quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Pratinho de Couratos

“Os Gordiços”

Três coisas caracterizam um país subdesenvolvido: a paixão pelo futebol, um prémio Nobel da literatura e uma carga religiosa excessiva. Portugal tem finalmente, no seu percurso histórico, estes atributos que o colocam, sem equívocos, num lugar entre as nações. Já não somos o terreiro dos mata-mouros, o quintal dos ingleses, o porto de passagem da riqueza, o ponto de fuga da nobreza para o Brasil, a chacota da Europa, o quarto de dormir do Dr. Salazar, o tolo irmão que faz revoluções com cravos, os construtores de auto-estradas pagas pelos amigos europeus, os da recessão airada que lavra a retoma com as unhas dos pés. Agora, simplesmente, somos subdesenvolvidos e tudo devemos fazer para conservar esta oportunidade histórica única. Na religião temos os esforçados padres, com o olho para o dinheiro que se lhes reconhece, a prometerem com encontros e congressos em Fátima alimentar a crendice até ao dia do juízo final. O prémio Nobel obedece às marés políticas mas depois de outorgado não é retirado. Resta ao povo acarinhar e regar o futebol como a sua gerbera pessoal.

O futebol é a nossa Pátria! Esqueçamos esses delírios bagaceiros pessoanos da língua como Pátria. Os que nos une é o futebol. Desde o jovem glabro à intonsa velhota todos irmanam pelo esférico. Quem não verteu uma lágrima de comoção perante os cartazes, produto espontâneo de um grupo de amigalhaços montijenses, espalhados na antiga Aldeia Galega: “Montijo com a seleção / Ricardo no coração”? Faltou dois “esses” na palavra “coração”. Não se pode ter tudo. Regozijemo-nos com o que temos. Para o próximo torneio, de certeza, este grupo de confrades, após mais uma das suas regadas almoçaradas, fará melhor.

Outras razões se levantam para protegermos o futebol. Será ele que moldará a futura sociedade portuguesa. Depois da Casa Real ter parado a emissão de títulos nobiliários, através do futebol, os portugueses podem voltar a ter reis e príncipes. Dentro das quatro linhas mágicas forma-se uma nova realeza, pindérica em nobreza e não em riqueza, que restaurou o fausto das velhas cortes com roupas haute couture e acessórios look-chic forrados de diamantes. E deram-nos a melhor parte do jogo: a conferência de imprensa. Lugar mítico que transformou as tertúlias nos cafés em reuniões de jarretas do galão e da torrada mastigada com banalidades literárias. Quem nunca assistiu ao descarregar de opiniões depois de um renhido jogo perde o maior acontecimento cultural do país. O futebol tem um efeito mais comezinho, mas de vital importância, quando os resultados educativos revelam as fracas capacidades intelectuais do povo. Através dele podem criar-se génios com 90, ou menos, de QI.

E as alegrias que nos proporciona são impagáveis. Nós somos católicos de gema, e ver o Ronaldinho madeirense mostrar a dentadura nova para o Altíssimo, sempre que agradece uma dádiva ou pede protecção para cumprir decisiva tarefa, é uma imagem emocionante que ficará cauterizada nos nossos corações valentes. Assim se compreende os sacrifícios dos portugueses pelos heróis de Marienfeld (agora na senda para o Euro2008). Participar de borla em anúncios de Bancos ou empresas de gasolina mostra onde pode ir a devoção. Claro que para um observador exterior esta atitude parece de idiotas comidos pelos criativos da publicidade e marketing, pois os nossos craques para entrarem em anúncios publicitários cobram exorbitâncias. Mas não é! É uma retribuição justa por tudo o que recebemos.

O dinheiro faz milagres. Quanto maior o pote, maior o milagre. Muito dinheiro põe as pessoas agarradas à bandeira de outro país a trautear o hino, prodígio que nem as mais arrasadoras derrotas militares ou exemplares colonizações faziam. Mas também o carcanhol em excesso forneceu critérios objectivos para as mulheres, ou homens que não temem mostrar os seus sentimentos, definirem o sex-appeal de um homem. Para as nossas avós classificarem um homem como interessante era uma carga de trabalhos. Tinham de invocar memórias aprendidas nas novelas românticas ou gostos passados de mãe para filha e acabavam casadas com um emproado bigodaças de monóculo. Hoje basta olhar a conta bancária e o bonito aparece aos órgãos dos sentidos. O proveito material do futebol quantificou, logo objectivou, tornou científica, uma avaliação subjectiva, colocando o conceito de sexy no firmamento das verdades matemáticas. E possibilita que velhas e novas em uníssono se babem por homens que de outra forma não ligariam.

