quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Anschool II, a não escola




"Anschool significa que não precisamos de análise nem formação. Anschool significa que precisamos de coragem. De curiosidade e de vontade. De afirmação. Precisamos da arte como arte e precisamos de correr o risco de explorar o "outro" ou a tal "outra coisa".
Thomas Hirschhorn
Exposição no Museu de Serralves,
Porto, Janeiro de 2006

Segunda volta é possível e provável.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinicius de Moraes



Post dedicado ao André, a quem devemos este blogue e a quem devo a minha carreira como blues man.

Partirá em viagem filosófica para a Holanda. Que as crónicas holandesas não nos faltem! Que volte depressa e bem!

Silogismo Neoliberal

P1- O sistema actual é inevitável.

P2- O sistema actual sacrifica milhões de pessoas.

C- O sacrifício de milhões de pessoas é inevitável.

América do Sul, 2006

Com a eleição de Michelle Bachelet para a presidência do Chile, a América do Sul torna-se definitivamente o grande laboratório da Esquerda para os próximos anos. Com Bachelet no Chile, Morales na Bolívia, Kirchner na Argentina, Chavez na Venezuela e Lula no Brasil, existe uma linha claríssima em que, independentemente das diferenças entre estes, foi plebiscitada uma governação alternativa ao modelo neoliberal que nos é apresentado como "inevitável". Organizados neste bloco poderso, os sul-americanos podem resistir com eficácia à depredação dos seus recursos e ao ciclo infindável de pobreza a que as políticas alinhadas com Washington levaram nas últimas décadas. A observar com todo o interesse deste lado do Atlântico, onde uma Europa que também poderia constituir um modelo alternativo se deixa ir na onda, levada pela tibieza e falta de coragem dos seus líderes (com a honrosa excepção Zapatero em Espanha), quando não mesmo pela efectiva conjugação dos interesses destes com os do sistema vigente.

P.S.- Por razões a que sou alheio, a minha colaboração neste blogue será um pouco mais esparsa nos próximos tempos. Nada de preocupante, pois o 2+2=5 continua a contar com a grande qualidade dos outros intervenientes.

Uma noite inesquecível: Mad Dog Clarence & Los Santeros - LIVE

Uma breve introdução. A noite ia ser longa...
Singing the blues, just the blues, man...

Um solo de harmónica magistral, como só os grandes clássicos são capazes.

Mad Dog corresponde ao desejo da assistência, começa a despir-se e dança com uma fã.


O público não queria acreditar no que estava a ver. O momento era único.


Mad Dog e um conhecido empresário da noite.


Los Santeros em grande forma. Enlouqueceram todos os presentes ao tocarem, pela primeira vez, músicas do seu novo album, que todos aguardamos com ansiedade. Continuam em digressão. Quem sabe se um dia destes não estarão numa sala perto de si.

Ausência


Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada.
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


MORAES, Vinícius de. ANTOLOGIA POÉTICA.

Contagem final

Este senhor, que já não precisa de provar nada, merecia que estes senhores, em quem habitualmente voto, se empenhassem. Está na hora!

Foto de Francesca Pinna

18.1: Esquerda sobe, Cavaco desce e Maria não se sente nada bem

Parece que já não são só as mulheres de Almodovar que estão à beira de um ataque de nervos. É um país inteiro que segue esta corrida presidencial como se fosse uma final da selecção nacional. Nem mesmo a Betandwin.com pensou que as coisas chegassem a este ponto. Será que nestas meias-finais, Cavaco joga com o equipamento da Holanda e perde a favor da selecção de Portugal/Alegre, como no Euro 2004? Ao que parece, é cada vez mais provável uma segunda volta. A excitação está ao rubro e a decisão parece estar cada vez mais nas mãos dos indecisos de esquerda. Mas vamos a contas. A três dias do fim da campanha eleitoral, Cavaco Silva continua em queda. Esta quarta-feira desce mais 1,4% nas intenções de voto e situa-se agora nos 53,2%. De acordo com a sondagem de hoje da Marktest para o DN/TSF, o candidato da direita perdeu 7,8% desde que começou a campanha. Manuel está cada vez mais Alegre, e sobe para 19%, mais 0,6%. O candidato patrocinado pelo PS está agora com 13,4%. Mário Soares recupera apenas 0,2%. Jerónimo de Sousa é a revelação do dia, ao ultrapassar Francisco Louçã com 7,2%. O candidato do Bloco tem agora 6,3%, e está à frente de Garcia Pereira. Como não podia deixar de ser, também damos notícias da esposa candidata a First Lady of Bethlehem. Ao que parece, Maria está com problemas em dormir. As insónias começam a atacar. Segundo fontes da candidatura pró-primeira-dama, na origem do mal-estar estão os cortinados já encomendados para o Palácio de Belém. Agora, só já pensa em atrasar a entrega. Uma chatice. Há barbudos Alegres, com a mania que são poetas/cantores, que só vivem para aborrecer os outros. Um horror. Ao que parece, os dourados e as flores em tons laranja vão ter de esperar por melhores dias. Quanto tempo? Vá-se lá saber...

José Carlos Ary dos Santos

Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança
que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.
*
*
"Auto-Retrato"
in "Fotosgrafias", Lisboa, 1970
*
7 de Dezembro de 1937
18 de Janeiro de 1984
*

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Cavaco continua em queda. Maria na expectativa

De acordo com a sondagem do DN de hoje, a direita ainda não pode sorrir, uma vez que Cavaco continua a descer. A Marktest deu-lhe 54,6% das intenções de voto, ou seja, menos 6,4% do que há uma semana. E embora eles digam que esta queda ainda não põe em causa a sua vitória na primeira volta, talvez não seja bem assim. Faltam cinco dias para as eleições e caso a queda cavaquista continue, poderemos estar à beira de um turning point, que poderá levar a uma segunda volta. Como ainda 16% de indecisos, sendo a maioria de esquerda, pode-se concluir que ainda nada está decidido.
A descida poderá ter a ver com a dramatização que Cavaco introduziu agora na sua campanha. Apela aos seus apoiantes para convencerem os primos afastados , os amigos na farmácia e os colegas no local de trabalho para irem votar. As sondagens estão a criar um desassossego no seio da campanha da direita. E pode ter uma explicação académica. De acordo com um estudo de Thomas E. Patterson, "Of Polls, Mountains: U.S. Journalists and their Use of Election Surveys", inserido no norte-americano Public Opinion Quarterly, e divulgado no Margem de Erro: “os candidatos são estrategas, com certeza. Mas o facto deles dramatizarem os seus apelos e encenarem as suas mensagens não é nenhuma novidade. Tais manobras são tão velhas quanto a política. O que é novo é a intensidade penetrante sob a qual as actividades dos candidatos são expostas, dissecadas e criticadas. E não deve constituir surpresa que ao mesmo tempo que os candidatos que são apresentados como mestres de estratégia e manipulação, os americanos os tenham em menor consideração”.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Soneto do amor total



Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes

Contos do Ano Novo .4

Fingir-se de morto é uma estratégia de sobrevivência. No reino animal há várias espécies que a ela recorrem. Há meses que eles se seguiam. Ela muito livre, ele muito tímido. Tinham a mesma idade. Ela tinha vivido mais do que ele. Ele estava obcecado por ela, mas não sabia nem como, nem quando, concretizar a paixão. Aqui para nós, o rapaz era inexperiente e inseguro, mas tinha vontade dela. A rapariga era segura e experiente, também tinha vontade dele. O primeiro passo foi dela. Organizou um jantar em casa. Tudo bem comido, bem fumado, bem bebido. O grande tímido, só olharezinhos, voz quente e sorriso envergonhado. A casa foi-se esvaziando, tinha sido uma grande festa. Ele foi-se deixando ficar. The party is over. Só ficou ele, aparentemente vencido pelos excessos da mesa e dos fumos. Um corpo abandonado, inerte, no meio de uma sala vazia. Morto. Ele estava morto. Ela de milagres sabia. Apareceu nua a seu lado perguntando-lhe se não preferia deitar-se na cama. Ele aí saiu do coma profundo. Ressuscitou. Venceu a timidez. Aprendeu, com a vida, outras estratégias de sobrevivência. Assim é o mundo animal! Hoje lembra-se com enorme saudade daquela mulher e sente ternura pelo tímido que foi.

