Ontem acordei e estava morto. Percebi que estava morto porque durante a noite tive alucinações devido à febre, e recordo-me bem de um momento em que gritei por um “Sérgio” e ele estava ou ao meu lado como cabeça decepada em cima da mesa-de-cabeceira, ou atrás de mim naquela frincha da janela que deixa entrar a luz. Como entrar ou escapar a luz são a mesma coisa dependendo da perspectiva, posso hoje dizer que o Sérgio estava no ponto onde a luz se escapa, que era onde a minha cabeça decepada em ponto rebuçado-Sérgio trocava olhares com a luz infinto-manhã. Não vos conseguirei explicar este sentimento EXACTAMENTE por palavras, o que se compreende, não serei eu a conseguir explicar a morte através das palavras (embora muito boa gente pense conseguir escapar dela dessa forma, o que, como compreendi nessa manhã-noite, é mais ou menos uma ilusão. Explicarei mais tarde. O encadeamento é importante, o mais importante na presença da morte.)
Acordei, vesti-me, olhei-me ao espelho, cruzei-me com a assombração-Sérgio. Tinha a figura de alguém que eu conheci há muito, muito tempo atrás, e que mora na casa ao lado da minha. Disse-me:
- Não foste à fábrica?
A assombração tem os seus modos de se fazer entender. Digamos que simbólicos. O que ela queria dizer, e só o sei explicar hoje, era que nessa fábrica onde nunca estive, quando tocou a buzina de entrada, um capataz em forma de Sérgio-forma-do-meu-ex-amigo, UM CAPATAZ sentiu a minha falta e tomado de um orgulho de capataz, esse orgulho de ver as máquinas a trabalhar que não é mais que a maior forma de auto-comiseração inventada por debaixo do tecto do universo, gritou de modo a que mesmo o mais belo, o mais puro dos operários, ou seja, aquele que ainda não era bem um operário, não tivesse maneira de deixar de ouvir esse berro horrível, que talvez ainda hoje esteja cravado na sua memória, e de tempos a tempos se liberte das gavetas arrumadinhas pela ordenação a que os neurónios se obrigam a si próprios quando tem de suportar o insuportável peso da alma, ele gritou:
-Mas não há nenhum dia que este gajo chegue a horas? Este cabrão já devia estar a trabalhar há UM MINUTO!
(O minuto, como sabem, é a categoria fundamental da vida do capataz.)
Acordei, vesti-me, olhei-me ao espelho, cruzei-me com a assombração-Sérgio. Tinha a figura de alguém que eu conheci há muito, muito tempo atrás, e que mora na casa ao lado da minha. Disse-me:
- Não foste à fábrica?
A assombração tem os seus modos de se fazer entender. Digamos que simbólicos. O que ela queria dizer, e só o sei explicar hoje, era que nessa fábrica onde nunca estive, quando tocou a buzina de entrada, um capataz em forma de Sérgio-forma-do-meu-ex-amigo, UM CAPATAZ sentiu a minha falta e tomado de um orgulho de capataz, esse orgulho de ver as máquinas a trabalhar que não é mais que a maior forma de auto-comiseração inventada por debaixo do tecto do universo, gritou de modo a que mesmo o mais belo, o mais puro dos operários, ou seja, aquele que ainda não era bem um operário, não tivesse maneira de deixar de ouvir esse berro horrível, que talvez ainda hoje esteja cravado na sua memória, e de tempos a tempos se liberte das gavetas arrumadinhas pela ordenação a que os neurónios se obrigam a si próprios quando tem de suportar o insuportável peso da alma, ele gritou:
-Mas não há nenhum dia que este gajo chegue a horas? Este cabrão já devia estar a trabalhar há UM MINUTO!
(O minuto, como sabem, é a categoria fundamental da vida do capataz.)
Passei o rio como um sonho. Ainda hoje pouco me lembro. Acordei com a imagem de uma mulher. Pedi-lhe lume. Ela abriu-se num sorriso. Deu-me lume a sorrir. Agradeci-lhe. Ela guardou o isqueiro a sorrir. Pensei por momentos que tinha um rosto muito semelhante ao da minha mãe, mas rapidamente compreendi que esse rosto era o de uma certa mulher que amei, mas que nunca me correspondeu. Ela desapareceu rapidamente, como sempre desaparecem esse tipo de mulheres.
