O TIPO DA JANELA EM FRENTE
Podem não ver o que vejo e daí, onde estais, arreganhar o dente céptico e não crer, tal como o outro, mas o tipo da janela da varanda em frente está em actividade permanente. E o que é estranho é que o vejo sempre dobrado, olhos no chão – olhos que nem pressinto, pois nunca vêem na minha direcção -, e a vassoura em movimento contínuo, o cabo a surgir como um periscópio, esse sim visando-me. Parece-me uma ilustração animada da lei da inércia. Algum deus grego o castigou e ele cumpre eterna pena, tipo mito de Sísifo, mas menos cruel, aqui caindo eternamente um pó quase afectuoso para um chão que assim nunca se acaba de limpar. Ainda não percebi se é o chão, esse sistema de acumulação de toda a porcaria que este Ajax doméstico quer preparar para a comunhão solene, se a criatura é marreca e tem portanto de dobrar a espinha por azares da vida que não descobrirei, pois a minha démarche não entrará pelos caminhos do detective privado.
O que me atrai não é o facto de o tipo ser eventualmente marreco e por isso se dedicar àquela actividade, condenado a uma posição contra picada, e portanto aproveitando a boleia da sua deformidade, menos ainda o facto de, não sendo marreco, passar o dia de cerviz dobrada a expulsar o povo das bactérias do horizonte pés, o que virá mais da cabeça que da espinha.
O que me atrai é que o sujeito não pára – a não ser escassos momentos de reiniciação ritual - , impelido por qualquer coisa muito funda e que não quero acreditar seja o ter caído, em pequenino, no pacote do OMO.
A coisa parece-me tão estranha que me tornei olheiro de um único jogador da vida, pois trata-se certamente de um sujeito desse género, absolutamente dedicado a uma paixão exclusiva – ele há coleccionadores até de pintelhos tosquiados, estão a ver o João César?
Não me acusem de invadir a privacidade de ninguém, o que é que faz a televisão, vinte e quatro horas por dia? Não só invade como ocupa, potência neocolonial planetária que é. E não só impõe uma dependência patológica, vende um modo de vida disfarçado de vários, assim como destrói a intimidade, essa flor que cresce nos espaços privados e que se alimenta de humidade artesanal ( em vias de extinção como é sabido).
Comprei um binóculo, confesso. Tendo chegado à maturidade creio que posso fazê-lo. É como comprar uma bicicleta da categoria plumas, embora neste caso sejamos nós a entrar pela paisagem dentro. Com o binóculo são obviamente os olhos que pedalam.
Vocês não vão acreditar : a criatura tinha as paredes cheias de fotos de aspiradores, em todas as cores, formatos e marcas, da Hoover à Bosh, passando pela Singer – será que são aspiradores, os da Singer, ou máquinas de tirar bicas, ou mesmo escovas de dentes eléctricas incorporadas na máquina das bicas para uma pré lavagem obrigatória antes da bica?
E assim era, paredes de aspiradores repletas. Todas eles em molduras rectangulares imitando o tamanho real dos aspiradores, plastificadas a ouro velho e ordenadas na parede como um pequeno exército preparando-se para destruir toda a merda planetária – o que só um visionário pode alcançar.
Estou convencido que quando deixo de o ver, isto é, quando deixo de ver a sua cabeça e o cabo da vassoura, a cabeça de um corpo marioneta que pouco passa os limites da parede da janela da varanda da frente, o tipo se senta e olha ternamente para os aspiradores. Esse o momento de carregar a bateria, para replay a coisa no ponto de arranque.
É certamente um fundamentalista, solitário claro, a quem a porcaria até ajuda, espécie de inimigo externo, diabo e personificação do mal, o que lhe dá uma razão para viver. E a todo este amor do pó se pode chamar intimidade de novo tipo.
f.arom
1 comentário:
A sua janela dá para um cenário muito mais bonito do que o meu! imagine uma grua. Todos os dias o tipo mete manipulo tira manipulo, escarafuncha o nariz em busca de alguma coisa perdida, cospe de 5 andares acima do solo. Um cenário idílico!
Muito versátil na escrita, ficção, filosofia, politica.... estou a gostar de o ler!
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