terça-feira, 17 de outubro de 2006

A falácia, parte 2

Aquilo que é espantoso (ou talvez não) na resposta do João Miranda ao meu post "O capitalismo funciona" é a incapacidade (num pró-capitalista, ou neo-liberal, ou o que o queiramos chamar) em compreender o próprio capitalismo (aliás, já percebida neste post anterior). O João Miranda pretende que nos paises sub-densenvolvidos, p. ex. na África subsariana (e dá exemplos interessantes: Serra Leoa, Niger, Congo Kinshasa, Zâmbia ou Etiópia; e porque não a Nigéria ou Angola, supostamente os países mais ricos de África?) não existe capitalismo. Para JM o capitalismo só existe nos países onde gerou abundância (i.e., o mundo ocidental, as economias emergentes; e isto também devia ser discutido, o que é, e para quem existe essa suposta abundância) em todos os outros sítios, onde grassa a miséria mais extrema, isso acontece porque o capitalismo ainda não chegou lá. Aqui está mais uma falácia, e das mais grosseiras. Qual é o sistema, então? O pré-capitalismo? O alter-capitalismo?
Duvido que JM algum dia perceba isto, mas o sistema que existe no Niger, no Congo Kinshasa ou na Nigéria é exactamente o mesmo que ele idolatra: o capitalismo. Evidentemente, não é o capitalismo que ele conhece; nem esse capitalismo que ele conhece poderia existir sem o capitalismo do Congo Kinshasa ou do Niger. Nesses países o que existe é exactamente o capitalismo rapinante (sem aspas): a grande maioria das matérias-primas que fazem o telemóvel de JM, o PC de JM, o DVD de JM, o LCD de JM, são extraídas a preço da batata nesses países, com quase nenhum proveito para as populações locais (as tais que passam fome), migalhas para os poderes locais (sempre, sempre amigos do "mundo livre"- nota-se que que não estou a falar de Cuba, da Venezuela ou do Irão), e lucro chorudo para as empresas que as exploram (que usam métodos legítimos, "capitalistas", como o FMI, chantagem económica do governo americano, corrupção em altas esferas dos estados, etc.). Digamos que o que se passa, por exemplo, na Zâmbia, o maior produtor mundial de cobalto, se possa designar por um estádio inicial do capitalismo, aquele onde vamos buscar o cobalto, para depois o transformarmos no fantástico "mundo livre" em «cerâmica, vidraria, fabrico de esmaltes (sua mais antiga aplicação), no fabrico de numerosas ligas, de aços especiais, na preparação de sais para a agricultura e na cobaltagem» e como «catalisador muito utilizado na indústria petrolífera para a hidrodessulfuração e reforming de petróleos».
JM, como liberal intoxicado de ideologia, é incapaz de perceber que o poder precede a economia. Passa-lhe completamente ao lado a transformação do capitalismo colonial em capitalismo global. Não entende que as razões da abundância são as mesmas da miséria. Que o seu LCD é baratinho devido à fome na Zâmbia.

P.S: Quanto à histeria sobre números, ver o meu comentário ao post em questão.

P.S2: Aproveitando, leituras recomendadas: "Império" de Michael Hardt e Antonio Negri e "Mil Planaltos" de Gilles Deleuze e Felix Guattari.

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