Olá,
Hoje queria mais uma vez começar por vos fazer uma pergunta. O que é um herói? Eu sei que hoje, tal como coleccionar selos, heróis já não estão na moda. Quando há heróis há quase sempre tragédias claro está e hoje o importante é ser vítima.É mais fácil e rende muito mais.
Para além disso história e heróis são coisas complicadas pois muitas vezes mesmo dentro do mesmo país os heróis de uns não são necessariamente os heróis de outros. Ao fim e ao cabo foi em parte por isso que no Kosovo e na Bósnia os insoletráveis andaram à porrada com os impronunciáveis. Os heróis dos insoletráveis não eram necessariamente os heróis dos impronunciàveis e vice-versa e daí a porrada.
Isto a propósito de uma das minhas vistas favoritas aqui na capital do império. Se um dia aqui vierem não se esqueçam de ir à noite visitar o monumento a Lincoln, o homem que liderou o norte da guerra civil americana acabando com a escravatura e acabando também com a possibilidade dos Estados Unidos se “sul americanizarem” através de secessão individual de estados ou grupos de estados.
Mas se forem vêr o monumento ao Lincoln à noite não se esqueçam também de andar uma dezenas de metros em direcção ao rio Potomac e do outro lado do rio, no estado da Virgínia notarão um pequeno monte com uma casa iluminada quase que em linha com a imitação americana da Pont Neuf de Paris. ( O nome oficial da ponte é “Memorial Bridge” mas eu chamo-lhe Pont Neuf sur le Potomac. Dá um ar mais sofisticado e há-de um dia ser o título de um livro de fotos sobre a mesma que vai vender muito em Paris onde ao contrário das aparências - e como aliás vocês sabem - todos gostam de tudo o que é americano) .
A casa iluminada do outro lado do Potomac é a casa do General Robert Lee, o homem que comandou as forças sulistas e que hoje está cercada pelo cemitério de Arlingon onde a América enterra os seus soldados mortos pelo império fora e políticos famosos.
A casa do Lee está no meio do cemitério devido à sacanada que lhe fizeram após a guerra civil. Para garantir que ele nunca iria voltar a viver na casa os militares do norte expropriaram em nome do governo federal as terras à volta de mesma e fizeram dela um cemitério para os soldados do norte mortos na guerra. Tenho a admitir que é uma das sacanadas mais sacanas que conheço… mas lá que tem imaginação, isso tem e quando eu conto isto todos dizem sem excepção: “grande sacanada”.
Lee nunca mais voltou claro está, embora se fosse vivo hoje faria muita massa a cobrar bilhetes aos turistas que vão ao cemitério ver as campas dos Kennedys e do soldado desconhecido e depois acabam sempre por visitar a sua casa. O que é importante no entanto para esta carta é o facto de hoje a sua casa ser preservada como monumento e à noite do monumento de Lincoln, o seu inimigo, pode-se vê-la a brilhar à distância à luz dos holofotes. Deve haver algum simbolismo histórico ou místico nisso embora eu não saiba bem qual é…
Foi a pensar nisso que notei algo que deveria ter notado há muitos anos. Do outro lado do Potomac já no estado da Virgínia (o estado símbolo da rebelião sulista) há uma “Lee Highway” (Auto-estrada Lee) e também uma “Picket Road” (Rua de Picket) em honra do general do mesmo nome que chefiou a famosa “carga de Picket”, um ataque às forças da união que foi um fracasso e que levou à derrota do sul. Na zona de Alexandria há uma enorme estátua na rua principal em honra dos primeiros voluntários do exército confederado.
Na capital da Virgínia, Richmond bem mais para o sul há uma “Avenida dos Monumentos” cheia de estátuas de generais que combateram pelo sul e até um enorme monumento um tanto ou quanto piroso ao presidente dos estados da confederação que lutaram contra o norte (um tal Jefferson Davies muito famoso no sul mas que ninguém no norte conhece).