Havia muitos rostos, mas nenhum tinha forma, eram como projectos de rostos, em que só via traços catalogáveis, este era um nariz aquilino com lábios carnudos, aquele uns olhos azuis com maçãs-do-rosto muito vermelhinhas, ali um rosto negro, lábios grossos, resolutos, aqui um finlandês muito, muito delicado. Todos se confundiam, e confundiram-me tanto que os deixei de ver, ou antes, passei a vê-los todos como um só rosto. A questão a que me dediquei nas horas seguintes, que me ocupou todos os momentos dessa viagem, e me consumiu uma, e outra, e outra vez, essa questão que julguei irresolúvel cem vezes, e que cem vezes julguei óbvia, que não resolvi e ainda hoje me interroga, é QUE ROSTO ERA ESSE? Seria o rosto de Sérgio? O rosto da mulher, o meu próprio rosto, haverá no fundo algum rosto para lá da categorização? Ainda hoje não sei responder com exactidão, embora, depois deste caminho, tenha alguns palpites (e aquilo que de mais importante aprendi, nesta viagem para o inferno, é que nada há para além de palpites) sobre essa questão. O que me parece depois de tudo isto, é que só existem dois rostos; e que o meu é uma síntese de ambos. Um deles identifico-o com clareza como o rosto dos Sérgios, o rosto do demónio-anjo, aquele que me ensinou tudo sobre o saber mais importante, o saber a morte; o outro, é indefinível, talvez seja uma projecção, talvez uma ideia, o que é certo é que nunca o consegui ver ou sequer vislumbrar. Talvez esse rosto a que um dia chamei Amor nunca tenha existido realmente. Mas ainda hoje não tenho certezas quanto a estas questões. Aprendi muitas coisas nesta viagem, mas o mais importante que aprendi é que há coisas para as quais não há respostas.
Após algumas horas de pura inércia, em que me deixei invadir pelos sonhos das pessoas que me rodeavam, era altura de me por ao caminho. Segui os passos dos outros mais próximos, todos seguimos os passos uns dos outros, cada vez mais o que eu via eram seres iguais a seguirem-se uns aos outros e a si próprios, e de repente era toda uma multidão que me acompanhava, e todos me acolhiam, me confortavam, todos procuravam nas palavras a síntese, como se nenhum pudesse verdadeiramente ser ou diferenciar-se do outro, como se nenhum de nós verdadeiramente fosse.
Um obstáculo surgiu no caminho. O mais forte disse:
Havia muitos rostos, mas nenhum tinha forma, eram como projectos de rostos, em que só via traços catalogáveis, este era um nariz aquilino com lábios carnudos, aquele uns olhos azuis com maçãs-do-rosto muito vermelhinhas, ali um rosto negro, lábios grossos, resolutos, aqui um finlandês muito, muito delicado. Todos se confundiam, e confundiram-me tanto que os deixei de ver, ou antes, passei a vê-los todos como um só rosto. A questão a que me dediquei nas horas seguintes, que me ocupou todos os momentos dessa viagem, e me consumiu uma, e outra, e outra vez, essa questão que julguei irresolúvel cem vezes, e que cem vezes julguei óbvia, que não resolvi e ainda hoje me interroga, é QUE ROSTO ERA ESSE? Seria o rosto de Sérgio? O rosto da mulher, o meu próprio rosto, haverá no fundo algum rosto para lá da categorização? Ainda hoje não sei responder com exactidão, embora, depois deste caminho, tenha alguns palpites (e aquilo que de mais importante aprendi, nesta viagem para o inferno, é que nada há para além de palpites) sobre essa questão. O que me parece depois de tudo isto, é que só existem dois rostos; e que o meu é uma síntese de ambos. Um deles identifico-o com clareza como o rosto dos Sérgios, o rosto do demónio-anjo, aquele que me ensinou tudo sobre o saber mais importante, o saber a morte; o outro, é indefinível, talvez seja uma projecção, talvez uma ideia, o que é certo é que nunca o consegui ver ou sequer vislumbrar. Talvez esse rosto a que um dia chamei Amor nunca tenha existido realmente. Mas ainda hoje não tenho certezas quanto a estas questões. Aprendi muitas coisas nesta viagem, mas o mais importante que aprendi é que há coisas para as quais não há respostas.
Após algumas horas de pura inércia, em que me deixei invadir pelos sonhos das pessoas que me rodeavam, era altura de me por ao caminho. Segui os passos dos outros mais próximos, todos seguimos os passos uns dos outros, cada vez mais o que eu via eram seres iguais a seguirem-se uns aos outros e a si próprios, e de repente era toda uma multidão que me acompanhava, e todos me acolhiam, me confortavam, todos procuravam nas palavras a síntese, como se nenhum pudesse verdadeiramente ser ou diferenciar-se do outro, como se nenhum de nós verdadeiramente fosse.
Um obstáculo surgiu no caminho. O mais forte disse:
-TODOS JUNTOS removeremos este obstáculo!
Os quatro ou cinco mais fortes juntaram-se a ele e removeram o obstáculo.
Os quatro ou cinco mais fortes juntaram-se a ele e removeram o obstáculo.

1 comentário:
Grande e rico sonho!! Aptece andar por ele a conhecê-lo.
Posso continuar a sonhá-lo?
abraço Kamba
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