segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Descida ao inferno em quatro actos

Acto III- Inverno, ou a noite mais longa

Sentia-me bem. Como sempre desejei sentir-me. Uma auto-destruição lenta, deliberada, tinha-me tornado finalmente no sonhado marginal, o ser que não é. Desempregado, sem um cêntimo no bolso, devia dinheiro aos poucos amigos que me restavam. Tinha duas hipotecas sobre a casa, e dois dias para sair dela, ordem judicial. A minha família não me queria ver devido ao alcoolismo crónico, a mulher que eu amava fartara-se de mim pelo mesmo motivo. Estava no céu, como só se pode sentir alguém a um passo do céu.
Até que naquele dia conheci Sérgio.
Eram oito da manhã e sentava-me na tasca habitual, arrumando os cacos de mais uma noite a devorar cervejas fiadas. Aquilo que mais gozo me dava nesta ocupação era observar os velhotes daquele sitio inominável a olhar para mim com um misto de inveja e desprezo pela minha condição de bêbado assumidíssimo. Sentia-lhes a amargura da velhice sofrida, a inveja pela minha eterna juventude, já que a morte se adivinhava breve. De vez em quando, lançava um olhar alucinado e zombeteiro, e eles desviavam-se da perspectiva, como se eu representasse um lugar proibido, um sonho antigo e recalcado que os poderia despertar da horrível mas prazenteira sonolência em que vivem, porque tem de se viver de algum modo. Até que surgiu Sérgio.
Quando vi o monstro imponente Sérgio, logo me agradou o ar altivo e ao mesmo tempo algo decadente. É um daqueles seres que imaginamos desprovidos de tempo, sem carne, na medida em que a carne é a inscrição no momento vivo da História; Sérgio não tem nada de História. A sua figura sempre chamava a atenção: muito alto, nariz comprido, pele muito branca, robusto. Veste fora de todas as modas, geralmente umas calças de ganga sem engomar e uns sapatos velhos, embora elegantes. Eis-me perante aquela figura que, devido ou não ao meu estado alcoólico exagerado, me parecia a de um velho general romano derrotado, a viver as penas do exílio deambulando por tabernas decadentes, como aquela, diga-se. Um homem triturado pela vida. Um homem ideal para mim, para quem a vida perdera todo o interesse. Olhei-o nos olhos. Curiosamente, imediatamente me retribuiu, e sentou-se na minha mesa sem trocarmos uma palavra. Pediu dois moscatéis velhos, de uma qualidade divina, que provou com a delicadeza devida a um vinho daquele calibre. Via-se que apreciava vinhos. Após uma pequena pausa, disse-me:
- Jogas xadrez?
Esta entrada em jogo de Sérgio surpreendeu-me deveras; O xadrez era paixão antiga minha. Não conheço outro jogo em que a complexidade das hipóteses, desenvolvida por um hábito de séculos, tenha transformado o simples mover das peças numa complexa ciência, com estratégias várias para a abertura, o meio-jogo e o final, verdadeira miríade de hipóteses que se abatem sobre a nossa escolha próxima, a jogada seguinte. O xadrez é jogo de magos, e os que conheci que o jogam bem, sempre os considerei como tal. Eu próprio, sem falsas modéstias, sou não só aficionado como jogador razoável, dispondo de razoável reportório de aberturas, forte no meio-jogo, embora algo inconstante nos finais, devido talvez ao meu temperamento intempestivo. De modo que aceitei com agrado a proposta, e praticamente sem trocarmos uma palavra começámos um jogo de xadrez. Sérgio jogou, por insistência minha, de brancas.
Após uma calma abertura de peão de dama, passámos rapidamente, por movimentação das negras, a uma bela e complexa variante escandinava da índia de rei, onde o fianchetto do bispo negro tenta compensar através de ataque na ala de dama o maior ganho de espaço das brancas. Até que, ao décimo quarto lance, surgiu Sérgio.
Ao décimo quarto lance Sérgio movimentou a dama de uma forma que eu nunca tinha visto. Mais tarde comprovei tratar-se de uma completa inovação teórica sobre aquela linha da índia de rei. Sérgio, contrariando as hipóteses vigentes, atirou a dama para a coluna A, expondo-se ao ataque repetido das minhas torres, para num passe de mágica levá-la de um lado ao outro do tabuleiro, e após lógica troca de bispos, desferir um ataque implacável ao meu rei. Eu, que jogara várias vezes com grandes-mestres, nunca tinha sentido tal superioridade. Estava perante mim um mago, talvez tivesse passado ao lado de uma carreira no xadrez. Elogiei o seu jogo, ao que ele replicou.
- Um homem como tu deveria jogar melhor de negras; porque és um ser que, antes de tudo, reage, vejo em ti a insatisfação com o que te rodeia, assim deverias reagir contra a mediocridade do jogo óbvio das brancas.
- Será- respondi- tens razão; por isso costumo jogar estas linhas de contra-ataque.
- Enganas-te. O jogo das negras não é o contra-ataque, mas o ataque, porque o seu fundamento é o desafio ao óbvio, que é a vitória lógica das brancas, devido ao movimento adicional de que dispõem.
Depois jogámos mais três jogos. Ao último consegui, finalmente, um esforçado empate, perante o cérebro magnífico de Sérgio, que começava a adquirir para mim contornos de um semi-deus. Eram dez da manhã. Terminámos as hostilidades.
