segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

O Sim e as sopas

Há uma certa franja de potenciais eleitores no Sim que afirma ir-se abster, ou até votar Não, por motivos, a meu ver, irrelevantes, confusos e acessórios. Como exemplos conhecidos, o Rui Albuquerque ou o João Caetano Dias. São a favor da despenalização da prática do aborto, mas como são contra o Serviço Nacional de Saúde, preferindo soluções privadas, recusam a ideia de estar a votar num aumento de despesas do SNS, ou na mesmo na realização de uma prática tão controversa como esta gratuitamente. Em resumo, despenalização sim, desde que a mulher pague o aborto. Vejamos com atenção estes argumentos:
Em primeiro lugar, o argumento é irrelevante. Estamos a votar a despenalização de um acto, por vontade da mulher, dentro de um limite de tempo. Se os citados são, lactu sensu, defensores de um modelo diferente na saúde, devem, por outro lado, compreender que o modelo que existe é este, e que, sendo assim, os diversos actos médicos são praticados dentro do modelo existente. Sendo o aborto, se o Sim ganhar, um acto médico progressivamente normalizado, será praticado dentro do quadro que exista; se as opções políticas no futuro forem no sentido da privatização, pois evidentemente também a prática do aborto o será.
Em segundo lugar, o argumento é confuso, pois como já demonstrou o Manuel, a legalização não irá aumentar as despesas do SNS, pelo contrário, irá diminui-las. Já li dos citados outro argumento, que será o de que a mulher quando aborta não está doente, e que uma coisa é pagar as doenças, outra as decisões livres. Mas a mulher quando engravida de sua vontade, e faz um parto, também não está doente, e todos nós pagamos as despesas de um acto que depende da sua vontade. E não me parece que passe pela cabeça de ninguém (pelo menos para já), que o parto seja um acto “não-médico”, como querem fazer crer que o aborto seja.
Em terceiro lugar, o argumento é acessório. Por exemplo, eu, que sou acerrimamente defensor de um sistema de saúde universal e gratuito, votaria Sim sem qualquer dúvida mesmo que o modelo proposto fosse o de apenas poder ser praticado em clínicas privadas. Porque mais importante que a forma é o conteúdo, e mais importante que questões como “quem paga” é a possibilidade de livre escolha da mulher e o combate ao aborto clandestino. Poder-se-ia argumentar que a minha posição é mais fácil, uma vez que os indícios disponíveis (e atenção, para já são apenas indícios), apontam no sentido da sua inclusão no SNS; mas essa apreciação será viciada por perspectivas ideologicamente muito diferentes do mundo. Para os citados, vivemos num sistema semi-socialista, enquanto eu, muito sinceramente, não vejo socialismo nenhum. Aliás, quanto ao SNS, o que vejo é uma tendência crescente de privatização e redução da gratuitidade, através dos hospitais-empresa ou do aumento das taxas moderadoras. Também eu poderia, pela mesma lógica, abster-me por considerar que a lógica do sistema é a privatização; mas isso é tomar o acessório pelo essencial, e esta é uma questão de liberdade e civilização e outra de saúde pública.
Resta o problema de um acto controverso ser pago por quem não concorda com ele, e não apenas por quem o faz. Mas esta, mais uma vez, é uma questão de princípio que pouco toca a realidade. Eu também não concordo com muito do uso que se faz do dinheiro dos meus impostos, por exemplo comprar submarinos. Mas, como defendo que o Estado deve assegurar determinados serviços aos cidadãos, mantenho que mesmo assim os impostos são justificados. Os citados defendem outro modelo, em que os cidadão pagariam os serviços directamente. Tem o direito de o fazer, e de defender as suas posições; mas devem concordar que o que está aqui em jogo não são modelos de sociedade, mas a resposta a uma questão concreta.
Nunca será de-mais repetir que no dia 11 iremos responder apenas a uma pergunta: se concordamos com a despenalização da IVG, por vontade da mulher, até às dez semanas, se realizada num estabelecimento de saúde. Todas as outras conjecturas, embora legítimas e importantes, não devem sobrepor-se a esta questão essencial.

3 comentários:

jcd disse...

André

Claramente, não compreendeste os meus argumentos nem os do Rui.

O que está em causa, mais do que quanto custa ao estado a situação actual e a opção pelo SNS, é a relação entre liberdade e responsabilidade.

Se se entende que não deve haver penalização pelo aborto, dentro de um prazo razoável após o conhecimento do estado de gravidez, também se entende que cabe às mulheres que optam as consequências dessa opção, seja ela ter o filho ou não ter.

Toda e qualquer opção individual de qualquer indivíduo deve ser tomada tendo em conta que ele e só ele deve ser responsabilizado pelas consequências. Ninguém deve ter o direito de impôr aos outros as consequências, custos ou externalidades negativas das suas opções.

Como o aborto não é uma doença, a gravidez nasce de um acto voluntário e a IVG é também consequência de opções individuais das mulheres, é a elas e a quem estiver disposto a partilhar com elas, voluntariamente, que deve ser imputada a responsabilidade da decisão.

O estado não deve servir para apoiar ou desapoiar atitudes ou escolhas. Assim como não deve penalizar, também não deve ajudar. Pede-se, simplesmente, que legisle e saia do caminho.

Algumas comparações que têm sido feitas com o cancro ou com os acidentes automóveis são absurdas. Não estamos a falar de doenças (ninguém quer ter cancros, mesmo que seja fumador), ninguém quer ter acidentes, mesmo que ande em excesso de velocidade (e o estado nem sequer se responsabiliza pelas consequências dos acidentes).

Evidentemente que a comparação entre abortos e partos também é ridícula. O parto é um momento de elevado risco para a saúde da mãe e do bébé. E as mulheres pagam os partos que fazem através dos descontos que fazem todos os meses pelos seus impostos, porque o estado assim as obriga. Podia haver outras opções, por exemplo, seguros de saúde, contribuições voluntárias, o que quer que seja, mas não havendo opting-out, não se pode pedir a ninguém que pague duas vezes.

Onde o dinheiro pode entrar para as comparações, é apenas na constatação de um facto óbvio. Não tendo o SNS capacidade de resposta para tantas doenças - basta ver as listas de espera (*)- e não dando resposta a tantas necessidades básicas de saúde (por exemplo, a saúde dentária), é intolerável que desvie parte dos seus escassos recursos para alago que estará sempre nos últimos lugares na lista de prioridades. A não ser que se ache que o aborto é mais importante que outras valências do SNS. (Quais?)

Voltando à questão prioritária, um dos problemas das sociedades modernas é a sistemática desresponsabilização dos cidadãos pelo estado, que se impõe e atravessa mesmo quando ninguém lhe pede ajuda.

Hoje, os filhos já não são responsáveis pelos pais, porque o estado nacionalizou a solidariedade intergeracional, um dos maiores contributos para a queda de natalidade nos paises do "Estado Social".

Ninguém se sente responsável pelo futuro, porque o estado é que deve garantir o bem estar de todos. Os pais já não querem saber da educação dos filhos e atiram a responsabilidade para as escolas - que o estado se encarrega de escolher por nós, não só a escola mas também os professores, os programas, tudo. As famílias já não têm nada a ver com o assunto.

Esta atitude indolente perante a vida, é em grande parte responsável pelo arrastamento da sociedade, pela falta de iniciativa individual, pelo sistemático protesto contra o que nos acontece como se a culpa fosse sempre dos outros.

Não estamos a falar de safety nets. Não estamos a falar de ajudar quem necessita. Estamos a falar de impôr o modelo de ajuda nacionalizada a toda a sociedade, não deixando a ninguém a opção de escolher diferente.

O aborto de que estamos a falar, nunca é um caso de saúde. Quanto muito, em alguns casos, será um caso de segurança social.

Se tiver tempo, voltarei a isto, no Blasfémias.

jcd disse...

(*) - Ah, faltava o asterisco.

O meu sogro, esteve recentemente em lista de espera no SNS, por uma operação aos olhos.

Ao fim de 10 meses, já sem poder conduzir, ler legendas na televisão ou ler um jornal, recorreu ao sector privado. Foi operado em 10 dias e pagou do seu bolso.

Aconteceu o mesmo quando tive que operar um filho à garganta. 1 ano de espera no SNS, 2 semanas num hospital privado.

É inaceitável para quem paga o SNS e apesar disso espera e desespera, ver as IVGs passarem à frente na lista de prioridades, numa espécie de Via Verde insultuosa para quem espera pacientemente nas outras filas pela sua vez.

Havendo recursos limitados no SNS, sendo inviável aumentar ainda mais os impostos à escandinava que já se paga, qual é a sugestão que faz para realizar as IVGs no SNS? Em troca de quê?

André Carapinha disse...

jcd:

Ao contrário do que afirmas, o teu comentário mostra-me que compreendi muito bem o tipo de objecções que tu e o Rui partilham nesta questão.

Essas situam-se, em primeiro lugar, a um nivel verdadeiramente filosófico-político: a relação entre liberdade e responsabilidade. Insisto que a vossa objecção tem por base, acima de tudo, a rejeição do Estado Social, e não o problema concreto em questão.

Não percebo como a solução proposta poderá desresponsabilizar a mulher por seja o que for, a menos que se confunda (o que acho que, infelizmente, fazes muitas vezes) "responsabilidade" com "pagar", como se só o custo material do acto abortivo fosse de facto um custo, e não existisse o custo psicológico, o custo social, etc. Tu dizes que « é a elas e a quem estiver disposto a partilhar com elas, voluntariamente, que deve ser imputada a responsabilidade da decisão». Pois o que se vai referendar é a possibilidade de decisão, insisto, e não a questão lateral de o aborto ser realizado no SNS ou não. Embora não te agrade, o modelo de saúde em Portugal é todo baseado no SNS, porque haveria este acto médico de ser diferente? Ou este não é também um momento de risco para a saúde? E, já agora, as mulheres pagam os partos através dos impostos, mas irão, evidentemente, pagar os abortos também através dos impostos. Uma mulher que decida não ter filhos também anda a pagar os serviços de obstetricia, e essa é a incongruência do teu argumento, que aliás só se percebe pela aversão que tens ao modelo dos impostos. Mas, repito, não se está a referendar o modelo social português, tão só a despenalização do aborto.

Se te deres ao trabalho de ver o post do Manuel, irás inclusivé compreender que as despesas com o SNS não irão aumentar, antes pelo contrário, e que, grosso modo, embora este argumento seja para mim de todo irrelevante e até de mau gosto, a mulher que aborta é mais barata para o SNS do que a mulher que leva a gravidez até ao fim, o que é fácil de entender. Portanto, nesta linha dos custos, que me desagrada profundamente, mas enfim, vamos lá, temos três opções: a) a mulher que aborta no SNS que tem um custo X; b) a mulher que leva a gravidez até ao fim que tem um custo Y maior que X; e c) a situação actual, em que o custo é incerto (sequelas do aborto clandestino). Desculpa que te diga, mas esse argumento das listas de espera é falcioso, como já foi referido até à exaustão: não são os obstetras que arrancam dentes nem que fazem operações à prostata.

Mais uma vez tu revelas as tuas motivações quando dizes que «um dos problemas das sociedades modernas é a sistemática desresponsabilização dos cidadãos pelo estado, que se impõe e atravessa mesmo quando ninguém lhe pede ajuda». Confundes uma questão de organização social, papel do Estado, etc., com o que está em causa no referendo. É pena, porque penso que genuinamente desejes a despenalização da IVG; no entanto, perdes-te em modelos, sem ver que, uma vez despenalizado, a prática do aborto será tal e qual a prática da sociedade em que é praticado. Se a sociedade evoluir como tu esperas, também a prática mudará; pelo contrário, se perdemos esta chance de mudar a lei, esperam-nos mais não sei quantos anos de, e isso sim, menorização e irresponsabilização da mulher, impedida de assumir as suas opções livres e empurrada para situações de clandestinidade que a diminuem e humilham na sua dignidade. Teria todo o interesse em discutir contigo as questões que colocas, o papelo do Estado, a "ajuda nacionalizada", essa tal "atitude indolente perante a vida", sobre as quais tenho uma opinião diferente, no entanto sentir-me-ia, de momento, a perder tempo e a desviar-me do que está realmente em questão. É como digo: tomas o acessório pelo essencial, que neste caso concreto é: "concordas tu, jcd, com a despenalização da ivg, se realizada por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado"?