domingo, 26 de fevereiro de 2006

CATEMBAR

Talvez aqui esteja o sentido, misturar, mas misturar o que não joga, o imisturável, pilhas e álcool, receita que me foi revelada por um ermita, cego voluntário e habitante de Maputo no cerco que a guerra civil provocou – e aqui como é sabido Catembe era o lado de lá, início de uma África de picadas e mangais, feita entretanto imagem directa do inferno e pânicos, rebentamentos a desoras, silêncios opressivos na espera de nova ameaça, o estômago em metamorfose de carapaus eternos.
Nos tempos, lembro de meter as calças em banho de lodo até às virilhas, por inconsciência africanista militante e ser salvo a pulso por um braço comprido de jogador de basquete, a cada passo parado me afundando mais, e me lembro ainda da bebida cafreal fermentada a céu aberto, mputo ou uma coisa chamada parecido, que, diziam embebedar elefantes em dias quentes de sol no zénite, inclemente, sol na companhia de uma brisa preguiçosa que não andava nem se mexia da sombra –
nem que ao menos soprasse um nada de vento que se visse, mas nada, a gente amolecia lagartixando na pedra ...
e o mastodonte de quatro patas comendo esse fruto sem inocência, perdia o trilho gravado na mona instintual e pisava qualquer coisa, mesmo pessoa, com essa espécie de medronho tropical fermentando na pança ficava de mal de faro ou memória – diz-se memória de elefante e não é certamente pela omnipresença de tromba e orelhas.
e mesmo me lembro da palhota do tio do Camilo, fugido da tropa naquele lugar sem sipaio nem lei que não fosse natural, nas nossas costas, e nós virados contra a cidade de cimento atirando impropérios rituais,
e lembro da galinha perfumada de caju, escorreita de cor, essa era mesmo do tempo em que as rações ainda estavam nos laboratórios.
Catembes foram muitas, idas e voltas, para lá, para cá e de fora para dentro, mesmo de dentro para fora. Coca cola com tinto, veneno maior, eficaz, dura prova para o fígado, esse resistente ignorado. Não lembra ao diabo, mas escorregava como aqueles chupas artesanais, pinheiriformes, feitos de açucar solidificado e envolvidos num papel tipo vegetal, branco sujo, de transparência opaca, coloridos à força de pintura corante e atraentes : um céu de proibições, palato numa expectativa sempre confirmada de coisa mais doce que doce – um equivalente do algodão açucarado da feira popular traficada com a Braga Parques?
Mas Catembar é mais que isso. Ficou como via de uma memória prospectiva, como gesto, mistura seminal. Catembar? Nós sentimo-nos autores do verbo, foi por ali que foi semeado, pés na água da baía e copo na areia, ainda vertical.
Quem não catemba caril com tinto, ou chamussa na entrada de um cosido de enchidos das Beiras, ou quem não catemba sombra de cipreste do Bilene com a cal ocre e a faixa azulão de uma casa de piso térreo na beira da paisagem longa de um Alentejo sem anedota, as janelas semicerradas, profundo?
Sinto-me afro alentejano lisboeta a viver algures, olho, se posso, metido numas ondas atlânticas que trazem na maré baixa a baía de Lourenço Marques – Xilunguíne, terra de ninguém à mão de semear na janela alta da Brito Camacho, miradouro acidental, todas as horas e tempos, páscoa, carnaval, natal, o que fosse, sempre à disposição, na aurora e no poente, uma baforada de ar quente entrando e um respirar para dentro que faz levitar, gazelas com asas de anjo a pairar sobre o Zambi e no lado de lá, essa mítica Catembe, princípio de tudo, éden domiciliar.
Porque essa mistura um dia vai reverdecer como terra sem fronteira, islâmica, zulu e farrista, Cais do Sodré Catembado de papaieiras, Bahia Salvador de Todos os Pardos Escribas Ateus, o cristão e o ateu na varinha mágica indistinto, burburinhos de mercado moçarabe minhoto em frascos de achar de manga, piri piri envolto em folha de louro a cocegar imaginações palatares , uma catembização maningue prenhe de chicuembos sortilégios implícitos nos acarajés de rua, as baianas plenas de carnes a sobrar bordados brancos pelos amplos seios, novas raízes de enxertias velhas a florir, silêncios observadores de princípios em espantos alvoroçados, como aqueles que começam os começos nos começos dos tempos que auroram boas perspectivas.
Macumba e benzedura, coca com tinto, wiskies deitados num chão de espíritos matando-lhes a sede, uma macumba feita ali, na fábrica das imediatidades, à beira bagaço.

f.arom

6 comentários:

Anónimo disse...

Se me permite a critica.Se não apague. v
Vai no comente seguinte.

Anónimo disse...

Quem sou eu? Gostei muito. Mas fiquei empaturrado com tantas referência para o tamanho do texto.É como um cozido á portuguesa sem legumes,sem frango, muitos enchidos, muito porco, muito gordo.Talvez um pouco mais enxuto, e sobra matéria para outras histórias. É uma dica, ou palpite, só.

Anónimo disse...

Queria dizer se não gostar apague, pois quem sou eu para julgar a história com intenção literária, ou romanesca?

Anónimo disse...

é sempre um prazer, e grande, ler o f.arom!
Parabéns!

Anónimo disse...

Sr. Editor!
A nossa Josina? Não vi aviso aos leitores sobre a sua ausência... aguardo!

Quanto ao f.arom, é sempre um gosto. E um cozido à portuguesa, quem não aguenta? Eu sei que os bróculos e as alfaces é que estão na moda, mas convenhamos que é comida um pouco sem graça...
Beijos. Ivone

Anónimo disse...

É sempre uma surpresa ler os seus textos, nunca se sabe o que vai sair! Desta vez saiu áfrica. Não conheço, mas tenho pena!
Grande veia e sensibilidade tem o Farom!
Beijo
PAF