta do contexto comunitário para o lugar do retrato, ou a pequena dimensão do enquadramento, como se nos deitasse a língua de fora, enquanto a cor se mantém saturada e algumas outras representações reassimilam imagens de África, os meninos ladinos que por vezes deixam as latas amolgadas e estendem a mão à própria mãe.
Bela Rocha é uma pintora de talentos inatos e de avanços instintivos, como se ela mesma se tivesse legado à condição de alguns dos seus personagens. Pinta laboriosamente, sobretudo sobre seda, e contorna bichos e homens com a linha delicada do bordado da vida. Ao lado dos nossos irmãos de raça, vivem animais humanizáveis, pássaros, gazelas mutantes, seres absurdos, toda uma natureza que lembra simultaneamente a cidade e o paleolítico, retorno às origens e ríspida contestação do mundo global em que nos iludimos, autofágicos.
ROCHA DE SOUSA
2006
(texto de apresentação da exposição: A Inconfessável Lucidez)
1 comentário:
Olá Bela!
O que fazes é belo!
Beijinhos do João Fróis.
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