Josina MacAdam

domingo, 15 de janeiro de 2006

Equilíbrios precários no Médio Oriente

Aquelas biscas lambidas da direita portuguesa, a tal que o Marcelo Caetano apelidava de mais estúpida do mundo,que tentam impingir o produto Cavaco Silva , a qualquer preço, não fazem ideia do que as espera: petróleo mais caro e uma União Europeia a esvanecer-se por causa da pressão insuportável do crescimento chinês e da tensão ao retardador do Médio Oriente. Com quem é que Anibal se quer aliar? Mesmo Berlusconi pode vir a ter que fazer uma Grande Coligação com Romano Prodi para salvar o que resta de uma economia desfeita... A arrogância de Cavaco Silva faz parte do album de recordações dos miguelistas e trauliteiros do mais sinistro pseudo-nacionalismo lusitano.

A impertinência e a chantagem da proliferação nuclear lançadas pelo novo líder iraniano, Ahmadinejad, podem criar uma catástrofe geopolítica estrutural no Golfo Pérsico, provocando uma subida mais expressiva do preço do barril de petróleo e tornando os putativos fariseus da coexistência económica global- EUA, China,Índia e Rússia-em parceiros opostos e diferenciados de um afrontamento múltiplo e sangrento. Alexandre Adler, no seu mais recente livro- " Rendez-vous avec L´ Islam "- ventila tal hipótese como o princípio do fim do crescimento imparável da economia chinesa, por um lado; e, por outro, como o início de uma recessão intercontinental que deixaria a Europa e os EUA de rastos. Dois cientistas sociais minimizam tal eventualidade num texto publicado no NY Times desta semana, que possui o mérito de aprofundar as questões de uma forma clara e sintéctica.

Sabe-se, com efeito, que Teerão assenta hoje em dia a a sua arrogância política activa no pressuposto de uma confortável almofada de divisas externas fortes, provenientes das exportações de crude e da concessão de diversas explorações . A raíz do problema e da congénita instabilidade política e social radica, tão-só, na falta de discernimento ideológico do novo homem-forte de Teerão, de quem se desconhecem as afinidades ideológicas mais profundas e dinâmicas em acto:"estará ligado de pés e mãos com as confrarias sunnitas integristas, Irmãos Muçulmanos egípcios e sírios, os oulemas sauditas, a nebulosa Al-Qaida para não se falar dos talibans pathans? ", questiona Adler.

Os dois politólogos da Universidade de Berkeley, D. Zahedi e O.Memarian, pontuam no artigo conjunto publicado no NY Times- Um demagogo no imbróglio iraniano - que " os lideres do Ocidente deveriam levar em consideração o que diz o arrogante e bluffista recém eleito presidente do Irão sobre as questões maiores do seu projecto político regional e deameaça nuclear". Está em jogo a integridade regional do Irão e a segurança do mundo Ocidental, admitem.

" O exército americano está atolado no Iraque e no Afeganistão, e os EUA deram a primazia ao controlo e fiscalização nuclear da Coreia do Norte, prioritariamente ao do Irão. Caso venha a ser ameaçado, o Irão pode espalhar a devastação militar e social no Afeganistão, Iraque, Libano e Israel, pelo menos.Informações distorcidas podem inclinar o líder iraniano a responder a uma escalada militar norte-americana",acentuam os especialistas de Berkeley University,e avisam, que " mesmo se o Irão jogar a carta religiosa com os Sunnitas, posicionados em vários países da zona,inimigos frontais dos chiitas", o que parece estar em jogo, " diz respeito a um ajuste de contas de Ahmadinejad contra os seus rivais internos e o esmagamento das franjas modernistas da sociedade iraniana ".

FAR

Ternura



Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar estático da aurora.


Vinicius de Moraes

sábado, 14 de janeiro de 2006

Soneto de Fidelidade




De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Que vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


Estoril, Outubro, 1939
Vinicius de Moraes

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Estado de Direita

Crónica presidencial despropositada

O Estado temo-lo em casa e não se dá por isso. É a palmatoada do pai em obediência ao Grande Costume, mas desaparece no sorriso do pai, é a sopa obrigatória marcando passo, torcendo a espinha, mas vai-se na bola de gelado, é a espada imaginário de Afonso e a pá da padeira, mas também o serviço de urgência em dia de cabeça partida quando a senha que nos calha é amarela e lá secamos como bacalhau de Janeiro à espera da consoada. Em casa senta-se à nossa frente e emite livremente uma vida alheia, de outros bibelotados e habitados, em que enredamos como mosca na teia e comemos preocupadamente como a nossa própria. O Estado vende modos de vida e comportamentos, mesmo quando diz que não. O Estado é o patrão por trás da televisão, porque o patrão é o Estado berlusconizado, o Estado dos interesses e da celebridade cultuada, neutro a favor deles e muito colorido a pintar protagonistas eternizados no instante. O Estado também é terrorista quando lhe dá jeito. E magnânimo nas datas simbólicas. Mais pau de bandeira menos pau de bandeira, obriga-nos a respirar os ventos patrióticos da história a plenos pulmões ou impondo-nos, sentimental, a nostalgia de uma amputação, em cada escalada alegre ao topo do mastro ou quando triste se queda na meia haste. Hasteia o que pode, por vezes muribundo e ainda dá coice, gemebundo, tiros atirados à toa em Largos do Mundo, casas de pombos desempregados. Ele é a aranha sempre pronta a cuidar dos nossos desvios. E quando estes estão para além da vontade de quebrar uns vidros por mera angústia ou desvario, ou além de vituperar um sentido proibido que nos desestaciona a existência, ele estica o seu longo braço e observa-nos a cabeça como quem faz uma cerebroscopia, à procura da raiz do mal, que já lá estava, na genética origem malformada. Diagnosticar um pendor anarquizante, um desconhecimento do princípio hierárquico, uma peste mental, é o que fazem os seus serventuários mais dedicados com sanha militante. O Estado pode ser um clube com direito reservado de admissão, mesmo uma seriíssima casa de alterne. O Estado é a Casa Branca, espalhando imaculada cirúrgica guerra entre civis. O Estado filma-nos e pede que a gente sorria, de frente ou de perfil, de trás ou no covil. E calça-nos a cabeça sempre que ela perde as baias. O Estado é também o princípio da competição, ele quer o maratonista mais maratonista, o Estado quer pernas musculadas e secas de carnes para espalhar horizontes de visão, o Estado é um imenso professor de ginástica sueca, um dois, um dois, braços estendidos, à frente, começar! O Estado é algures o banho esfregado até que o corpo perca a vontade de respirar pela pele, é o alicate puxando a língua, é o avião atirando opositores sobre uma mar pacífico. É invisível quando descemos as persianas e se faz um escuro definitivo, as horas que o sono durar, porque estando lá não está lá, mas vela pelos nossos sonhos, fabricando pesadelo quando girando à volta do sol, o não podemos, decreto havido. Tal como o anjo da guarda, protege-nos do mal, essa vida saturada de diabos dançando frenesins solsticiais nos cromeleques da imaginação. Não que eu alguma vez o tenha tido de guarda à cabeceira: de asas talhadas em prata e sorrindo, o que se pode pôr de dentes protectores, na dimensão de um medalhão? O resto de uma chiclete sim, colada no espaldar da cama, clandestina e duradoura, para mascar no silêncio do preto escuro, essa áfrica de todos os dias que anoitece connosco. O Estado é o satélite olho do grande irmão. E nós o pirilampo, luz precária saltitante, fugindo do apanha luzes. O Estado é o Cavaco, o cavaco inifogado que as televisões vendem como a qualidade. O Estado são as Silvas que por todo o lado infertilizam os baldios. O Estado com um E de continência, É o Estado de Direita.