Apesar do escarcéu nas ruas ninguém se lembrou de dar um nome aos nossos craques. Ver os telejornais repetirem “craques” até à exaustão foi muito feio porque se confunde com “traques”. E seria tão fácil encontrar um nome adequado. Nos idos anos sessenta Eusébio & companhia chegaram com 30 contos e o chapéu do polícia inglês. Chamaram-lhes “os magriços”. Os nossos heróis desceram do Boeing, com jactos de água amarela e vermelha regado, com um prémio de 50 mil euros e sacos de griffe para as namoradas. Deviam chamar-lhes “os gordiços”.

Por tudo damos graças a Scolarão e Madaílão. Em sinal de gratidão todos devíamos exigir aumentos dos nossos impostos para que os heróis da Alemanha não paguem. E não ficar por aí. Pedir mais. Muito mais. Queremos mais impostos para isentar os clubes. Queremos mais impostos para construir estádios. Queremos mais impostos para pagarmos as dívidas do totonegócio. Menos ais. Menos ais. Menos ais. E mais impostos. Queremos mais. Não é justo que um Banco pague o ordenado do Scolarão. Como patriotas esse encargo deveria ser nosso.

Táxi Pluvioso

Post de Maturino Galvão, no Pratinho de Couratos

3 comentários:

Anónimo disse...

Li e reli o seu texto, porque é daqueles textos, perante os quais, nunca sei se hei-de rir com a fina ironia que tão profundamente espelha o "país real", ou se hei-de chorar, porque assumo a vergonha de assistir, e nada fazer, por um Portugal que cada vez mais vive no limbo do mundo.
Prefiro, se me permite, perder-me no sonho de Um convite ao voo do Eduardo Galeano:

Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível.

Que me perdoe o Galeano, mas substituirei "...outro mundo possível",por:

...outro Portugal possível.

guida maria

Anónimo disse...

