Assinalou-se no dia 18 o 28º aniversário da independência do Zimbabwe, mas apesar do país estar na berra, ninguém deu por isso. É natural. Se o 5 de Outubro não fosse feriado também ninguém dava por ele.
Só me apercebi porque nesse dia li isso algures, em letra miudinha. E tive o pensamento da praxe, sentimental q.b.: Como o tempo passa! Vinte e seis anos antes, e parece ontem, celebrava o acontecimento em casa do Gastão, em Maputo. Foi com genuína emoção que ouvimos o discurso de Mugabe, transmitido pela Rádio Moçambique. Sentíamos a sua vitória como nossa, achávamo-nos uma gota numa imensa vaga revolucionária mundial prestes a libertar os povos oprimidos. “Mínimo sou, mas quando ao Nada empresto a minha elementar realidade, o Nada é só o resto”. Tínhamos lido Reinaldo Ferreira, e estávamos orgulhosos de nossa elementar realidade. Estávamos felizes e queríamos festejar, numa época em que os rigores do Poder Popular não deixavam grande margem a festejos.
A tarde estendeu-se pela noite dentro, e foi aparecendo gente. Se a memória não me trai, o Lico, o Pacas Branquinho, o Pip, o Nini e a Belinha (nomes de guerra, é claro) … Esses já morreram todos. Confesso que não tenho a certeza se lá estavam mesmo nesse dia, ou se são os seus fantasmas que se vão imiscuindo nas minhas recordações, com o passar dos anos. Porque se não estavam, deviam estar. Quem quiser saber mais, ainda pode perguntar à Xica, à Fernanda “Pato” ou à Teresa “Maluca” (nomes de guerra, é claro). Também estavam na festa, com certeza, a menos que estivessem noutra das muitas que houve em Maputo no dia 18 de Abril de 1980.
A nossa alegria justificava-se. A queda do regime racista de Smith era de importância capital para Moçambique. A Rodésia tinha criado a Renamo, e constituía uma retaguarda indispensável para aquela tropa fandanga. Além disso, com o fim da Rodésia fechava-se o cerco à África do Sul, e constituía-se uma retaguarda imensa e muito mais forte para a guerrilha anti-apartheid do ANC.
Desde a independência de Moçambique, em 1975, Samora Machel vinha apoiando activamente a luta contra Smith no território vizinho. Apadrinhou a união entre os dois principais movimentos nacionalistas (ZANU de Mugabe e ZAPU de Joshua Nkomo), e acabou mesmo por enviar tropas para combater ao lado da guerrilha zimbabweana.
Usando essa influência, visou sempre colocar à frente do futuro país um homem da sua confiança, e apostou forte em Robert Mugabe, que viveu durante anos um discreto exílio em Moçambique, como professor de inlgês numa cidade de província. É verdade que o líder da guerrilha tinha sido Tongogara, e não Mugabe. Era nele que muita gente via o líder natural para o futuro país, mas acontece que Tongogara morreu na praia. Maneira de dizer, porque de facto terá morrido num acidente de viação, pouco antes da independência. Pelo menos foi o que anunciou a direcção da ZANU, isto é, Mugabe himself. Mas a explicação deixou dúvidas a muita gente.
Também é verdade que Mugabe nunca teve o carisma de um Machel, mas nesse tempo a popularidade deste entre os zimbabweanos compensava a obscuridade daquele. Mugabe suplantou o histórico Nkomo, e foi-se afirmando como o líder do nacionalismo zimbabweano. Nessa época lia pela cartilha ideológica de Machel, mais “pro-chinesa” do que “pro-soviética”, para usar os chavões jornalísticos.
Isso, é claro, não desagradava aos Estados Unidos. Do mal, o menos. A República Popular de Moçambique terá sido o único país comunista (das dezenas que então havia), a não constar da “lista negra” norte-americana. Washington manteve sempre boas relações com Maputo (e depois com Harare), ao contrário do que sucedeu, por exemplo, com a “pro-soviética” Luanda. Era no tempo do flirt com a China iniciado por Nixon, para enfrentar o inimigo comum soviético.
Mas entretanto a Cortina de Ferro ruiu, a Rússia patinha na podridão absoluta, e a China emerge com pujantes ambições imperialistas, sobretudo em África. A conversa é outra. Agora, para Washington o imperioso é travar a China, e toca a depor os seus aliados. Desde logo Mugabe, velho amigo dos chineses. Não foi preciso inventar armas de destruição massiva. O sujeito era incompetente; em pouco tempo o Zimbabwe deixara de exportar cereais e passara a importá-los. Era despótico; a sua presidência fora marcada por constantes exacções: perseguições a opositores e a homossexuais, deslocações de população, ocupações de terras…
Enquanto foram terras de pretos, ninguém se importou muito. São pretos, que se entendam. Quando passou às terras dos brancos, outro galo cantou. Ao ocupar as herdades dos zimbaboers para as entregar aos oficiais do exército, Mugabe pôs-se a jeito. Mas não tinha outra saída, se queria preservar a lealdade dos militares, seu principal suporte.
As coisas precipitam-se. Tony Blair dirige a ofensiva euro-americana contra Mugabe. O movimento de massas, que está longe de ser todo MDC, não para de crescer. A “comunidade internacional” exige eleições, Mugabe é obrigado a ceder. Fazem-se as eleições, os resultados nunca mais aparecem…
Os governos da região dão uma no cravo e outra na ferradura. Por um lado invocam a “unidade regional” contra as pressões “neocoloniais”, e por outro querem parecer “politicamente correctos” aos olhos da Europa e dos EUA. Entre a China e os EUA, jogam com um pau de dois bicos, porque sabem que, em última análise, tudo isto não passa de um episódio preliminar num inevitável confronto de outra dimensão entre as duas potências.
José Pinto de Sá
2 comentários:
Bom artigo. Agora temos que estar atentos ao desenvolvimento simultâneo da vida politica na África do Sul e no Zimbabué...FAR
JP de Sá: Eu conheci, vagamente, em Espinho, três anos apòs Maio 68, o JP Pereira. Já era um maoista puro e duro, se bem me recordo...Eu fui ao seu encontro com o José Manuel Sobral,hoje cientista social do ICS, colega do VPV e do MVC. Maio 68 para o JPP já tinha sido, pois...Só que os neófitos posteriores, UDP´S, ainda conseguiram ser mais oportunistas, maquiavélicos e estalinistas...FAR
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