domingo, 24 de junho de 2007

Mambo 21

Os passos não se atropelam, vão silenciosamente a pedir desculpa um atrás do outro sem íngreme vontade, que os torne donos de um destino mais belo. Das extremidades superiores, enquanto se entrega a caminhar, pendem-lhe uns volumes de plástico gordos. Tudo o que possui, está ali comprimido entre as asas e o fundo. Faço um exercício de pensamento: se de um momento para outro, tivéssemos que materializar as nossas posses em apenas duas bolsas de mão, o que lá escolheríamos pôr? Parece-me inimaginável. A mulher percorre o jardim sem pressas, durante todo o dia. Já experimentou todos os assentos vazios que existem no parque público. Vazios, porque ninguém anseia a sua companhia. Para que alguém se interesse por nós enquanto seres dialogantes, temos de nos oferecer como um conjunto de estímulos que despertam nos outros, agradáveis sensações ou a imaginação delas. Faço mais um exercício, do mesmo tipo: desço a rua desgrenhada, aparentemente diluída num anteontem acabrunhado, fixo desatentamente o chão, estou mal abotoada, não lavo a cara há três dias, tenho um esgar de fome e nojo do mundo. Onde me sento, todos se levantam… nos cafés sou parecida com insectos, enxotam-me antes de entrar para espreitar os bolos, que tanto me apetecem. A mulher recolhe-se da luz da lua pouca assídua, debaixo do beiral de um pequeno antigo prédio. Dorme curvada numa cadeira de metal, que subtrai à esplanada em frente. De manhã bem cedo, devolve-a à mesa. Por vezes arrasta mesmo esta última, para descansar sobre ela, o peso da cabeça com tudo o que lá tem, a noite é longa. Por vezes tem companhia. Um homem senta-se da mesma maneira ao seu lado, mas ele tem uma manta. Na pobreza extrema, não há bons modos. A mulher não tem manta nem a metade da outra. A sua cara é escura de medo e desconfiança. Sorriu uma vez, enquanto devorava um hambúrguer e era para este, que esticava em barca os cantos da boca. Faço mais um exercício daqueles: se procurássemos uma noite fria e nela nos obrigássemos a viver na sua desolação de silêncios, solidões, dores de mundos desaparecidos, engolires de indiferenças constantes a ampliarem as insónias, geadas, o ouvir as portas dos que sobem as escadas e vão a algum canto seu, que tipo de pessoas seríamos nas manhãs seguintes a essas muitas escurecidas horas? A mulher é de meia idade e não sofre da crise da meia idade, ela tem tempo mas não alma que se queixe disso. Não é nunca arrebatada por um sms hardcore de algum belo amante nem tem mails carinhosos para apagar. Não é mulher. É sem lábios e sem sexo. Leva uma vida de fugazes afectos com as pedras da calçada. Tem um tumor num antebraço, do tamanho de uma laranja desenvolta. Usa muitas rugas que não sabe esconder, na pele da sua primeira página. Espera que todo o inteligente movimento se esgueire das ruas, para que possa descansar-se e sentir que também ela tem um chão no planeta. Do outro lado das suas sombras quietas, ergue-se o palácio rosa da presidência da república. Um último exercício: Este mês não vai haver a comunicação que nos faz funcionar como seres humanos e uma terrível depressão poderá assolar todas as pessoas que não receberem um olhar de volta ou que encontrarem o seu telemóvel sem nenhuma chamada ou ainda ninguém lhes tocar à campainha, mesmo que para a hedionda publicidade.

Ela nunca lerá este blogue.

4 comentários:

Ana Cristina Leonardo disse...

Toda a gente tem um passado e um futuro. Não somos mais do que um corpo e um nome. O resto são hipóteses

Táxi Pluvioso disse...

Está provado que a nossa vida material cabe em dois sacos de plástico do supermercado. E a nossa vida intelectual, em mp3, dentro de 2mm de cabelo.

Jorge Pereira disse...

Mtº bom...
Porque me queixo tanto, se apenas sou... nada, nada nesta vida!

FernandoRebelo disse...

Felizmente que o meu telemóvel não toca assim tanto como isso. Mesmo que às vezes me apeteça MESMO que toque. Só para aquela chatice de ouvires alguém que não era mesmo para nada.
Quanto ao olhar, isso faz-me falta. Mesmo naquelas manhãs ensonadas, a caminho do primeiro embate laboral, faz falta aquele olhar: um acalanto silencioso. Mesmo que do outro lado te pareça que as palavras não vêm... Ainda por cima o teu olhar pacifica e faz crer que tudo é possível.
Bj.