f. arom

Agora que o Fungágá da bicharada tomou o poleiro




Epitáfio para M

Dos tubarões fugi eu
Os tigres matei-os eu
Devorado fui eu pelos percevejos


Brecht em tradução de Arnaldo Saraiva

AFORISMOS E AFINS



Eu gosto tanto de ti que tenho vergonha de mim. Há todas as razões boas para eu não gostar de ti, menos a de eu não gostar, porque gosto. É fantástico a gente sentir o que não quer e ter um coração independente.
Fernando Pessoa
In AFORISMOS E AFINS

quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

O Circo está de volta a Corroios

Mad Dog Clarence

Los Santeros

LUSA- Numa das mais aguardadas e badaladas movimentações do defeso, a mítica banda de surf-mariachi-underground-grease-trash-majestático Los Santeros contratou para as primeiras partes da sua tour nacional o não menos mítico bluesman do Cais do Sodré Mad Dog Clarence. A primeira data é já no Sábado, dia 14 de Janeiro, em Corroios (mais propriamente, Vale de Milhaços) no Ritmus Bar, com inicio marcado para as 23 horas. Este espectáculo prevê-se marcado pela memória do primeiro concerto dos Santeros nesta sala, quando após Chicken Birdie Joey (baixo e voz) ter tentado desesperadamente que a empregada de mesa aceitasse um pedido de casamento efectuado em palco, foi organizada espontâneamente uma sessão de tatuagens, tendo a sala se transformado de repente na ante-câmara de uma sessão de tortura ao som do DJ americano Shimmy. Sábado caberá a mais um americano, o DJ Reverend Bo Jackson abrilhantar a festa até de madrugada. O que sucederá desta vez? Uma pergunta dificil de responder, pois nos concertos de Los Santeros tudo pode acontecer. Lá estaremos para dar conta aos leitores.

Morreu Fernando Adrião

Foi uma das glórias mundiais do hóquei em patins, nas décadas de 50 e 60. Um ídolo e um exemplo para muitos que viveram em Moçambique, ao mostrar que afinal os títulos, mesmo mundiais, também podiam ser conquistados, desde que houvesse arte e perseverança. Foi 136 vezes internacional, pentacampeão do Mundo e tetracampeão da Europa. Quem não tem no seu imaginário os relatos da rádio dos jogos de hóquei, em que era raro não se ouvir “golo, golo, gooooooooolo de Fernando Adriãoooo?” Juntamente com Livramento, Adrião marcou uma época ao ser o maior do seu tempo.
*
PS. Na fotografia:Vencedores da Taça das Nações - Montreux/ Suiça 1958 – Selecção de Moçambique em representação de Portugal. 1º-Vasco Romão Duarte, Eduardo Passos Viana, Alberto Moreira, Victor Rodrigues. 2º-António Souto, Abílio Moreira, Francisco Velasco, Fernando Adrião, Amadeu Bouçós, Manuel Carrelo

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Bolívia enfrenta novos desafios

A Bolívia provavelmente está perdida com a eleição de Evo Morales para a Presidência da República. Mas o simples facto de um índio, representante dos plantadores de coca e socialista à antiga, ter sido escolhido para a primeira magistratura do país andino é um alvissareiro sinal de que a democracia está funcionando, ainda que com muitos problemas, na América Latina. Seria precipitado afirmar que a região já não corre risco de retrocesso institucional, mas é bom recordar que há 10 ou 15 anos atrás, seria impensável que alguém pudesse se sagrar presidente e que encarnasse os piores temores de Washington e das elites económicas locais.
*
Embora me regozije com o que aparenta ser um avanço em termos de consolidação democrática, uma real alternância de poder, daquelas que contariam interesses profundamente enraizados, não invejo a situação dos bolivianos. Morales tem uma difícil escolha pela frente. Ou tentará fazer o que prometeu e quase com certeza levará seu país à ruína financeira, ou rapidamente esquecerá seus compromissos de campanha, o que poderá, no pior cenário, custar-lhe o cargo.
*
Devo agora confessar ao leitor que padeço de simpatias esquerdistas. Gostaria de ver um "governo popular" dar certo, como promete ser o de Morales. A chance de que isso ocorra é, no entanto, muito remota.
Hélio Schwartsman
Folha de S.Paulo
*
Pode ler AQUI o artigo completo.
Ideia inspirada na Esquerda Republicana

“Deputados e governantes devem ser aumentados” – Cavaco Silva ao DE

Em entrevista hoje ao Diário Económico, Cavaco Silva considera que para se afirmar uma cultura de competência dos titulares de cargos públicos só há uma forma: "pagando melhor a deputados e a membros do Governo será mais fácil atrair para a vida política pessoas com qualificações elevadas". O clarividente candidato, esquecendo os resultados das práticas dos seus governos, acrescenta: "era bom que a AR repensasse esse assunto e pensasse naquilo que acontece nas outras administrações públicas, por exemplo, em Inglaterra, em França". Bolas, isto até pode ser verdade. Mas porque é que este princípio não resultou quando ele era governante? Porque é que deu tantas primeiras páginas ao Independente? Para o candidato, aqueles é que eram tempos. Agora não. E confessa ao DE que o país atravessa um momento "muito grave". Há dois dias já tinha dito o mesmo ao jornal de Negócios: “o país tem falta de rumo”. Enfim, só coisas boas para uma coabitação frutuosa. Nesta que é a sua segunda entrevista a um jornal económico, o candidato que não lê jornais e que nunca se engana vem agora afirmar que considera possível um cenário de dissolução da Assembleia da República. "Nenhum presidente da República pode abrir mão dos poderes que a Constituição lhe confere", para a seguir rematar “as pessoas, neste momento, acham que o Presidente da República pode fazer muito.” Cavaco ilusionista a vender gato por lebre, a preparar terreno para o governo do presidente. Nesta interessante entrevista o candidato mandou diversos recados a José Sócrates sobre os mais variados temas económicos. Cavaco deve ter sido possuído pela ideia que existe em muitos países africanos:" o presidente é o nosso pai". Será que ninguém lhe responde:"vai chamar filho a outro"? Ou será que o candidato está a preparar a publicação das suas sebentas de economia? Já agora, porque não aproveita algum tempo livre para reler a constituição, principalmente na parte dos poderes do presidente? Ou a sua Maria, aquela atrevida, não lhe dá sossego? A Vox Pop conclui: “Bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz mas não o que ele faz”.

Realidades oníricas, nº37, 1/2
Pintura acrílica sobre seda, 1998
Bela Rocha
*
Há sol na rua
Gosto do sol mas não gosto da rua
Então fico em casa
À espera que o mundo venha
Com as suas torres douradas
E as suas cascatas brancas
Com suas vozes de lágrimas
E as canções das pessoas que são alegres
Ou são pagas para cantar
E à noite chega um momento
Em que a rua se transforma noutra coisa
E desaparece sob a plumagem
Da noite cheia de talvez
E dos sonhos dos que estão mortos
Então saio para a rua
Ela estende-se até à madrugada
Um fumo espraia-se muito perto
E eu ando no meio da água seca.
Da água áspera da noite fresca
O sol voltará em breve

*
Boris Vian

canções e poemas

terça-feira, 10 de janeiro de 2006

Prémio: “ó meu, boceja lá que ninguém está a ver”

“Cresce nos blogues e nos jornais, o enfado enorme que atravessa os comentários sobre estas eleições. Resta saber se haveria o mesmo enfado se não fosse esperado que Cavaco as ganhasse. (…)
E no entanto... estas eleições são muito mais interessantes do que parecem, muito mais importantes do que se imagina. Elas mexem fundo no sistema político-partidário, nos partidos, nos grupos dentro dos partidos, nas personalidades. Muita coisa vai começar, alguma está a acabar de forma inesperada".
JPP, Abrupto, 10.1.06, 15:43

Pode-se deduzir da análise de Pacheco Pereira que além dos assessores e da normal entourage do presidente, muita coisa vai mudar na Presidência da República? Será que Cavaco já pensa num governo sombra, ou ainda se mantém nas orientações políticas ao governo de Sócrates? Para quem diz que "o país está sem um rumo" é manifesto o propósito com que o aparelho cavaquista se vai sentar no cadeirão de Belém. As eleições vão mexer no sistema político-partidário? Ó Pacheco Pereira. Mas isso é uma revolução. Você já se esqueceu que agora é conservador? Uma recaida qualquer um tem, mas aguente-se. Porque embora se ganhe uma batalha, não significa que a guerra esteja no papo. Volte sempre ao
2+2=5.


