A FML insiste em nada ensinar. Formam-se médicos autodidactas, mas incute-se a mentira e a desresponsabilização. Podia explicar isto de mil maneiras (e espero, nestas crónicas, ir abordando não mil, mas pelo menos algumas), mas a minha preferida é a da “cobardia do exemplo”, como dizia o Álvaro de Campos a Alberto Caeiro numa conversa fantástica sobre o 34 (é um momento de literatura tão brilhante que é a minha citação mais usada). Conto-vos então, o meu dia de terça-feira.
Entrei às 9.30 porque não acordo mais cedo para ir a aulas teóricas. Gosto de aprender, mas não gosto que me leiam matéria. Aula de cirurgia prática. O meu tutor, que é um oásis no meio disto, não está nos próximos tempos. Acabaram-se as aulas em que aprendo, discuto, ponho dúvidas e saio com vontade de estudar. Estamos com outro tutor e estamos de volta à realidade negra do ensino surreal desta faculdade. A aula prática são colegas meus a fazerem apresentações acerca da matéria. São, portanto, teóricas. Mas os oradores percebem menos da matéria. Enfim. Aguentamos (falo no plural porque o meu fiel grupo de amigos partilha esta opinião), não aprendemos nada – porque em aulas de exposição de mais de 30 minutos ninguém retém a atenção o tempo todo e ninguém consegue assimilar a matéria o suficiente bem para a poder aplicar num contexto tão importante como, sei lá, um doente. Às 11horas anunciamos que vamos para Urologia.
Em Urologia o modelo das aulas é fabuloso. O nosso assistente, passando um atestado de incompetência (justo) ao sistema, tem uma solução inovadora: as aulas consistem em fazer exames – “porque é isso que vocês cá vêm fazer”. Portanto, vou acabar o curso sem ver doentes de Urologia. Não que eu discorde do senhor – afinal é mesmo este o espírito da FML: ninguém está ali para aprender Medicina, mas para aprender a fazer exames de Medicina. Eu gostava era de não ter que participar num ensino assim. É possível algo melhor. Algo útil, pedagógico, que dê prazer a quem ensina e a quem aprenda. O tutor de Urologia nem tem uma solução má ou escabrosa no meio de tudo o que se passa. Tem uma turma com 15 alunos e não pode tomar conta de todos e trabalhar ao mesmo tempo. Resolve exames connosco, já não é mau. Há quem nem isso faça.
Mas, e mais médicos a ensinar, mais “ensino” menos “preparação para exame”? O curso é só uma praxe? Só se aprende quando se tem o canudo?
Acontece que…O nosso assistente não está. Foi para o estrangeiro e não nos avisou. Ainda não descobri porque é que acordei. Duas horas e meia depois ainda não fiz nada de útil. Aproveitamos o furo para fazer panfletos e posters para a reunião de alunos sobre Bolonha (apareceram 27 alunos em 1600).
À tarde, Medicina Geral e Familiar (MGF). Um must see da FML. A cadeira de MGF tem 72 horas de ensino teórico – prático que consiste em aulas de 3 horas de exposição mais a resolução de um exercício. As aulas são bacocas e insultantes. Explicam-nos que o indivíduo tem de ser visto no seu contexto familiar e social mil vezes, como se a informação fosse uma grande discussão filosófica. Glorificam a Medicina Geral e Familiar como uma ciência única e perfeita e tratam os médicos hospitalares como monstros desumanos a eliminar. Dizem-nos que “um médico generalista vê qualquer doente independentemente do sexo, idade e tipo de problema”. Pusemos a questão: “para que servem os outros médicos, então?”. Não nos responderam.
Estamos lá 3 horas. É horrível. Não é só entediante, gera violência. Irrita, revolta, dá vontade de cuspir, de perguntar se é isto que me vai fazer médico e porque é que eu estou aqui e não a estudar ou a ler ou a namorar. A professora, muito pouco académica, justifica o facto de já ter dito a pessoas para não terem filhos, não se reformarem ou deixarem de trabalhar com a mui científica frase “há pessoas fracas da cabeça”. Um eufemismo barato para “eu acho que há pessoas estúpidas, mas não posso chamar-lhes isso”. Pouco tempo depois fala do aconselhamento não – directivo. Tudo parece rodopiar à minha volta. Que faço eu aqui? A docente usa “holístico” demasiadas vezes numa só frase e numa só aula, como quem aprendeu uma aula nova.
Um exercício que consiste em fazer uma árvore genealógica a partir de uma história. Estamos, portanto, a testar se alunos de 5º ano conseguem ler e passar as palavras para símbolos.
Às 17 horas saio da FML. Não aprendi nada, não estou estimulado, estou cansado de tudo. Podia ter feito mil coisas, mas estive preso numa faculdade que se diz “de excelência”.
Só falta este ano e outro. É o que vale.
Manuel Neves
5 comentários:
E se eu te contasse histórias de um Mestrado que ainda nem paguei a quem pedi emprestado?...
pelos vistos o ensino universitário português continua como sempre foi
se quiseres aprender alguma coisa tens que sair daí pá
senão qualquer dia estás como eles - um fenómeno de mimetismo: incompetência dura em cabeça mole ou dura tanto dá até que fura
E não é de excelência? Há que pensar que as autoridades instaladas na FML foram educadas nesta "excelência" e que adoram as "tradições" que não existem.
Analisemos toda a estrutura. Os professores gostam de fazer pouco e serem tratados por Sr. Prof. sem justificarem o seu titulo de professor porque na realidade poucos são os que se preocupam com a tarefa do Professor:ensinar.
Os alunos querem passar, acabar o curso e ser os meninos bonitos lá da terra que acabaram medicina...não interessa mais nada...o exercício da medicina é o que menos interessa desde que se passe na rua e todos o tratem por Senhor Dr.
Vivemos numa faculdade sem espírito académico, em que as pessoas vivem para si e para rebaixar os outros...em que o objectivo de vida é ser monitor de anatomia e saber o rouvier de cor e dizer aos caloiros que se é muito bom e que custa muito...
Enfim,...infelizmente vivemos num meio onde se procura ser o SR. Dr. e não um verdadeiro médico....
Obviamente há numerosas excepções, mas se olhar-mos para maioria...
Melhores cumprimentos
LJS
Ora...começo por pedir desculpas...na realidade trata-se da FMl e não da FCML (não vi a falta do pequeno C...)
Mas o relato é tão igual ao que se passa na FCML que pensei que o post se referisse a ela...
Bem...aparentemente temos mais fábricas de estupidos em portugal
Saudações
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