Por outro lado lembro-me que em Boston, no estado do Massachussets vi uma estátua ao General Sherman, o homem que deu porrada da grossa nas gentes do sul, na sua “marcha para o mar” a partir da cidade de Atlanta na Geórgia queimando e destruindo propositadamente tudo de valor económico (cidades, pontes, fábricas, propriedades agrícolas, celeiros e armazéns) com o objectivo de partir a espinha dorsal dos sulistas. Antes de iniciar a marcha mandou os civis abandonar Atlanta estilo Khmer Rouge em Phnom Penh e depois deitou fogo à cidade. É interessante que devido a essa táctica até então inédita de atacar alvos económicos civis (“vou fazer o sul gritar”) Sherman é conhecido na história militar como o primeiro general da era moderna. Para mim o “Bomber Harris”, o general britânico que mandou arrasar com bombas incendiárias cidades como Leipzig na Alemanha seguiu a …. Doutrina Sherman. “Bomber Harris’ matou mais civis com as suas ondas de bombardeiros armadas com bombas incendiárias que os americanos em Hiroshima e Ngasaki com a bomba atómica mas o resultado foi o mesmo embora a eficiência fosse menor. Tal como Sherman fez aos sulistas e os americanos com a bomba atómica aos japoneses, Bomber Harris partiu a espinha dorsal dos alemães.
Apesar de Sherman ser um inovador da doutrina militar e ter contribuído para a vitória do norte e do fim da escravatura e da secessão, no sul não há estatuas em sua honra tal como no norte não há estatuas a Lee ou nomes e estradas ao General Picket.
O que eu acho interessante. No mínimo é um modo diferente de encarar a vitória e/ou derrota na guerra civil. Sei lá, era como o governo angolano deixar a UNITA pôr estatuas ao Jonas Savimbi no Huambo ou deixar que nessa cidade houvesse a Avenida Mártires da UNITA. Ou em Moçambique fazer-se uma estátua ao Urias Simango e ter uma avenida com o nome de “Vítimas da Reeducação” Ou em Portugal ter-se umas estátua em honra dos Filipes ali ao lado dos Restauradores. Seria interessante, não?
Lembro-me que há uns anos atrás o poeta moçambicano José Craveirinha disse que a reconciliação na Africa do Sul sé existirá no dia em que crianças Zulus forem pôr uma coroa de flores na estatua do Paul Kruger em Pretória e crianças Afrikaners forem pôr coroas de flor numa estatua ao Shaka. É bonito … mas de poeta.
Aqui ninguém dos estados do norte vai pôr flores nas estátuas dos confederados em Richmond mas também ninguém do sul vai pôr flores nas estátuas do Sherman em Bóston. Cada um com as suas estátuas e os seus heróis dentro dos mesmos Estados Unidos. O que levanta perguntas:
O que é um herói? Pode numa mesma nação haver heróis de uns que não são heróis de outros e ao mesmo tempo serem símbolo da história comum? Onde acaba ( se é que acaba) o relativismo moral e histórico? O que é historia?
Parei à noite próximo do monumento ao Lincoln, olhei para a casa de Lee a brilhar à distancia na noite primaveril com as luzes da Pont Neuf sur le Potomac a brilharem nas águas calmas do Potomac e tive resposta para algumas dessas perguntas mas não para outras.
Sei no entanto de certeza que alguns dos heróis se tornam em chatos. O general Picket por exemplo acabou a vida a vender seguros. Tal como na vida militar sempre a chatear muita gente.
Um abraço
Do vosso amigo na capital do Império,
Jota Esse Erre
3 comentários:
Grande Jota.
Já não é você que nos provoca calafrios.
Este blogue vai entar em estado catatónio. No entretanto, isto é fruição em estado puro.
Obrigado a todos!
"Onde acaba ( se é que acaba) o relativismo moral e histórico?" . esta é que é a grande questão que apesar do brilhantismo do post ficou por responder. talvez numa próxima, aí da capital da idiotia. para quem não conheçe é uma ilha que fica do lado oposto ao da ilha da utopia.
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dúvida da semana: o humor é redentor?
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