Ilustrações de Ivone Ralha

Ilustrações para livro
PESCADORES DE MAR MUITO – testemunhos de Angelo Sobral Farinha
De Arlindo Mota e João Martelo

Alcatruzes. Andiches. Aparelho. Armação à valenciana. Arte do cerco. Calamento. Covos. Enviada. Ensarramamento do aparelho. Gibo ou radar. “Jeeps”. Mercaço. Parte da viúva. Pegaços. Piteira ou toneira. Rabeira. Redes de emalhar. Sacada. Turina. Xávega ... palavras antigas?

Cavaco com medo que lhe falte a reforma?

Ontem à noite no programa Prós e Contras da RTP, o ministro Teixeira dos Santos alertou para a falência iminente da Segurança Social. Ou seja, o Estado dentro de 10 anos não terá dinheiro para pagar reformas. Tudo devido ao envelhecimento da população. Terá sido esse o motivo que levou Cavaco Silva a recandidatar-se? Há uns anos disse ao jornal Público que em pensões e subvenções ganhava 9.356 euros líquidos por mês. Sem contar com mais uma série de alcavalas. Que é muito. Será que ele já sabia, esteve a fazer contas à vida e decidiu avançar rumo a Belém? Ora .. ahhh….. 10 anos ….. 18 .. vezes… 10 mil …ahhh .. a dividir … vezes 37 ... ahhh … ora … mais uma cannndidatuuura….ahhh …. e fico safo. Ah, ...….ahhh.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

Maria Rita. Hoje e amanhã no Coliseu dos Recreios em Lisboa. O concerto tem como base o seu novo álbum, “Segundo”. Para assistir com a paixão como se ouvem, ou ouviam, os grandes intérpretes da MPB, como era o caso de Elis Regina. Maria Rita atingiu já o estatuto de maioridade e descolou para outros voos. A não perder.

Foto de Ivone Ralha


O AUTOR A UM AMIGO QUE LHE DISSERA
NÃO SER ELE CAPAZ DE CITAR
MAIS DO QUE TRÊS THOMAS
NA VIDA CULTURAL ANGLO-SAXÓNICA



Thomas Moore
Dylan Thomas
Thomas Stearns Eliot
John Thomas (1)
Thomas Gainsborough
Por quem me tomas?

(1) cf., D. H. Lawrence

Rui Knopfli
T .S. ELIOT. THE SHADOWS OF RAINBOW

(Ao Ricardo Rangel e ao Kok Nam)

1. The formal word exact without vulgarity
A história agora é o Iraque, já que nós, bronzeos,
e a história somos o molde. Na voz do sangue,
há sempre um negro ou cigano de violão azul.
Há um tempo para as estrelas dormirem
e outro para fazerem amor; quer dizer,
copular de olhos acesos ou já mortiços.
E inútil esbracejar ante os verdugos.
Diriam: espera assim, vergastado, pois virá
a escuridão. Teremos luz, o vinho, a dança, a orgia,
porque, sabes, os cavalos também se abatem. E as flores!
( Não é cada poema o caixão, o epitáfio, o ilegível mármore? )

2. Temos, há muito. sibilas, na boca e na garganta índicas.
Angoche ou Zavala são só luzes fixas pela “Nikon”?!
Temos a perturbação no vórtice das aves, na plena
rotação de iluminações luarentas; e há veios raivosos
de conversas cerca das gazelas e da pose eterna das garças.
Há rostos no ocu1to e este cheira a crime, a incursão
de uma balada de tiros, com odor perfeito, único,
do espumoso aberto às nossas 24 horas. Mas é do lar
da amizade ou da submissão? As praias e as reservas
devoram turistas e seus iates, aviões a jacto ( ou, poeta,
da jactância?), pela agitação de tanto cascalho marinho.
And do not think of the fruit of action

3. É inútil esbracejar, se hispar a artéria do jazz
de um encenado morremorrer na Julius Nyerere
ou nos pês-agás da Coop, Ei-lo, o grito de Átila!
E ele tem alvos; não cessa o que, ímpio, enlameia
esta tela (secas, fome; dilúvios, miséria! ) de Dali,
de três metros suficientes para um poeta dizê-lo:
“Temos a cama franca, a mulher, útil paixão!”

Into another intensity; o fim é sempre evolução.

Heliodoro Baptista
Beira, Chaimite, 28 de Dezembro de 2005
In “ Nas Coxas Morenas da Memória “


O caso do clip serial killer

A hora já não era de ponta no cubículo de papel selado e carimbos. A menina Lurdes pegara no lenço de papel rosa e limpara uma lágrima esquiva, o chefe palmatoara-a verbalmente, sem comas, por mais um ofício mal amanhado, um reles b ortografado q que a atraiçoara e que não viera de Viseu que a máquina não tinha sotaque, soluçando apenas nas maiúsculas em dias ímpares, era mesmo internacional, como a pensão do lado, conhecida pelo gato francês recepcionista, sem cauda nem piano. Com o alfabeto Lurdes tinha um conflito latente, era mais a tabuada o seu jeito, mas metera-se a dactilógrafa e ofícios era o que mais batia – onde já vai este tempo em que a dactilografia era um horizonte!?.
Clip impacientava-se, na secretária de Lurdes, a noite era o seu reino desejado. Era voluntário da sua própria causa, militante do seu parafuso a menos, e lá se metia, Clip clandestino, em aventurosas situações. A sua pancada era saltar para o goto de qualquer incauto e provocar uma asfixia erótica e arroxeada, que lhe quebrasse a rotina. No goto o Clip flipava de gozo : era mesmo um Clip de imaginadas curtições vanguardistas, ele que nunca saíra de Campo de Ourique. Rebelara-se contra esse papel redutor de ajuntador de folhas a que fora condenado sem remissão, e sem perspectiva de progressão na carreira, obrigado a 40 anos de serviço, quarenta!, decidira-se pelo desvio à norma. Zeus que ajuntasse nuvens que ele não ajuntaria papeis. Embora tímido ansiava a visibilidade, como qualquer vocacionado serial killler.
Além de tudo o mais, não surgira o agrafo, essa modernice, a justificar a sua ira permanente? Detestava os agrafos, essa coisinha que feria o papel e o fazia abraçar-se incestuoso, num gesto definitivo, para a vida, como na velha monogamia. No aperto das folhas o nosso Clip era mais brando, amigando-as num gesto de proximidade terna quase apenas sugerido embora a golpes de tédio.
Clip tinha também noção dos seu pergaminhos : alguns de entre os mais notáveis Cliperes tinham nome próprio, além de que um Clip era parte dos Clipes, da família dos Clipes, célebres por terem estado presentes em tudo o que a história regista como solenidade e charneira desde a invenção do papel. Não clipara o acordo de Yalta um célebre Clip, um Clip como já não há, um Clipossauro? E o muro não caíra por o terem os Clipes desclipado? E não fora Leonardo o criador da forma Clip?
Mas ao Clip da dactilógrafa Lurdes, mais que a inovação agrafos, perturbava-o saber que existiam parentes bastardos, de plástico. Foleirice dos tempos correntes, esta visão obcecara-o, tornara-o vingativo-dependente. Imitações de plástico da forma clípica? O desejo de vingança acentuou-se e uma vontade cliptocídica tomou-o de assalto. Pensara ser um Clip bomba, um suicida Clip, mas não lhe chegara a coragem, teria de cursar primeiro a via da fé cega e ele, naquele convívio diário com o papel tornara-se laico, republicano e socialista. Mas a tara vingativo-dependente não o largava. Que fazer? Eclipsar-se noite sim noite não, imiscuir-se na intimidade gastronómica dos outros, disfarçar-se de Clip no mundo das profusas saladas, juntar folhas de alface numa original forma de apresentar pratos, entrar pela nouvelle cuisine dentro, esse design de pendurar nas paredes do estômago.
Uns anos passados e o currículo do nosso Clip, Clip de nome próprio e Clip de apelido, Clip Clip portanto, Biclip para os mais chegados, já somava incontáveis viagens pelos gotos deste público alvo - como se sabe os amantes da nouvelle cuisine viajam muito pois é uma cozinha que se apanha muito no avião. Tornou-se um clip viajado. O que mais lhe custava era o regresso à caixinha da Lurdes e ao simplório cubículo burocrático. Ter de atravessar laringe, traqueia, e depois ser cuspido sem pára quedas, era desporto radical. Mas voltar à base, ao cubículo de Lurdes era humilhação, desclassificação.
Hoje o nosso Clip reformou-se e está num lar de velhinhos Cliptómanos que o afagam com ímpeto coleccionador.

