sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Descida ao inferno em quatro actos

Acto II- Outono
Nesse dia sabia, mais do que em qualquer outro, o significado da viagem.
Nesse dia sabia, mais do que em qualquer outro, porque tinha de partir. Por causa de um rosto. Não. Por causa de uma falha no meu próprio rosto. Por causa do meu sinal no sovaco, da minha verruga nas pernas, dos meus olhos castanhos, do meu cabelo ondulado, Não. Por causa dela. Não. Por causa da imagem. Eu fiz dela uma imagem.
Parti.
Era o único comboio. Não haveria outro. Era necessário chegar a horas. Como sempre, atrasei-me.
Mas consegui, à custa de correr quilómetros, de correr durante anos, décadas, uma vida inteira, e sobretudo de me atirar para o comboio em andamento, de me equilibrar estupidamente no comboio em andamento, consegui. Trepei gloriosamente para o comboio em andamento, senti-me um rei. Limpei o suor e arrastei-me para a carruagem. Estava estranhamente vazia. Só tinha quatro passageiros: uma família muito fora do normal composta por um velho bêbado (branco), uma mulher jovem (branca) e um rapaz (negro). E um jovem como eu, cujo olhar mais sedutor eu nunca vira. Senti de tal maneira o magnetismo desse olhar que embora toda a carruagem estivesse vazia, e a minha viagem fosse uma viagem interior, sentei-me ao lado desse estranho.
-Olá, como te chamas?
-Chamo-me Sérgio.
-E o que fazes por aqui?
-Estou a fazer de cão-de-guarda, que é aquilo para o que nasci. Do teu cão-de-guarda. Estes coitados aqui ao lado, servem para te fazer rir.
Ao meu lado, o Sr. Zé dizia “este miúdo, fui buscá-lo a Cabo Verde. Não serve para nada. Só para me dar despesa e preocupações. Mas eu, com toda a minha pena e a minha paixão, como poderia deixá-lo lá. Não é CABO-VERDIANO?”
O Cabo-Verdiano (não teria mais do que 10 anos) olhava-o com aquele olhar que só se vê em homens que são enforcados pelas suas convicções.
A mulher do Sr. Zé fingia e fingia e fingia. Adorar o Sr. Zé e o Cabo-Verdiano. E a Virgem Maria. Mas não disse nada, pelo menos por agora.
(Os olhos do Sérgio faziam-me lembrar uns que eu tinha conhecido há muitos, muitos anos, talvez muitas, muitas décadas. Eram de um tom castanho-purpúra e não sei se me faziam lembrar os de uma enfermeira que me coseu a cabeça enquanto eu chorava horrivelmente aos três anos, ou os de uma mulher que eu sabia que tinha visto uma vez, mas não onde. De qualquer maneira, eram olhos de mulher- o que não era normal num homem com traços tão masculinos como era o Sérgio).
Ele perguntou-me:
-E o que lá vais fazer?
-Nada.
-Tens então que comprar uma garrafa na próxima paragem e confiar-me os teus segredos.
Na paragem seguinte comprei não uma, mas três garrafas. Uma para o Sr. Zé, as outras duas para mim. Senti-me de tal maneira cativado pelo Sérgio que achei que uma só garrafa não seria suficiente para lhe contar todos os meus segredos. Contudo, ele advertiu-me:
-Tem cuidado com os segredos, demasiados segredos são delírios.
(O Sr. Zé começou a rodopiar em volta de si próprio, urrando como um doido em modo de besta, e a salivar da boca e dos olhos, dizia “Sou o Sr. Zé, o bêbado da aldeia, sou o Sr. Zé, E SAIO NA PRÓXIMA PARAGEM”, mas eu não lhe prestava atenção, tal como não prestei atenção ao que diziam a mulher do Sr. Zé e o Cabo-Verdiano, de tal maneira me fixavam os olhos de Sérgio, mas hoje, depois de tudo o que passei, lembro fragmentos dessas palavras ditas por baixo dos horríveis urros do Sr. Zé, fragmentos que se transformaram em verdades, ou na Verdade devido ao meu pobre entendimento.
A mulher do Sr. Zé:
-Se este homem te parece assim, talvez este homem seja assado, este homem fez por mim o que eu não faria por mim, este homem nunca me bateu, e ter que o arrastar para casa, e ter que o arrastar para a cama, uma casa que nunca existiu, uma cama que nunca existiu, foi sempre pena menor que não ter ninguém que arrastar, sempre quis um homem que pudesse amar, e este homem, embora não o ame, é o que mais se aproximou, nunca houve nenhum outro, É O MEU HOMEM, e outras há que não o têm, embora não saibam sofrer, também não sabem viver, PELO MENOS este homem adoptou o Cabo-Verdiano para nos herdar a minha frustração e o seu ódio.
O Cabo-Verdiano:
-Há muitas vidas. A diferença entre a minha e a tua, é que eu sei que não a escolhi. Pai, vamos para casa.)
Como nesse momento ignorei estas palavras, de tal maneira estava fixado no meu próprio ego, nas minhas próprias dúvidas, achei por bem contar os meus segredos ao Sérgio:
-Nesse dia sabia, mais do que em qualquer outro, porque tinha de partir. Por causa de um rosto. Não. Por causa de uma falha no meu próprio rosto. Por causa do meu sinal no sovaco, da minha verruga nas pernas, dos meus olhos castanhos, do meu cabelo ondulado, Não. Por causa dela. Não. Por causa da imagem. Eu fiz dela uma imagem.
Mas o Sérgio interrompeu-me:
-Eu também saio na próxima paragem. Perdoa-me, mas ainda és muito jovem. Prefiro acompanhar esta família patética. Nunca menosprezes aqueles que te parecem patéticos. Ver-nos-emos quando chegares ao teu destino, embora ele ainda esteja muito longe. Vê bem: disse-te para comprares uma garrafa e tu compraste três…
Dizendo isto, surpreendentemente, desapareceram todos: o Sérgio e família patética. Fiquei sozinho na carruagem, e continuei durante horas, dias, décadas, esperando o fim da viagem para poder compreender o significado de todos aqueles momentos.

Sem comentários: