Olá,
Todas as semanas recebo na minha caixa de correio aqui na Capital do Império cartas a pedirem-me dinheiro. Ao princípio eu até gostava pois as cartas afirmam sempre que eu sou um gajo porreiríssimo e além disso faziam-se sentir como um tipo cheio de responsabilidades para curar os males do mundo.
Agora já fico chateado e algumas das cartas vão para o arquivo permanente da lixeira sem sequer as abrir. Para além de não ter “massa” para agradar a todos os pedintes e para resolver todos os problemas do mundo algumas dessas cartas chateiam-me. Para me fazerem sentir obrigado a doar qualquer coisa enviam com os seus pedidos uns pequenos auto colantes com o meu nome e morada para serem colocadas nas cartas que eu envio, um espécie de recompensa pela minha doação que eles estão certos eu vou enviar e para me fazerem sentir culpado se eu nada enviar.
Tenho uma gaveta a abarrotar desses autocolantes das mais diversas formas e cores. Agora que se aproxima o Natal já sei que alguns desses “pedintes” me vão enviar uns cartões de boas festas pedindo em troca alguns dólares. Tenho uma outra gaveta cheia de cartões de boas festas das mais diversas organizações que tenho acumulado ao longo dos anos e que devem ser suficiente para enviar a todos os amigos e família até morrer .
Tenho a dizer que às vezes me sinto culpado de receber todo esse material que os pedintes me mandam e nada enviar em troca e de vez em quando lá mando um cheque de uns poucos dólares. Isto acontece geralmente na época do Natal quando uma dessas organizações me manda um bloco de notas ou auto colantes ou calendários a pedir em troca uns dólares para ajudar para uma ceia de natal para órfãos, ou bêbados/ drogados/ doidos (a que hoje se chamam higienicamente “sem casa”), soldados estropiados nas guerras imperiais através do mundo ou policias paralisados em defesa da lei, incluindo claro está o direito ao porte de arma. No meio do louco festim de consumo que é aqui o Natal sinto-me culpado e meto cinco dólares no correio embora já saiba que isso vá resultar em mais pedidos.
Isto porque aqui nos “states” a troca e venda de informação pessoal é um negócio enorme. Essas organizações de caridade trocam ou vendem bancos de dados com os nomes dos seus doadores o que resulta em que outras organizações de imediato comecem a assediar-me com mais pedidos. É um negócio enorme envolvendo também instituições de credito e bancos.
Em frente de mim neste momento tenho pedidos de doação da Fundação Nacional dos Veteranos da América, do Fundo para a Construção de um Monumento Nacional aos Agentes da Lei, dos “artistas de Pintura com pés e mãos”, do Centro de Cancro Sloan-Kettering, ainda outro da Fundação da Ordem Militar Purple Heart e outro de uma organização chamada USO que quer 10 dólares para “dar um obrigado a cada soldado no estrangeiro e mostrar que os americanos em casa estão-lhes agradecidos”. Tenho também um pedido de “massa” de organizações mais conhecidas como a Médicos Sem Fronteiras e outro da Cruz Vermelha (que pede também sangue embora não especifique se isso pode ser enviado pelo correio).
Há que explicar que todos estes pedidos de “massa” são perfeitamente legais. Nenhuma dessas organizações é uma fraude. Todas estão registadas.
Há também que dizer que os americanos dão muita massa. Em 2005 os americanos doaram um total de 260 mil e 280 milhões de dólares. Os cidadãos americanos por exemplo deram mais dinheiro para a vitimas do Tsunami na Indonésia que o seu governo.
Do total das doações de 2005 (os 260 mil milhões de dólares) 76,5 % foram dados individualmente pelos americanos, 11,5% por fundações, 5,3% por companhias privadas e 6,7% como parte de testamentos.
“Doar à comunidade” como repetem em refrão os americanos, é algo que está profundamente enraizado no seu psíquico cultural E não só para a caridade. Universidades chateiam anualmente os seus antigos alunos a pedir dinheiro e recebem anualmente dezenas de milhões de dólares em doações dos mesmos e de milionários, o mesmo acontecendo com centros de investigação e museus. São as dezenas os museus através deste país que existem graças a doações de cidadãos privados, milionários e não só. O Museu George Washington aqui na Capital do Império abriu esta semana uma nova ala graças a doações privadas de milhões de dólares.
George Behrakis deu o ano passado mais de 10 milhões de dólares a um museu de arte de Boston o que eleva para 25 milhões a massa que ele já doou ao tal museu. Quem é Behrakis? O museu disse –me que “é um ‘very nice gentleman’ ligado à indústria farmacêutica”. Deve ser…e deve gostar do Museum of Fine Arts de Boston. Mas Behrakis não é único. No total as artes e cultura receberam o ano passado doações no valor de 13 mil e 500 milhões de dólares.
Craig Mello que venceu o último prémio Nobel da Medicina fez as suas investigações graças em grande parte a uma doação de três milhões de dólares de um casal de milionários. No total a saúde recebeu doações o ano passado no valor de 22 mil e 500 milhões de dólares
Ted Turner, o fundador da CNN deu mil milhões, (um Bilião como eles dizem) à ONU e organizações a ela ligadas. O multimilionário Warren Buffet recentemente fez cabeçalho dos jornais durante dias ao anunciar que tinha decidido doar 30 (trinta!!) mil milhões de dólares à Fundação Bill e Melinda Gates ( que como o nome indica existe com base na doação desses dois milionários e que doa mais dinheiro para saude no terceiro mundo que … .a Organização Mundial de Saúde). Toda a malta aplaudiu a decisão do Buffet mas eu fiquei com pena dos seus dois filhos que não devem ter achado piada nenhuma à extravagância do velho.
Grandes companhias americanas com efeito financiam museus, programas de televisão e têm fundos de caridade. A Givin USA disse que em 2005 companhias privadas doaram um total de 13 mil e 600 milhões de dólares. Isso aumenta se se tiver em conta que algumas das grandes companhias americanas têm fundações que contribuem com doações.
Tudo isto é o contrario daquilo que irritava Hannah Arendt quando falava da “riqueza sem função visível” mas para mim o notável nisto é que a grande percentagem (76,5%) é doada pelos cidadãos privados, milionários e não só.
Não sei de onde vem essa tradição bem americana mas sei que está profundamente enraizada e não deixa de espantar muitos que aqui chegam entre eles o filósofo?) /jornalista (?) Bernard Henri Levy. Numa entrevista a uma estação de televisão o homem estava totalmente abismado com o facto de o Texas ser o estado que com grande apoio popular mais gente põe na cadeira eléctrica e ter sido o estado que mais ajuda doou às vitimas do Katrina. Realmente …é de espantar!
Uma tradição talvez ligada a esta veia filantrópica dos americanos e que ao principio me pasmava é o facto de que quando um membro da família de um colega de trabalho morre a primeira coisa que os americanos fazem é fazer uma colecta de “massa”. Revela talvez o sentido dos americanos de quererem ter uma solução para tudo e como não podem resolver a morte pois … vamos atenuá-la com dinheiro. Um dia cheguei ao serviço e e fui abordado por um colega americano que me disse: “Morreu a mulher do fulano tal. Quanto é que queres dar?” Estive quase a perguntar se era para ajudar para uma festa de celebração mas ainda bem que não o fiz pois com o tempo apercebi-me que (pelo menos em principio, embora não haja garantias) não é para isso.
Há que dizer que como tudo na América a filantropia ( ou pelo menos parte dela) tem o seu aspecto financeiro que beneficia o doador. Aqui tudo é negócio …
Todas as doações para instituições de caridade, de estudo, científicas e museus são deduzíveis nos impostos pelo que quando chega o fim do ano aumentam os pedidos e as doações. Automóveis a cair de podre, roupa velha, tudo é doado e depois deduzido nos impostos. Para os americanos é aquilo que eles chamam de uma “win/win situation” ou seja ganham todos. Os americanos preferem dar à caridade, aos museus, à investigação, às universidades do que pagar impostos. Mas pelo que já me apercebi o governo não se importa e até incentiva isso. Deve ser por querer assim é menos gente a pedinchar na assistência pública, no ministério da educação, saúde etc.
Para além disso os americanos estão profundamente convencidos da sua própria benevolência e esta tradição reforça esse sentimento.
Quanto a mim já me decidi: vou dar cinco dólares à Médicos Sem Fronteira: Os autocolantes são giros….
Um abraço,
Da capital do Império,
Jota Esse Erre
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