f.arom

Contos do Ano Novo .3

Estava a terminar o Secundário. Bom aluno, bonito, desportista. Não estava já para a disciplina que exigia o desporto. Já tinha sido campeão. Não estava, agora, numa competitiva. A Escola também se fazia numa boa. Na conversa com a namorada de turma ia apreendendo com facilidade o que os profs. diziam. Estava naqueles impasses da vida. Que curso escolher? Que namorada ter? Que fazer? Tinha começado a ler Heinlein, “Um Estranho Numa Terra Estranha”, e Kerouac. Os charros com os amigos faziam parte e alimentavam as indecisões. Digamos que estava a preparar-se filosoficamente para a vida. Foi detido e conduzido para interrogatório, quando fumava com os amigos e contemplava o pôr-do-sol. O delegado do Ministério Público interessou-se pelo seu caso. O meio era pequeno e o “juiz de fora” cedo percebeu que a conduta do rapaz não tinha que ver com estereótipos. Mas no interrogatório a que presidiu ficou-lhe uma dúvida. Os rapazes tinham confessado ter queimado uma pedra que, depois de misturada com tabaco, tinham fumado num cachimbo de prata. De prata? Isso é que devia ser caro! O qui pro quo resolveu-se. O magistrado deve estar numa comarca mais perto de casa, mais sabedor. O nosso rapaz terminou o Secundário, dirige hoje uma equipa de investigação, casou, tem filhos, assentou na terra. Quem sabe se na crise dos 40 volta aos impasses? E o magistrado fumará hoje em cachimbos de prata?

Josina MacAdam

Questão fundamental

Estar na perspectiva de uma paixão
é estar já apaixonado.

domingo, 8 de janeiro de 2006


Foto de Ivone Ralha



Quem escreve

Quem escreve quer morrer, quer renascer

num ébrio barco de calma confiança.

Quem escreve quer dormir em ombros matinais

e na boca das coisas ser lágrima animal

ou o sorriso da árvore. Quem escreve

quer ser terra sobre terra, solidão

adorada, resplandecente, odor de morte

e o rumor do sol, a sede da serpente,

o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,

o negro meio-dia sobre os olhos.


António Ramos Rosa
ACORDES, QUETZAL

O poder e a crise (2)

PREMISSAS DA DIALÉTICA:

1- "A História” e “O Mundo” são a mesma coisa
2- "A História" é a história do Poder
3- O estado habitual da humanidade é a crise
4- O Poder existe entre crises
5- Qualquer crise torna o Poder mais forte*

*- Não se confunda "O Poder" com as versões conhecidas do mesmo

Má notícia: começou a campanha. Boa notícia: acaba a 22.

Começou às 00:00 a campanha eleitoral para as presidenciais de 22 de Janeiro. Se até agora a única novidade foi a subida desproporcionada do candidato da direita, o estado das coisas parece que só se vai alterar se acontecer algo de relevante, que penalize Cavaco Silva. As pessoas estão a encarar esta campanha como uma espécie de reality show. Cavaco faz aqui o papel de José Castelo Branco, sem as afectações. Se neste caso, ele ganha apenas pela simbologia, já a candidata a primeira-dama perde em todos os pontos. Consegue ser pior do que Betty Grafstein. Mas o eleitorado parece gostar de figuras sem graça e politicamente absurdas. Num país em que uma desgraça nunca vem só, é vê-las diariamente em grande destaque nos jornais a serem avidamente consumidas, só nos faltava mais esta, a acreditar nas sondagens: apanhar com cinco anos de cavaquismo presidencialista. Se durante os seus governos foi o descalabro que todos nos lembramos, sem esquecer os seus indescritíveis ministros, vamos agora ter agora direito a um bónus: apanhar com a sua inenarrável Maria. Passará de imediato para o primeiro lugar do Top 25 da primeira-dama mais kitsch da Europa. É tão sexy e galvanizadora como a Elena Ceausescu. O casal da Vivenda Mariani vai ser tão bom para a credibilidade de Portugal lá fora como o caso Apito Dourado. Vai trazer tanta lufada de ar fresco à vida política como a febre das carraças. Não se percebe esta doentia atracção pelo abismo que reina neste país. Porque será que há cada vez mais pessoas a pirarem-se para o estrangeiro? Será receita médica?

sábado, 7 de janeiro de 2006

"Não nos falta comunicação, ao contrário, temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente"

Gilles Deleuze

Foto de Ivone Ralha


“Y fuiste reparada
donde tu madre fuera violada”
S. João da Cruz, Cântico Espiritual


Desfloras-me
desfloro-te
porque temos flores
um para o outro
o teu ritmo
em mim
sobre mim
é muito antigo
é como o dos animais
ganho a minha virgindade
que te dou
e que não perco
sou sempre virgem
a minha dor
o meu sangue
são a tua dor
o teu sangue

Adília Lopes
O optimista inveterado: o que é ?

Por Kay Jamison, John Hopkins University

Numa entrevista ao semanário " Der Spiegel ", esta semana , a psiquiatra norte-americana, Kay Jamison, especialista mundial sobre a Depressão Masculina, que ensina na Universidade John Hopkins, traça o perfil dos optimistas inveterados que constitui a matéria do seu mais recente livro, " A exuberância: paixão pela vida ", Edit. Alfred A. Knopf, New York.

" Os entusiastas constituem um agrupamento de seres inacreditávelmente curiosos, orientados para o futuro, concentrados, criativos e provocam tudo e todos os que os cercam. Entusiasmo é por si própria uma palavra maravilhosa, que provém do latim: " En theos"- o deus interior.

O antigo presidente dos USA, Bill Clinton, faz parte desse grupo fascinante. Desde que entra numa sala, toda a gente fica encantado com ele- mesmo que tenha acabado de sair do hospital. Ele é inacreditávelmente curioso. Quando quer mesmo alguma coisa, custe o que custar, chega a telefonar às pessoas a meio da noite.

Um tipo semelhante é o Prémio Nobel da Medicina, Carleton Gajdusek, célebre pelos seus longos e importantíssimos monólogos, que abordam todos os sujeitos. Em Estocolmo, derrubou todos os protocolos porque o seu discurso demorou 165 minutos sem parar. Mas toda a gente ficou entusiasmada- mesmo os membros da Academia Sueca.