Olá "maria daqui e dali"! Certamente não era de mim que esperarias um comentário, mas o coração às vezes tem destes impulsos. Não o conseguimos controlar e vai daí expomos publicamente os nossos sentimentos, assim como quem se abraça e beija na boca em plena rua! :-)
Olha, quero-te dizer que te acho o máximo. Tu és na verdade um génio na escrita, uma erudita, sempre te achei desde o primeiro dia em começámos a namorar. Lembras-te da tua prosa e dos poemas que me oferecias? Como eu vibrei! Mas tu sabes que eu não sou tanto assim como tu, também escrevo umas coisas mas não chegam ao que tu escreves. Por isso tens essa necessidade destes espaços, para expores, para libertares essa teu lado.
Olha, melhor que ninguém, tu conheces o companheiro que tens e o que também penso deste (nosso) Portugal, e como tal, se me permites, também quero aqui deixar um pouco da imagem do que somos... além do futebol, do fado e da Nossa Senhora de Fátima. Recebe beijinhos doces do teu, Zé Atleta e diverte-te a ler o meu contributo para este nosso "País Real":
Linguagem vernácula de Olhão (Dialecto?)
>
> Nota prévia:
>
> A maioria das situações são fictícias mas os termos empregues
>foram recolhidos no Centro de Saúde de Olhão, sendo o espelho da
>confusão semântica e de vocabulário que tantas vezes existe nas cabeças
>dos nossos utentes...
>
> Por partilharem comigo as suas histórias, os meus
>agradecimentos às funcionárias administrativas Inês Simões e Fernanda
>Veloso, assim como à técnica de cardiopneumologia Sandrina Marto.
>
> 6h da manhã. O Sol já aparecia distinto sobre o azul celeste.
>
> Em torno da porta do Centro de Saúde, um pequeno grupo de
>utentes organizava-se para a marcação da consulta "à vaga". A maioria
>já se conhece. Afinal todos são já bem experimentados nesta forma bem
>própria de utilização da consulta. Aliás, o Director do Centro de Saúde
>até mandou instalar uns banquinhos de jardim no local, para tornar a
>espera mais atractiva. É uma excelente oportunidade para trocar
>experiências e conhecimentos, que todos vão acumulando ao longo do seu
>percurso de contactos com os médicos e hospitais.
>
> A Maria do Céu vai à consulta do "Parlamento", a Dona Gertrudes
>vai à consulta da "Monopausa" e a Rita é que as corrige informando-as
>que aquela consulta chama-se de Planeamento Familiar.
>
> Uma tem um "biombo" no "úbero" e leva os resultados duma
>"fotografia", outra está preocupada com comichões na "serventia" do
>marido, até porque ele, havia poucos dias, tinha já sido consultado
>pelo médico por estar com os "alforges" todos inflamados. Alguém logo
>ali diagnosticou um problema na "aprosta" do marido.
>
> Mais à distância desta conversa, um grupo de senhoras falavam
>dos métodos contraceptivos e, uma delas, peremptória, afirmava que
>nunca aceitaria porem-lhe uma "fateixa" dentro da barriga!
>
> Uma outra discordava, e lá lhe foi dizendo que por causa disso é
>que teve tantos filhos, felizmente todos de parto normal, só o último
>foi de "açoreana", mas aquele que lhe dava mais problemas era o mais
>velho que já era "toxico-correspondente"!
>
> Noutro local, um grupo de homens mais idoso ia falando da
>relação entre o "castrol" e a"atenção".
>
> Às tantas um deles começa a explicação cuidada dum acidente que
>tivera. Por isso é que tinha a vacina contra o "tecto" em dia, mas o
>acidente estragou-lhe a "tibiotísica" e causou-lhe uma hérnia
>"fiscal", pelo que tinha ido fazer uma "fotocópia" e um "traque".
>
> Outro referiu que nunca teve problemas de ossos, o seu problema
>era uma grande "espirrogueira na peitogueira". Uma senhora, atraída
>pela conversa, queixava-se de entupimento no "curso" com dores
>"alucinantes" quando se "abaixava". Além disso cobria-se de suores e
>"gómitos", ficava "almariada" e tudo acabava com uma forte "encacheca",
>ficando cerca de 3 dias com cara de "caveira misteriosa". Alguém lhe
>falou nuns supositórios que a poderiam ajudar mas ela já os conhecia,
>aparentemente tinham sido muito difíceis de engolir, pelo que o melhor
>ainda era o "clistério".
>
> Finalmente, uma outra senhora queixava-se da "úrsula" no
>"estambo", pelo que vinha mostrar o resultado duma "endocuspia" e ainda
>algumas análises especiais, como a Proteína C"Reaccionária".
>
> 8h30mn da manhã. Ainda havia muito para conversar mas a Inês,
>jovem funcionária administrativa do Centro de Saúde, obviamente
>tarefeira, acaba de chegar. Os funcionários administrativos não podem
>chegar atrasados, caso contrário, confundir-se-iam com os doutores.
>
> - Quem é o primeiro, se faz favor? Ora diga lá o seu nome?
> - Josefina Trindade.
> - Idade?
> - 67 anos.
> - Estado . . .?
> - Constipada, muito constipada!
>
> 9h da manhã. Aparece a enfermeira Freitas que grita para a
>pequena multidão barulhenta que cerca a Inês:
>
> - Quem está para medir as tensões? É você? Então entre e diga-me
>qual é o seu problema?
>
> - Sabe, senhora enfermeira, o meu problema é ter uma doença
>"arrendatária" que "arrendei" do meu pai e já me levou uma vez aos
>cuidados "utensílios" do hospital. Afecta-me as "cruzes renais" e por
>isso dá-me muita "humidade à volta do coração". Aliás, o doutor
>pediu-me uma "pilografia" e um "aerograma" que aqui trago e
>recomendou-me beber pouca água.
>
> Finalmente, chega o médico, que logo dá início às consultas:
>
> - Então de que se queixa?
>
> - De uma angina de peito, senhor doutor. Tudo começou há uma
>semana quando fui às urgências. O médico disse-me que era uma angina na
>garganta, mas a angina começou a descer e agora apanha-me o peito todo!
>
> Aos poucos, os utentes iam entrando e saindo, com melhor ou pior
>cara.
>
> Alguns perguntavam à Inês onde era o "pechiché da retrosaria"
>para pagarem a taxa moderadora.
>
> O senhor Batista foi dos utentes que saiu mais zangado da
> consulta.
>
> Permaneceu estoicamente na fila desde as 5h30m da manhã e,
>agora, o médico tinha-lhe dito que o seu atestado para carta de
>condução era com
>outro: o Delegado de Saúde.
>
> Finalmente é chamado pelo Delegado de Saúde para o exame do
>atestado:
>
> - Sr. Batista, faça-me o favor de pôr o dedo no nariz. Não,
>senhor Batista, não é no meu, é no seu nariz!
>
> O utente estava muito nervoso e depois do primeiro falhanço
>achou por bem enterrar o dedo profundamente nas fossas nasais!
>
> O Delegado de Saúde desiste:
>
> - Muito bem, senhor Batista! Fica com a carta com as mesmas
>restrições anteriores.
>
> O Sr.Batista saiu radiante - tinha, pelo menos, mais 2 anos de
>carta para conduzir - e ao passar pelos outros utentes que ainda
>esperavam,
>avisou:
>
> - Espero que estejam constipados, porque só passa quem tiver uns
>bons macacos para tirar do nariz !

Anónimo disse...

Quero aqui deixar o meu pedido de desculpas ao Maturino Galvão, a todos que possam ter lido ou vir a ler este comentário, mas muito especial à Maria Daqui e Dali, que não é vista nem achada e nada tem a ver com o meu comentário.
Na verdade, ao pretender colocar o comentário noutro blog, aberto com o mesmo tema do Pratinho de Couratos "Os Gordiços" (afinal o tema está sempre tão actual), com a pressa e num lapso, acabei por baralhar a "coisa" e deixei o comentário onde não devia.
Hoje pois, ao voltar aqui dei por este monumental erro. Queiram desculpar este mau entendido. Saudações! Zé Atleta