- O que fazes na vida?- perguntei.
- Que queres saber com isso? Talvez as palavras te atraiçoem, e sejam outras as tuas angústias…
- Quero saber em que trabalhas, o que costumas fazer…
- Normalmente- disse Sérgio- costumo inquirir os prédios, as flores, as estradas e os homens sobre qual será o seu destino, mas as respostas são muito complicadas para eles. Daí o meu amor pelo xadrez, onde as soluções são imediatas face aos problemas colocados.
- Não é isso que vejo no xadrez- respondi- mas um jogo que é quase ciência, onde tudo pode ser bela e magnificamente previsto.
- Não estou de acordo. O xadrez tem tantas possibilidades como as de todos os homens vivos, o que o torna incomensurável.Vês este velhote aqui? Vejo nele uma abertura inglesa simétrica, calma e posicional, mas esperando o primeiro movimento em falso para o ataque. Vês o dono da tasca, ali? Contraído, olhando para todos os lados como se esperasse a morte do outro lado da porta, vejo nele uma tempestuosa siciliana, talvez com sacrifício de um peão, onde ambos os contendores procuram vantagens rápidas para o ataque final. Das coisas que aprendi na fábrica, porque trabalho numa fábrica, não sei se te disse, é que toda a maquina do mundo, tal como o xadrez, está enformada de pequenas possibilidades, que são as pequenas decisões onde movimentamos as peças do grande jogo da vida.
- Mas não achas que se pode compreender, mesmo que de modo rudimentar, a essência do jogo?- perguntei.
- Penso que não. Na minha perspectiva, aquilo que fazemos é apenas empurrar umas peças, e se o fizermos na direcção certa, já faremos o suficiente.
- Mas tu- retorqui- para teres uma direcção certa, já precisas dessa sabedoria anterior; e isso é que faz de nós seres racionais, homens, termos um propósito. Eu, por exemplo, embora despreze os propósitos, sei que não deixo de ter o meu. É esse, e não outro, porque incorporo em mim toda uma sabedoria, uma ciência, que me ensina a mover as peças de forma correcta.
- Mas diz-me então, qual será o teu propósito, tu que tens como regra não teres regras?
- Esse mesmo, não ter regra.
- Pois isso é não ter regra nenhuma.
Foi assim que conheci Sérgio como pensador e xadrezista. Mais tarde perguntou-me quem eu era.
- Sou um poeta- respondi.
- E o que fazes aos teus poemas?
- Nada. Esperam pela minha morte, a ver se a humanidade os percebe finalmente.
- Pois eu, tendo esse talento que dizes ter, ocupava a minha vida a oferecer os poemas a quem passasse na rua. Sem critério, sem regras, como dizes…O peão inicial, o primeiro, é o mais belo e complexo. O mais difícil de mover. O dilema do xadrez e da vida é o primeiro passo. O que fazer e porquê? Embora a respostas pareça dada à partida, a verdade é que se pode vencer com o lance mais inverosímil e de aparência disparatada. Tu sabes que é verdade.
- É verdade…
- E isso, parece-me é o que estes tipos da tasca não compreendem, mas que tu, meu André, talvez possas entender; aquilo que o xadrez tem de similar com a vida não é a ciência que neles subjaz, mas a infinitude de possibilidades. Mesmo a jogada que não deveria ser, aquela que nos escapa, esse pode ser o lance vencedor. Por isso o xadrez e vida nunca serão compreensíveis.
- Mas Sérgio- disse- ao colocares as coisas não estarás também a encontrar um sentido nas coisas, o xadrez, a vida, nem que seja a sua incomensurabilidade?
- Penso que não, André. Não se trata da sabedoria, mas de um todo consciente que move as peças do jogo!
- Não estás a falar de Deus, ou de algo do género?
- Não. Estou a falar dos homens.
Foi assim que conheci Sérgio como pregador da humanidade e do humanismo, mesmo quando estes parecem irreconciliáveis. Mais tarde perguntou-me o que me fazia estar ali, junto aos restos da noite como ele.
- É aqui que me sinto bem- respondi- estou sem emprego, sem dinheiro, sem casa e sem mulher, e é por isso que me sinto bem.
- Sentes-te bem como um peão?
- Não!- e esta foi a minha primeira discordância com Sérgio- não sou um peão, porque faço o meu próprio destino, estou-me nas tintas para o dos outros. Muitos de nós quando nos julgamos peões somos reis, e quando nos julgamos reis, peões!
Foi assim que conheci Sérgio como pregador da humanidade e do humanismo, como grande pensador e xadrezista, sem dúvida demasiado moralista, mas o mais belo homem que até hoje conheci.
Continuei a encontrá-lo muitas vezes, até que um dia deixei de o ver. Nem sei se foi ele ou eu que nos cansámos daquela tasca das manhãs, onde eu, o peão anarquista, e Sérgio, o rei humanista, tantas vezes nos esquecemos da vida no nosso amado xadrez. O que sei, é que depois de Sérgio, não fui mais o mesmo.
Sérgio mudou-me e ao meu xadrez. Ensinou-me o magnífico poder da intuição, o obscuro demónio do improviso. Se ainda acredito, devo-lhe. A minha vida.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bonito, mas demasiado trágico para o meu gosto.
Estou a precisar de umas teóricas. Vai uma partidinha de xadrez?

Anónimo disse...

Olá André!
Gostaria de conhecer esse Sérgio... ou tantos outros que por aí "andam"... só
para uma partidinha de xadrez!!!
Abraço do Fróis.