O caso mais extremo de grandes entusiastas deve ser o do presidente Theodore Roosevelt. Amava a vida, amava a natureza. Amava o trabalho- e tinha mesmo um fraco pela guerra. Achava tudo uma maravilha, especialmente o que o rodeava. Com 42 anos foi o mais novo e dos mais vivaços de todos os presidentes yankees. Mesmo em adulto ficava radiante por causa das festas de Natal. Quando no dia de S. Valentim lhe morreu a mãe e a mulher ao mesmo tempo, fez das fraquezas forças e, mesmo adoentado, escreveu vários livros, dedicou-se à caça e fundou um rancho de gado, nos meses imediatos à perda daqueles entes queridos. Bloqueios, incertezas e tristezas nunca tiveram lugar na sua vida ".



Copyright FAR

Tu és um Homem-carro


O teu carro é um Homem
Tu és um Homem-carro
Tu és o acelerador do carro
Tu és a rugosidade cerebral
Pneus do carro chiando
Travagem perigosa acelerando
Tu és desafiante em forma-carro
Tu és carne ligada a nervos
Tu és reagente-estímulo
Em forma de auto-estrada
Tu és um carro-Homem
O teu Homem é um carro
Tu sabes sobre ti
Que és um animal-carro
Queres da vida o mesmo que
O teu carro

sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

Caminhos



Terra fora
…à busca de mim mesmo
e realizar-me onde
ainda na terra se possa ser herói!

Cantar este anseio de plena realização
sobre toda a superfície da terra
numa liberdade desordenada
aos saltos
sobre as fronteiras
sem ver marcos e sem olhar limites.

… … … … … … … … … … … … …
… … … … … … … … … … … … …
Terra fora chamando humanidade à busca
de mim mesmo…

… … … … … … … … … … … … …
…Terra fora
caminheiro de todas as vias
que vão ter à porta
da sempre aberta
porta da vida!

Guilherme Rocheteau
Certeza, 1944
A Quadratura do Eu
Pintura acrílica, 2005
Bela Rocha
*
Uma vez, enchi a minha mão de bruma.
Quando a abri, a bruma era uma larva.
Voltei a fechar a mão, e então era um pássaro.
E fechei e abri novamente a mão,
e na sua palma encontrava-se um homem
de rosto triste, virado para o céu.
Mais uma vez fechei a mão,
e quando a abri já só havia bruma.
Mas escutei uma canção de uma doçura extrema.
*
in "Areia e Espuma", de Kahlil Gibran
Coisas de Ler, 2002
*
PS. Dêem-lhe os parabéns. Ela faz hoje anos

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

António Gancho (1940-2006)

Morreu o "poeta nocturno", como lhe chamou Herberto Helder, um dos maiores divulgadores da sua obra. Morreu na Casa de Saúde do Telhal, onde habitava há 38 anos, diz-se que a rir enquanto agonizava de paragem cardíaca. Verdade ou mito, não deixa de ser coerente com a personalidade deste poeta maldito, "mais um caso de abuso psiquiátrico, de miséria nacional e institucional" nas palavras do seu amigo Alvaro Lapa. Fiquemos com uma poesia sobre o tema principal da sua obra, aquele que agora a António Gancho é revelado: a morte.

Tu és mortal, meu Deus

Tu és mortal meu filho
isto que um dia a morte te virá buscar
e tu não mais serás que um grão de milho
para a morte debicar

Tu és mortal meu anjo
tu és mortal meu amor
isto que um dia a morte virá de banjo
insinuar-se-te senhor

É-se mortal meu Deus
tu és mortal meu Deus
isto que um dia a morte há-de descer
ao comprimento dos céus

"Ó palerma, tás a brincar comigo ou queres levar uma arrochada?"


Na polémica à volta do financiamento da campanha presidencial, levantada por Cavaco Silva, virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Agora Cavaco passou para a defesa, e remete a revelação do seu montante para o Tribunal Constitucional. Afinal, quem tem medo de pôr as cartas em cima da mesa? Com estes pequenos exemplos com que nos tem brindado ultimamente, o candidato da direita revela-se como o menos transparente nesta corrida presidencial. Os tabus, mini-tabus ou pró-tabus continuam a ser a sua forma de estar na política. Não aprendeu nada com 10 anos de tontices deste género. No entanto, as sondagens continuam a apontar Cavaco como vitorioso logo na primeira volta e a distancia-lo dos outros candidatos. Embora elas apenas indiciem uma provável vitória da homem de Boliqueime, revelam que a maioria dos portugueses continua a querer penalizar o governo Sócrates através do candidato laranja. Tal como as sondagens, “cada povo também vale o que vale”, dizia o senhor Joaquim, morador em Miratejo, irritado com o facto dos vizinhos terem ido fazer queixa à polícia só porque ouvia fados da Amália um bocado alto à noite em sua casa. “Estes filhos da p. não têm sentimentos. O canto dela representa a alma da gente, dos portugueses. Cambada de ingratos” dizia no café, para quem o queria ouvir. A embirração do Sr. Joaquim com o povo não encontra eco em Cavaco Silva. Quer corresponder às expectativas populares através de um governo presidencialista. Primeiro quando sugeriu uma Secretaria de Estado virada para o investimento estrangeiro, numa entrevista ao Jornal de Notícias. Ele desmentiu, mas saiu-se mal, porque nessa entrevista foi mais longe. Vital Moreira trouxe essa frase agora à colação, extraída ainda da entrevista ao JN. Nela, Cavaco afirmava: "Às vezes, a equipa não é má, mas precisa de um novo treinador." Atenção: treinador, não árbitro. Ao que o constitucionalista Vital Moreira comentou no seu artigo de opinião no Público “Com esta inovação metafórica, Cavaco Silva introduziu nas eleições presidenciais um facto adicional de imprevisibilidade política e de insegurança institucional”. Não acredito que as afirmações de Cavaco ao JN sejam gafes. O homem que não lê jornais, que nunca se engana e que raramente tem dúvidas quer definitivamente governar. Só que Sócrates já lá está, e não vai ser pêra doce de roer. No entanto, é um governante à sua medida. É interessante ver que o eleitorado quer penalizar Sócrates, através de Cavaco, quando qualquer outro candidato à presidência o penalizaria mais do que o ex-primeiro-ministro do PSD. Por isso, a aposta neste cavalo é obviamente errada. Também assim pensa o senhor Joaquim, quanto à atitude dos vizinhos. E grita-lhes:”vocês fazem-me lembrar os ministros do Cavaco, que vieram do norte com uma mão à frente e outra atrás. Agora todos cantam de poleiro, são podres ricos e arrogantes”. E furioso acrescenta:”se vocês me chateiam mais alguma vez, vou fazer queixa ao Independente”. Só lhe faltou dizer que os ex-ministros são todos administradores de topo de empresas públicas ou privadas. Mas ontem, em campanha, Cavaco insistia:”comigo a competência está primeiro do que o cartão do partido”. É por causa de incongruências como esta que o senhor Joaquim continua inconsolável, e diz para os vizinhos que lhe respondem: "Ó palerma, tás a brincar comigo ou queres levar uma arrochada?"


Ilustração de Ivone Ralha


Porque não me vês

Meu amor adeus
Tem cuidado
Se a dor é um espinho
Que espeta sozinho
Do outro lado
Meu bem desvairado
Tão aflito
Se a dor é um dó
Que desfaz o nó
E desata um grito
Um mau olhado
Um mal pecado
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é Primavera
É um fim de Outono
Um tempo morno
É quase Verão
Em pleno Inverno
É um abandono
Porque não me vês
Maresia
Se a dor é um ciúme
Que espalha um perfume
Que me agonia
Vem me ver amor
De mansinho
Se a dor é um mar
Louco a transbordar
Noutro caminho
Quase a espraiar
Quase a afundar
E a saudade é uma espera
É uma aflição
Se é Primavera
É um fim de Outono
Um tempo morno
É quase Verão
Em pleno Inverno
É um abandono

Fausto

quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

A juventude iraniana procura ideias novas
para combater os aprendizes-de-feiticeiro


Por Daryush Shayegan*

" Paralelamente, a esta nova dose de retribalização delirante ( eleição presidencial de Mahmoud Ahmadinejad ) e a este impasse crispado forjado politicamente, consegue-se descortinar ao mesmo tempo - e nisso se traduz o paradoxo inacreditável da situação iraniana - o aparecimento de uma coligação de todas as culturas do mundo. Nunca como agora os iranianos se interessaram tanto pelas ideias e projectos internacionais, em ordem a
encararem a retoma do projecto de revolução. Essa curiosidade pelas novas ideias define acima de tudo a postura actual da juventude. O Irão é o país onde se vendem mais livros de filosofia do que romances. Contudo, a revolução da Internete criou um novo acontecimento: uma revolução electrónica avassaladora e novos hábitos de pensar e realizar. Assistimos a uma espécide de heterogénese, muito parecida com a que aconteceu na Europa e nos EUA. Todos os assuntos de actualidade os seduzem, sobretudo a mundialização e a virtualização.
Mesmo no interior de regimes surreais, endurecidos pelo manejo da sua intransigência e por acréscimo fanáticos em tudo reduzir aos limites cegos da sua propaganda, o vento da mudança sopra graças ao espírito do tempo e não poupa ninguém ".

* Filósofo, última obra publicada:" O reencantamento do Mundo e o pensamento
nómada", Editions de l´Aube, 2005.

Copyright FAR

2+2=5 a favor da legalização do casamento entre homossexuais


(Inspirado neste post do Dolo Eventual)

O poder e a crise (1)

O nosso tempo é paradoxal. Parece-nos ver a prosperidade em todos os intervalos de emissão. O ethos confunde-se com a aparência. Somos tão enganados quanto mais nos queremos enganar, e tudo vale para esta auto-comiseração: o "alter-mundialismo", as teorias da "Esquerda" pragmática ou da "Esquerda nacionalista", os religiosos ultraliberais, os ultrareligiosos liberais; todos pensamos convencidos da essencial marcha em frente da História.
O que vos queria propor agora é que esquecêssemos a marcha em frente. Que víssemos a História numa outra perspectiva. A tese (que não só minha), será que nem estamos sempre a andar necessariamente para a frente, nem que da História só possamos reter repetições de momentos.
(Tese dificil de entender, pois que a Psique humana funciona sobretudo sob as premissas da continuidade e da repetição).
Esta ideia estranha pretende que entendamos o movimento histórico como sucessão de momentos de poder e de crise. Entenda-se por uma vez este conceito: a História dos homens significa-se por um movimento dialético ascendente entre os homens do Poder e os homens da Crise. Entenda-se de uma vez por todas: nenhum poder sai incólume de uma crise, todas as crises se referem ao poder que as subjaz.
Neste momento de crise, os neo-liberais pensam poder reduzir tudo à aparência do existente, os esquerdistas à antiga vivem num beco sem saída. Nada mais natural: todos são homens do passado. A crise requer novos paradigmas de análise.

O pragmatismo/ Louçã

(A propósito deste post):
Sou um anarquista responsável. Isso quer dizer que na realidade sou um social-democrata. Quero chamar a atenção para este pormenor (maior): "na realidade".

terça-feira, 3 de janeiro de 2006


Paisagem de Demência Festiva
Pintura acrílica, 2005
Bela Rocha
*
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitroglicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias.

Projecto de Sucessão, de António Maria Lisboa
Assírio & Alvim, 1995

Foto de Ivone Ralha


Amputação

Algo, em mim, está morto.
O lado direito inerte, ausente,
de mim está alheio.
Do lado esquerdo
o fito,
como se a outro
olhasse.
Metade de mim persiste,
vive,
e contempla algo, ardendo,
estiolando,
que em mim está morto.
Um perfil que apodrece
e eu vivendo
e vendo ausentar-se de mim
algo que em mim está morto
definitivamente.

Rui Knopfli

Ai Portugal (2 e 3)

2. Viv’ó culto Marianí (Vivenda)

Dei comigo a ser poeta
numa tarde de sesta.
Maria, chega-te p’ra lá
que vai haver festa.

(Guitarras de fado)

Ser candidato é missão,
É ter alma e ser fadista
Quem se candidata é porque sim
E por ser economista.

(Refrão)
Foste comprar cigarros e venderam-te tabaco
Votas no Soares e o que te sai é Cavaco...

Ó país do Santo Ofício.
Pátria da Santa Inquisição.
A palavra sacrifício
já nos está na Razão.

«Nesta saí-me bem, não foi, Maria?...»

(Repete refrão.)

Expresso-me com tanto valor
Num ‘ríctus’ tão espremido.
Espremo-me como salvador
Deste país...

«Não posso?...
Mas, ó Maria só me ocorre esta rima...
Eu sou de Economia, nunca me deu para as Letras...
Pronto, está bem.»

...entregue ao Sócrates.

«Ponho senhor engenheiro?...
Só assim, sem título académico?...
Está bem.»

Esquecido.

«Acho bem...»


3. CANTIGA DE AMOR*


Um dia a ti cheguei-me,
num gesto mais alarve.
Disse-te «sou de Boliqueime,
lá prós lados do Algarve.»

Ficaste parada a olhar-me
com esses teus olhos.
Tinhas tanto charme
que fiquei a gramar-te aos molhos.

Os meus versos não são nada,
são suspiros da minh’alma.
São a minha gargalhada
mas...
assim...
Percebes?...
De uma forma calma...

Tenho tanto sentido de humor
Que até te digo «meu amor»
e junto-lhe o meu sorriso.

(gostaste?...)


* Até se podia incluir nos manuais de Português...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

Desejo blogosférico para 2006

Que o João Miranda deixe de uma vez por todas de usar e abusar da Falácia do Espantalho.

Os melhores do 2+2=5

A equipa do 2+2=5 decidiu por unanimidade eleger os seguintes blogues como os melhores do ano de 2005:

1- A Natureza do Mal
2- Um Blog Sobre Kleist
3- Random Precision
4- Esplanar
5- Blasfémias
6- Glória Fácil
7- Lida Insana
8- Da Literatura
9- Esquerda Republicana
10- Metablog

Contos do Ano Novo .2

Todos os anos trocava de namorado. Mas as últimas escolhas tinham tido final trágico. Para este ano desejava uma coisa mais cool. Há pessoas a quem sai sempre a mesma rifa. Também é verdade que sempre teve um lado Florence Nightingale. Em pequena quis ter sido médica ou enfermeira. Na pior das hipóteses irmã de caridade. Depois cresceu com as portas que Abril abriu. Era uma mulher liberta, nova, bonita, com o seu q.b. de inteligência e cultura. Uma sensualona. Solta em Lisboa, tão longe do bucolismo da infância e da adolescência. Numa Lisboa que se tornara a Paris do filme do Cunha Teles. Mas os quatro últimos namorados? Que desastre. Quatro anos a viver como na tela. Tarantino numa mistura com Doris Day & Tony Curtis. Uma natural born killer à portuguesa. Ups and downs . Às vezes no mesmo dia. Estava nos quarenta. Só queria, como as amigas, uma companhia. Os s.m.s.s, os m.s.n.’s, a televisão, os gatos, não lhe bastavam. Nem sequer tivera filhos. Era uma mulher livre. Estava nos quarenta. Agora queria uma vida calma. Direito seu. O primeiro da série até fora o menos incómodo. Resolveu um dia cair de bêbado da janela. O pior foi o velório com uma noiva inconsolável, a carpir em cima do caixão, mais outras duas rivais, discretamente sentadas e chorosas como ela. Ao enterro claro que já não foi. Do segundo, com algum incómodo, também se libertou depressa. Era um emigrante ilegal desses países da Cortina de Ferro. Só que duma zona islâmica. Fazia muita companhia. Demais. Por vontade dele usaria burka. Depois de ter sido várias vezes, por ele, ameaçada, resolveu fazer uma queixa à emigração. O Delfim do Cardoso Pires, ao pé deste, era um progressista. Os nossos serviços de fronteiras são eficazes. Deve estar a vender rosas noutro país da Comunidade. Com o terceiro foi o cabo dos trabalhos. Saía e entrava nas clínicas de desintoxicação. Já passou. Está integrado numa comunidade terapêutica, a comer vegetais, entre rezas. Curaram-se um do outro. Ficaram porém amigos, de quando em vez telefonam-se. Bem, o quarto ainda não desapareceu. É psicopata. Os amigos perceberam logo. Ela percebeu tarde, qual Alice do Scorcese. Ao princípio aquele mundo de fios, luzinhas, cabos, programas, que era a vida dele, fascinara-a. Mas se só tinha sabido da existência de homens ternos, depois dos trinta, crueldade assim, física e mental, só agora conhecia. E tara. Tanta que decidira trocar de namorado antes do ano da praxe. Mas o demente perseguia-a por todo o lado. Casa, trabalho, tertúlia de amigos. Apesar do cerco, conseguiu, finalmente, levar um novo namorado lá a casa. Tiveram uma noite de amor. No dia seguinte foram tomar banho juntos. Quando regressaram ao quarto não é que o grande doido, que se intrometera pela janela do r/c, estava a farejar a roupa abandonada e os lençóis? Há um filme em que a Betty Davies, encarna uma mãe com um filho fetichista. O doente é pior e nem sequer viu o filme. Com os gritos fugiu. Poderá voltar a qualquer momento. Ela foi viver, mais uma vez, para casa dos pais. À espera que o informático a deixe de vez. Não sabe se o novo namorado torna. Nem se é o homem indicado. É do tipo de ir atrás de qualquer burra de saias. Se voltar a aparecer e for tão docinho quanto parece, este, ela não quer perder. Vai voltar ao campo. Ao Alentejo profundo. Com ele. Para sempre. Para sempre? Dependerá da nova vida. Da casa e do mundo.

Bom Ano!


Josina MacAdam

Diálogo entre Michael Bakounine e Louis Blanc

"Quando encontrei pela última vez em vida Louis Blanc, voltei de novo a ouvir da sua boca este idêntico pensamento e aspiração: A melhor forma de Governo será a que atribuirá o poder aos homens de génio virtuoso. Respondi-lhe que esta posição me parecia impossível de ser realizada, já que os génios virtuosos não são geralmente reconhecidos como tais pelo povo que apòs a sua morte; mas, mesmo que fosse possível, consideraria tal opção como a pior forma de governo. Primeiro, porque bastaria que um homem de génio virtuoso restasse durante algum tempo no poder para que perdesse uma grande parte do seu poder e do seu génio; porque nada torna os homens mais medíocres e maus como o exercício do poder;e, por conseguinte, para que se conseguisse ainda salvar o seu crédito, era necessário substitui-lo por outro, o que seria muito difícil, porque os homens de génio virtuosos não nascem como cogumelos. Em segundo lugar, será preciso mentalizar-nos sobre o facto de que nenhum povo se encontra mais escravizado como o que acredita estar a ser governado por homens de génio virtuoso ".

Fragments et Variantes, OC. M. Bakounine,t. 1. Edit. Champ Libre

Copyright FAR

domingo, 1 de janeiro de 2006

Repensar a democracia em 2006

A noite adivinhava-se intensa. Afinal só há uma noite de fim de ano e a ideia das pessoas quando se juntam para as celebrações é sempre a mesma. Entrar da melhor forma em 2006. A preparação da festa foi feita com alguma antecedência. Muitos almoços e jantares de trabalho. A parte chata é que faltei a quase todos. Bolas. Prefiro não ir à empresa do que faltar a estas reuniões importantes. Mas enfim. Na divisão de tarefas, entre copos de imperiais e de vinho tinto, no meio dos comentários sobre a comida, business e outras tricas de importância fundamental, lá me calhou o papel de DJ. Ok. "Boa cena", pensei eu. É a parte que mais gosto e a aposta está no papo. Tinha mais de uma semana para me preparar. Um tempão. Mal sabia eu o que me esperava. Foi a pior semana do ano, na empresa que me dá dinheiro ao fim do mês para beber uns copos. Não sei como descobriram, mas penso que fizeram de propósito. O tempo de me organizar ficou reduzido a pouco mais de 24 horas. Mas a preparação não foi descuidada e foi o mais profissional possível. Analisei tendências, gostos etários, géneros musicais na moda, oldies, goldies e lá fiz trinta e cinco mil selecções musicais, que ia reduzindo, até chegar a uma, que ganhou a final. Tinha músicas suficientes para aguentar uma emissão de rádio durante 24 horas e para agradar a todos, pensei eu. A noite mais esperada do ano chegou e a música ambiente que recebia os convivas era da melhor. “Transa” do Caetano, “Vinicius em Itália”, com Tom Jobim, arrumavam definitivamente a música ambiente de elevador mais avançada. As pessoas iam chegando e marcando os seus territórios, em função dos amigos, conhecidos, ou pessoas que queriam conhecer a toda a força. Afinal, era fim de ano. Sempre era preciso algo de novo, quanto mais não seja para contrariar os hábitos lusitanos das cuecas ou calcinhas azuis, usadas ou novas dependendo das cenas trendy do underground ou upperground. Um show inesperado de sevilhanas veio apimentar a noite. Os olhares raio X, tipo superman, tentavam ultrapassar a barreira da roupa, que era muita, principalmente a parte dos folhos. Depois a música começou a rolar. A primeira conclusão que tirei passados poucos minutos é que há um DJ em cada um de nós. Todos temos um conhecimento profundo e absoluto da música. Passado pouco tempo, um queria aquela passagem de um disco do Caetano, outra só queria forró. Já a salsa tinha de ser mais picada para uns do que para outros, que estavam de dieta. O rock é a solução, pensei. Mas…., o rock é um mundo. Heavy, alternativo, chill out, militante, deslumbrante, ié-ié-ié, tudo foi tentado. Havia sempre alguém que vinha ter comigo dizer: “olha isto não está a dar. Não tens aquela_____?” A frase era quase sempre esta, a música é que variava. Primeira grande conclusão. Fiquei a odiar a democracia. Mas achei que não devia ser tão radical e pensei que não tinha música para aquela faixa etária. Mas havia várias e acabavam sempre por ter um representante seu na pista de dança. Só para liquidar a minha teoria. Alguns amigos, estimulavam-me. "Dá-lhe gás, meu". Perante o divisionismo daquela representação da sociedade, só tinha uma solução. Fazer uma governação musculada da música. Tipo Sócrates. Sem despedimentos, mas uma gestão forte. Deixei de olhar para a pista e fiz uma viagem musical por aquilo que me pareceu melhor. Foi gratificante porque teve os seus apoiantes. Alguns resistentes chegaram ao fim. Eram sem dúvida os melhores. Na sua maioria, também os mais entornados, como sempre. Os outros já lá não estavam. Eram seis horas da matina e já se tinham pirado. Uuhff. Mas aquela frase “não tens aquela…?” ainda se mantinha em loop na minha cabeça. Para a próxima vou exigir um palanque inacessível, rodeado de vidro, com pouca luz, com código de acesso na porta. E segurança. Esta coisa de lidar com o povo é obra. As conclusões foram pouco animadoras. Fiquei a desconfiar da democracia participativa. É verdade. Há noites em que se não pode sair de casa. Bom ano.

Ilustração de Ivone Ralha


NO MESMO SÍTIO

Ambiente de casa, de cafés, de bairro
que vejo e por onde ando; anos e anos.

Criei-te em alegria e em mágoas:
com tantos acontecimentos, com tantas coisas.

E inteiro tornaste-te sentimento, para mim.


Konstandinos Kavafis, ‘Os Poemas’
Trad. J.M.Magalhães
e Nikos Pratsinis
Relógio D’Água